Renato da Costa Lino de Góes Barros

SUMÁRIO: 1. Intróito. 2. Aspectos importantes da obra “Contra o Método”. 3. Do Discurso sobre as Ciências: Importantes contribuições. 4. Da adequação da proposta de Feyerabend à pós-modernidade. 5. Conclusão. 6. Referências.

RESUMO: O paradigma dominante da ciência moderna simplifica a complexidade da realidade. Tal fato implica diretamente na restrição do progresso alcançado. Com a crise deste paradigma, torna-se necessária à adoção de uma metodologia pluralista no intuito de viabilizar uma análise mais aprofundada das investigações realizadas, conduta esta que tornará possível à emancipação almejada.
Palavras-chave: Restrição ao progresso. Crise. Metodologia Pluralista. Emancipação.
ABSTRACT: The prevailing paradigm of the modern science simplifies the complexity of reality. Such fact implies directly in the restriction of the progress obtained. With the crises of paradigm, it is necessary to adopt a pluralist methodology aiming to promote a more elaborated analysis of the investigations made in order to enable the coveted emancipation to take place.
Keywords: Restriction to progress. Crisis. Pluralist Methodology. Emancipation.

1. INTRÓITO
Tal estudo focará sua análise sobre a adequação da metodologia pluralista, defendida por Paul Karl Feyerabend, à sociedade pós-moderna que tanto se discute atualmente. Para tanto, faz-se necessário, nestas linhas iniciais, uma breve apresentação do pesquisador estudado, que se fará com base nos dados levantados por Hegenberg (2005) e Feijó (2003).
Paul Karl Feyerabend, nascido em Viena em 1924, prestou serviço militar, lutando, inclusive, na II Guerra Mundial em nome do exército nazista.
Após a guerra, retomou seus estudos, doutorando-se em Filosofia. Ganhou bolsa para estudar em Cambridge, mudando-se, após a morte de Wittgenstein, para a London School, onde manteve contato com Popper.
Sob a influência de Popper, ousou ao defender a idéia de que é o significado que desce da teoria para experiência. Ou seja, a teoria pode ter significado próprio que não esteja vinculado com a experiência, uma vez que, segundo entendia, os termos adquiriam significados de acordo com o contexto teorético ao qual eles estivessem submetidos.
Nesta linha, os significados encontrados dependeriam da teoria escolhida, sendo que, em caso de teorias muito diferentes, os significados não poderiam ser nunca comparados.
Neste sentido, defendia que o pluralismo teorético estimularia o progresso da ciência, uma vez que, com o pensamento voltado para mais de uma teoria, diminuía-se os inconvenientes da espera decorrentes das dificuldades encontradas por uma teoria posta a prova.
E, após outras experiências vividas, avançou ainda seu pensamento no sentido de defender que não haveria regras úteis que pudessem ser recomendadas a quem pretendesse fazer ciência. Isto porque, segundo entendia, não haveria forma de fixação de metodologia, sem que a mesma inibisse o progresso.
Neste sentido, explica Ricardo Feijó (2003, p. 61) que Feyerabend acreditava que:
A história da ciência não apenas desautoriza a imposição de algum método rígido, como também ensina que, muitas vezes, os passos mais inovadores só foram possíveis porque os cientistas que os propuseram ousaram desobedecer a qualquer conjunto articulado de regras metodológicas.
Tais pensamentos, explicitados em sua obra “Against Method” (1970; em português, “Contra o Método”), receberam severas críticas que, em certos momentos, causaram constrangimentos ao aludido pesquisador.
Entretanto, mesmo assim, destaca Hegenberg a importância de tal obra, quando afirma (2005, p. 203) que:
No final do século XX e neste início de novo século, as questões de método deixaram de ocupar um posto de destaque no cenário filosófico. É possível que Feyerabend tenha contribuído para isso, mesmo não levando em conta o exagero de seu “Vale Tudo”. Avaliações melhores virão, por certo, quando estivermos um pouco mais distanciados de todas as questões aqui consideradas, para examiná-las de modo imparcial.
Entretanto, mesmo ainda próximo desta realidade, ou melhor, mesmo ainda imerso nesta (des)configurada dimensão pós-moderna, este trabalho propõe-se a fazer uma (ainda que breve) análise deste pensamento de Feyerabend, que em muito contribuiu para o aprofundamento de algumas reflexões acerca de relevantes questões metodológicas.

2. ASPECTOS IMPORTANTES DA OBRA “CONTRA O MÉTODO”
Parte Feyerabend (2007, p. 19), inicialmente, de uma tese, qual seja, que: “os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum; não há elementos que ocorram em toda investigação científica e estejam ausentes em outros lugares”.
Isto porque, segundo entende, a pesquisa que logra êxito não é aquela que obedece a padrões gerais, mas sim aquela que, utilizando-se de procedimentos e padrões nem sempre conhecidos, alcançam o progresso.
E, neste caminho, defende que (2007, p. 31) “a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem”.
Nesta linha, este “anarquismo” é apresentado em contraposição àquelas regras “ingênuas” e “simplórias” que os metodólogos tomavam como marco orientador.
Afinal, segundo entende (2007, p. 33):
Um meio complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre cambiantes da história.
Explica, neste caminhar, que a educação científica, até então implantada, trabalha em sentido contrário ao quanto defendido ao simplificar a “ciência” através de seus participantes, criando uma tradição que é mantida por regras específicas.
E, neste sentido, indaga enfaticamente (2007, p. 34):
Mas será que é desejável dar apoio a tal tradição a ponto de excluir tudo mais? Devemos ceder-lhe os direitos exclusivos de negociar com o conhecimento, de modo que qualquer resultado obtido por outros métodos seja imediatamente rejeitado? E será que os cientistas invariavelmente permaneceram nos limites das tradições que definiram dessa maneira estreita?
Para o Autor, a resposta a estas indagações não poderia ser outra que não um “Não”! Isto porque tal postura impediria o conhecimento efetivo da verdade, que prescinde que não sejam restringidas de antemão as opções de exploração. Isso sem falar que tal postura iria de encontro à atitude humanista atualmente acolhida. Afinal, segundo defende (2007, p. 35):
A tentativa de fazer crescer a liberdade, de levar uma vida plena e gratificante e a tentativa correspondente de descobrir os segredos da natureza e do homem acarretam, portanto, a rejeição de todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas. (Naturalmente, acarretam também a rejeição de grande parte da ciência contemporânea).
Constatou também Feyerabend (2007) que a idéia de um método imutável – absoluto – entra em conflito com os resultados da pesquisa histórica.
Isto porque, segundo afirma, não há uma única regra, ainda que sólida na epistemologia, que não seja desrespeitada em alguma oportunidade, violações estas que contribuem para o progresso.
Para ele (2007, p. 37): “Essa prática liberal, repito, não é apenas um fato da história da ciência. É tanto razoável quanto absolutamente necessária para o desenvolvimento do conhecimento”.
Para comprovar tal afirmativa, propõe Feyerabend (2007, p. 41) a descrever a situação pretendida:
Principiamos com uma firme convicção que é contrária à razão e à experiência da época. Essa convicção se dissemina e encontra apoio em outras crenças igualmente desarrazoadas, se é que não o são mais ainda (lei da inércia; o telescópio). A pesquisa é então desviada em novas direções, novos tipos de instrumentos são construídos, a “evidência” passa a ser relacionada às teorias em novas maneiras, até que surge uma ideologia rica o suficiente para prover argumentos independentes em defesa de qualquer de suas partes específicas, e versátil o suficiente para encontrar tais argumentos sempre que pareçam ser necessários.
Para tanto, revela que, quando se tenta compreender desenvolvimentos desta espécie, faz-se necessária à utilização das formas de expressão disponíveis que, muitas vezes, precisam ser distorcidas a fim de atenderem situações não conhecidas.
Assim, para o Autor, o anarquismo contribui para o progresso. Em contrapartida, deixa claro Feyerabend (2007, p. 42) que “a idéia do método fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e de suas circunstâncias sociais”.
E, neste caminho, complementa (2007, p. 42-43):
Para os que examinam o rico material fornecido pela história e não tem a intenção de empobrece-lo a fim de agradar a seus baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza, precisão, “objetividade” e “verdade”, ficará claro que há apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale.

3. DO “DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS”: IMPORTANTES CONTRIBUIÇÕES
Nesta linha de intelecção, muito embora as inúmeras e ferozes críticas sofridas pelo pensamento feyerabeniano ao longo das três últimas décadas, prosseguirá este estudo no sentido de demonstrar que, na atualidade, tal pensamento mostra-se perfeitamente adequado aos embasamentos teóricos da pós-modernidade.
E, necessitado de subsídios para tanto, apóia-se este estudo no pensamento que Boaventura de Souza Santos sustentou em seu clássico Discurso sobre as Ciências .
Para Boaventura de Souza Santos (2006, p. 15), vive-se “um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas em descompasso em relação a tudo o que habita”.
Lembra Souza Santos (2006) que o modelo de racionalidade que constituiu a ciência moderna desenvolveu-se a partir da revolução científica do século XVI, focando-se inicialmente nas ciências naturais. Com a extensão às ciências sociais, passou-se a ter um modelo global de racionalidade científica que se diferencia de duas formas de conhecimento não científico, quais sejam, o senso comum e as chamadas humanidades.
Nesta linha, pontua Souza Santos (2006) ser tal racionalidade totalitária, pois negaria caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautassem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas, sendo esta a sua maior característica.
E, nesta ótica, as ciências matemáticas ganharam relevância, pois, como lembrado por Souza Santos (2006, p. 27), exprimiriam “não só o instrumento privilegiado da análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria”.
Em decorrência deste prestígio da matemática na ciência moderna, conhecer passou a ser quantificar, fato este que levou a desqualificação do objeto, pois o que não era quantificável era cientificamente irrelevante. Ademais, implicou também na adoção do método científico de redução de complexidade, pois conhecer passou a ser entendido como dividir e classificar para posteriormente identificar a relação entre as partes do todo.
Assim, percebeu Souza Santos (2006, p. 29) que:
A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos epistemológicos e das regras metodológicas já referidas. É um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz da regularidade observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos.
Nesta linha, um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo. Neste contexto, bem assevera Souza Santos (2006, p. 30):
Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade no mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via de sua decomposição nos elementos que o constituem. Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o macanicismo.
Acreditava-se, em virtude do exposto, que tal como foi possível descobrir as leis da natureza seria possível descobrir as leis da sociedade.
Sob esta ótica, no século XIX, as ciências sociais nasceram para ser empíricas, entretanto divergências surgiram entre aqueles que acreditavam que estas ciências careceriam de metodologias próprias e aqueles que acreditavam ser possível a aplicação dos critérios da cientificidade das ciências naturais às sociais .
Sobre o tema, Souza Santos (2006, p. 36) aponta alguns obstáculos a compatibilização das ciências sociais aos critérios de cientificidade das ciências naturais, destacando que:
As ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se, no ato da observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista.

Ocorre, entretanto, que, até mesmo na vertente que defendia a utilização da metodologia própria, são utilizados argumentos biológicos para fixar as especificidades do ser humano. Nesta linha, conclui Souza Santos (2006, p. 40) que:
Ambas as concepções de ciências sociais a que aludi pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a concepção mencionada em segundo lugar represente, dentro deste paradigma, um sinal de crise e contenha alguns dos componentes da transição para um outro paradigma científico.
Mas, de onde surgiu esta crise ?
A crise do paradigma dominante é oriunda de uma pluralidade de condições, sendo elas sociais e teóricas. Trata-se de um movimento transdisciplinar que gera uma reflexão epistemológica sobre o conceito científico na busca pela emancipação do homem através do conhecimento.
Nesta análise, notou-se a necessidade de combater a simplificação arbitrária da realidade, pois esta limitaria a possibilidade de expansão do conhecimento. Nesta linha, destaca Souza Santos (2006, p. 59):
A crise do paradigma da ciência moderna é, então uma despedida em busca de uma vida melhor a caminho de outras paragens onde o otimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada. A crise do paradigma dominante traz consigo o perfil do paradigma emergente.
Combate-se, assim, a parcelização do saber científico que traz consigo efeitos negativos, principalmente, em relação à especialização excessiva.
Afinal, no paradigma emergente, o conhecimento é expansionista e não reducionista, incentivando o compartilhamento de teorias, oriundas de campos cognitivos diversos, sem um rígido arcabouço metodológico que o regulamente. Desta forma, explica Souza Santos (2006, p. 77):
O conhecimento pós moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, esta pluralidade de métodos só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresa de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação de métodos fora de seu habitat natural. Dado que a aproximação entre as ciências naturais e as ciências sociais se fará no sentido destas últimas, caberá especular se é possível, por exemplo, fazer a análise filológica de um traçado urbano, entrevistar um pássaro ou fazer observação participante entre computadores. A transgressão metodológica repercute-se nos estilos e gêneros literários que presidem à escrita científica. A ciência pós-moderna não segue um estilo unidimensional, facilmente identificável; o seu estilo é uma configuração de estilos construída segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista.

4. DA ADEQUAÇÃO DA PROPOSTA DE FEYERABEND À PÓS-MODERNIDADE
Tem-se no âmago da transição paradigmática a substituição da forma de conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação .
Nesta linha, cumpre destacar que o foco da ciência moderna, no paradigma dominante , foi a busca do conhecimento através de métodos rígidos, baseados na regularidade, com intuito de comprovar e antever o comportamento dos fenômenos.
Por meio deste processo, o conhecimento adquirido tem como marca a objetividade, podendo qualquer observador obter os mesmos resultados , caso se proponha a repetir, sob as mesmas condições, todo os procedimentos adotados na investigação, criando – assim – a impressão de uma aparente segurança que marca toda a modernidade.
Ocorre, entretanto, que este mesmo paradigma científico, muito embora tenha criado inúmeras melhorias nas condições de vida (fato este incontestável!), não conseguiu trazer a emancipação pretendida pelo indivíduo, frustrando as expectativas de que fossem revelados expressivos segredos do homem e da natureza.
Neste sentido, destaca Maria da Conceição Ruivo (2006, p.597) que:
É inquestionável que o desenvolvimento científico dos últimos três séculos mudou a vida da humanidade e, pesem embora os novos problemas que com eles cresceram (desde Hiroshima ao buraco de ozônio), criou melhores condições materiais para a vida neste planeta. Mas não só grande parte da humanidade continua sem acesso aos benefícios da civilização, como é questionável que o progresso científico tenha trazido uma sabedoria de vida. Por outro lado, o fosso entre o saber científico e o saber comum não tenha deixado de aumentar.
Isto porque a perspectiva reducionista que marca o paradigma da modernidade, como já asseverado linhas acima, tem um caráter limitado que caminha em sentido contrário à complexidade real da vida.
Desta forma, mais uma vez, pontua com propriedade Maria da Conceição Ruivo (2006, p. 593-594) que:
Sabemos que os sistemas ideais, simples e passíveis de resolução exata, têm interesse pedagógico, ao passo que um problema real é, em geral, de grande complexidade. Se a procura de leis fundamentais, dos constituintes últimos da matéria, é um desafio apaixonante – o sonho de qualquer físico -, também é verdade que uma perspectiva reducionista tem uma utilidade limitada.
Isto porque a perspectiva reducionista adotada, na ciência moderna, enxerga apenas uma concepção que, na maioria das vezes, não se torna hábil a representar o completo sentido da investigação em curso, pecando por limitar demasiadamente a análise, bem como por não revelar a essência do objeto sob mais de uma vertente.
Nesta linha de intelecção, visualizando os riscos e as falhas desta perspectiva reducionista, Feyerabend destaca que inexiste uma única teoria isolada que sirva para análise da totalidade do objeto.
Neste caminho, pontua que (Feyerabend, 2007, p. 46):
Um cientista que deseja maximizar o conteúdo empírico das concepções que sustenta e compreende-las tão claramente quanto lhe seja possível deve, portanto, introduzir outras concepções, ou seja, precisa adotar uma metodologia pluralista. Ele precisa comparar idéias antes com outras idéias do que com a “experiência” e tem de tentar aperfeiçoar, em vez de descartar, as concepções que fracassaram nessa competição.
Sustenta isto, porque, segundo entende (2007, p. 46), o conhecimento é:
Um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual cada teoria, cada contos de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante um processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada jamais é estabelecido, nenhuma concepção pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente.
Ou seja, em outras palavras, pode-se dizer que o surgimento de teorias é bom para a ciência, uma vez que a uniformidade dificulta a crítica.
Explica, neste sentido, Feyerabend (2007, p. 52) que a condição de consistência , típica da modernidade, “elimina uma teoria ou uma hipótese não porque ela esteja em desacordo com os fatos; elimina-a porque está em desacordo com outra teoria, com uma teoria, além do mais, de cujas instâncias confirmadoras ela compartilha”.
Tal condição estimularia a preservação do que já é aceito pelo simples fato da perpetuação do que é antigo, transpassando o viés da segurança, que é típico da ciência moderna, mas que dificulta o progresso do conhecimento.
Importante frisar, entretanto, que se reconhece que esta condição de consistência não atravancaria totalmente o progresso!
Isto porque a concentração da investigação sobre apenas uma teoria traz progresso real sempre que fatos novos apontem erros, fazendo com que seja repensada a teoria acerca deste aspecto, alterando-a de forma parcial ou, até mesmo, integral.
No entanto, como já tratado, esta condição aplicada num sistema reducionista , numa postura condizente com o paradigma dominante da ciência moderna, demonstra uma simplificação forçada da complexidade real da vida , fato este que impede que o progresso galgue o êxito emancipatório pretendido nesta nova dimensão vivida, deixando de revelar fatos dependentes de teorias alternativas por terem sido estas precipitadamente excluídas .
Isto porque, segundo Feyerabend (2007, p. 54-55):
Fatos e teorias estão muito mais intimamente ligados do que admite o princípio da autonomia. Não apenas é a descrição de cada fato individual dependente de alguma teoria (a qual pode, é claro, ser muito diferente da teoria a ser testada), mas também existem fatos que não podem ser revelados, exceto com o auxílio de alternativas à teoria a ser testada, e deixam de estar disponíveis tão logo tais alternativas sejam excluídas.
Desta forma, o cientista deve sempre ter em mente que, para análise do conteúdo empírico nas investigações realizadas, necessária é a utilização de um conjunto de teorias e não apenas de uma teoria isolada.
Nesta linha, destaca Feyerabend (2007, p. 57) que:
O empirismo, ao menos em algumas de suas versões mais sofisticadas, demanda que o conteúdo empírico de qualquer conhecimento que tenhamos seja aumentado tanto quanto possível. Em consequência, a invenção de alternativas à concepção que está em discussão constitui parte essencial do método empírico. Inversamente, o fato de que a condição de consistência elimina alternativas mostra-se agora estar em desacordo não apenas com a prática científica, mas também com o empirismo. Ao excluir testes valiosos, diminui o conteúdo empírico das teorias a que é permitido permanecer (e estas, como indiquei anteriormente, em geral serão as teorias que surgiram primeiro) e diminui em especial o número daqueles fatos que poderiam mostrar suas limitações.
Tudo isto, pois se acredita que uma pluralidade de teorias é essencial para qualquer análise comprometida com a descoberta da natureza do objeto observado.
Isto porque o conhecimento deve ser obtido, preferencialmente, através de um processo de conformação de uma multiplicidade de alternativas, e não a partir da adoção de uma teoria precedente e isolada.
Tanto é verdade que defende Feyerabend (2007, p. 60-61) que:
A unanimidade de opinião pode ser adequada para uma Igreja Rígida, para as vítimas assustadas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno), ou para os fracos e voluntários seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimula a variedade é também o único método compatível com a perspectiva humanitarista. (Uma vez que a condição de consistência delimita a variedade, contém um elemento teológico que reside, é claro, na adoração dos “fatos” tão característica de quase todo empirismo).
E mais: destaca ainda Feyerabend (2007, p. 63) que:
Um cientista interessado em obter o máximo conteúdo empírico, que deseja compreender tantos aspectos de sua teoria quanto possível, adotará uma metodologia pluralista, comparará teorias com outras teorias, em vez de com “experiência”, “dados” ou “fatos”, e tentará aperfeiçoar, e não descartar, as concepções que aparentem estar sendo vencidas na concepção.
Afinal, as teorias podem ser buscadas de qualquer fonte, inclusive, do passado, demonstrando que a história de uma disciplina colabora com o avanço do estágio atual da mesma. Desta forma, destaca Feyerabend que (2007, p. 64) “a separação entre história de uma ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolve-se no ar, e isso também se dá com a separação entre ciência e não-ciência”.
Ademais, é ainda motivo de análise o fato de que nenhuma idéia é examinada em todas as suas vertentes.
Segundo Feyerabend (2007, p. 66):
Teorias são abandonadas e substituídas por explicações que estão mais de acordo com a moda muito antes de terem tido oportunidade de mostrar suas virtudes. Além disso, doutrinas antigas e mitos “primitivos” só parecem estranhos e sem sentido porque a informação que encerram ou não é conhecida ou é distorcida por filólogos ou antropólogos não familiarizados com os mais simples conhecimentos físicos, médicos ou astronômicos.
E, nesta linha, o pluralismo teorético não seria importante apenas para a metodologia, mas também para uma perspectiva humanitarista . E, sobre este fato, conclui Feyerabend (2007, p. 69) que:
O pluralismo de teorias e concepções metafísicas não é apenas importante para a metodologia; é, também, parte essencial de uma perspectiva humanitarista. Educadores progressistas têm sempre tentado desenvolver a individualidade de seus discípulos e fazer florescer os talentos e crenças específicos, e por vezes únicos, de uma criança. Uma educação deste tipo, contudo, tem como muita freqüência dado a impressão de ser fútil exercício em sonhar acordado. Pois não é necessário preparar os jovens para a vida como ela realmente é? Não significa isso que eles têm de aprender um conjunto particular de concepções, a ponto de excluir tudo mais? E, caso um vestígio de sua imaginação ainda perdure, não encontrará aplicação apropriada nas artes ou em um tênue domínio de sonhos que tem pouco a ver com o mundo no qual vivemos? Não levará esse procedimento, no final, a uma divisão entre realidade odiada e fantasias bem-vindas, entre a ciência e as artes, entre descrição cuidadosa e auto-expressão irrestrita? O argumento em favor da proliferação mostra que isto não precisa ocorrer. É possível conservar o que se poderia chamar de liberdade de criação artística e usa-la na íntegra não somente como via de escape, mas como meio necessário para descobrir, e talvez modificar, os traços do mundo em que vivemos. Essa coincidência da parte (o indivíduo) com o todo (o mundo em que vivemos), do puramente subjetivo e arbitrário com o objetivo e governado por regras, é um dos argumentos mais importantes em favor de uma metodologia pluralista.
Nesta linha de intelecção, torna-se clara a adequação da metodologia pluralista à dimensão da pós-modernidade, pois somente com a coincidência do indivíduo com o mundo em que vive é que se tornará possível à emancipação pretendida através do conhecimento.

5. CONCLUSÃO
Como visto, o sistema reducionista, que marca o paradigma dominante da ciência moderna, impõe uma simplificação da complexidade da realidade. Tal fato faz com que o progresso não consiga alcançar o êxito emancipatório esperado, deixando de revelar fatos em virtude da exclusão precipitada de teorias.
Desta forma, para evitar o aludido problema, foi destacado que o cientista deve sempre se munir de uma metodologia pluralista no intuito de viabilizar uma análise mais aprofundada do conteúdo empírico nas investigações realizadas.
Isto porque o conhecimento deve ser obtido, preferencialmente, através de um processo de conformação de uma multiplicidade de alternativas, e não a partir da adoção de uma teoria precedente e isolada.
Ademais, concluiu-se também que o pluralismo teorético não seria importante apenas para a metodologia, mas também para uma perspectiva humanitarista, tornando – assim – clara a adequação da metodologia pluralista à dimensão da pós-modernidade, pois somente com a coincidência do indivíduo com o mundo em que vive é que se tornará possível à emancipação almejada.

6. REFERÊNCIAS
ANDRÉ, João Maria. Ciências e valores: o pluralismo axiológico da ciência e o seu valor epistêmico. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2006.
FEIJÓ, Ricardo. Metodologia e filosofia da ciência: aplicação na teoria social e estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2003.
FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Tradução de Cezar Augusto Mortari. São Paulo: UNESP, 2007.
HESENBERG, Leônidas (org.). Métodos. São Paulo: EPU, 2005.
RUIVO, Maria da Conceição. A ciência tal qual se faz ou tal qual se diz? In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2006.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2006.
WALLERSTEIN, Immanuel. A estrutura do conhecimento ou quantas formas temos nós de conhecer? In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2006.

Priscila Cunha Lima de Menezes[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 René Descartes: notas biográficas. 3 Descartes e a importância do método. 4 As quatro premissas do pensamento cartesiano. 5 Contribuições do método cartesiano para a pesquisa em Direito. 5.1 O duvidar e a pesquisa. 5.2 O dividir e a pesquisa. 5.3 O deduzir e a pesquisa. 5.4 O enumerar e o revisar e a pesquisa. 6 A importância do método cartesiano: uma crítica. 7 Conclusões. 8 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

René Descartes é considerado o precursor do racionalismo e principalmente o pai da filosofia moderna, por ter desenvolvido uma visão mecanicista da filosofia em crítica à mera retórica característica da dialética escolástica então vigente. É também o criador da geometria analítica, a qual, possibilitou a tradução em equações e gráficos das figuras geométricas, a partir da aplicação da álgebra à geometria.

No presente artigo, a partir das duas principais obras de Descartes, Discurso do Método e Regras para a Direção do Espírito, desenvolve-se o estudo da aplicação da metodologia que delas se infere à construção da pesquisa científica, partindo especialmente das quatro premissas que sustentam o pensamento racionalista.

 

2 RENÉ DESCARTES: NOTAS BIOGRÁFICAS

Faz-se indispensável uma reflexão acerca da vida de René Descartes, com o objetivo de contextualizar a sua própria obra.

René Descartes nasceu em 1596, na França, perdendo a sua mãe alguns dias após o seu nascimento, em razão de tuberculose. Esse fato influenciou profundamente a sua vida, pois ele cresceu com uma intensa preocupação com a sua saúde, sempre sob a suspeita de ter herdado a compleição frágil de sua genitora. Em razão disso, sua infância foi cercada de cuidados e preocupações com desgastes físicos, pelo que acabou tendo ele  uma infância atípica, afastada das brincadeiras e do convício com outras crianças.

Ao completar oito anos de idade, foi matriculado no tradicional colégio jesuíta La Flèche, onde iniciou os seus estudos e logo ganhou a admiração e confiança dos professores que identificavam em Descartes um estudante interessado e inteligente. Nesta fase, já começa a demonstrar a sua predileção pela matemática, destacando-se no estudo de tal matéria. A ele eram permitidos verdadeiros privilégios como o de não participar de atividades físicas obrigatórias, ocasiões em que podia meditar e refletir absorto em seus pensamentos e no conforto de sua cama. Deixou esta escola ao completar dezesseis anos, após ter tido contato com os principais autores clássicos disponíveis.

A adolescência representou um breve rompimento com este comportamento de Descartes. Nesta fase, envolveu-se com jogos, festas, bebidas e jantares numa Paris sempre receptiva a tais divertimentos. A vivacidade da juventude lhe trouxe ainda o vigor físico, momento em que deixou de lado as preocupações com o estigma de tuberculoso. No mesmo período, cursou Direito na cidade de Poitiers. Após isso, atraído pela carreira militar, aderiu ao exército do Príncipe Mauricio de Orange, dos Países Baixos.

Entretanto, não era um oficial como os outros: evitava combates físicos e recusava o recebimento do soldo. A fase militar de sua vida durou aproximadamente dois anos e encerrou-se sem muitas glórias no campo de batalha.

Em 1619, ocorre um marco na vida de Descartes: em um sonho, relata ele que ouviu um estrondo de trovão, momento em que teria tido contato com a verdade. Inspirado em tal ideal, retornou ao seu país de nascimento, para, gozando da herança deixada por seu pai que lhe permitia uma condição financeira confortável, passar o resto da vida a empreender reflexões na busca por um método para alcançar a verdade, reconstruindo a partir do marco zero toda a filosofia, pelo que é hoje considerado o pai da filosofia moderna.

Com este objetivo, passa ele a viajar por toda a Europa, buscando conhecer o maior número de pessoas, costumes, lugares e modos de vida, pois acreditava ele, naquele momento, ser possível a construção de um conhecimento com base no acúmulo de experiências pessoais.  Em toda a sua jornada, jamais deixou de lado seu grande interesse pela matemática, em razão da própria predileção que o atraía a um pensamento lógico e ordenado,  identificado facilmente nesta matéria.

Tal modo de buscar a verdade viajando de um país a outro, cessa quando completa Descartes 33 anos, a partir de quando se recolhe na Holanda, buscando a solidão e a tranqüilidade de uma vida de reflexões. Estes, pelo menos, eram os planos de Descartes, que apreciava tanto esta vida tranqüila que escrevia aos amigos dando notícias de sua satisfação e contentamento.

Tudo muda de novo quando, em 1650, muda-se para a Suécia, a pedido da rainha Cristina, como professor de sua alteza real, que lhe exigia levantar da cama nas primeiras horas da manhã para lecioná-la. No mesmo ano, morreu de pneumonia, ao não suportar as temperaturas baixíssimas do inverno sueco, confirmando assim a sua sentença de infância: a fragilidade no sistema respiratório.

 

3 DESCARTES E A IMPORTÂNCIA DO MÉTODO

Como visto, Descartes, durante quase toda a sua vida preocupou-se sempre em encontrar a verdade, mas não de uma forma aleatória, desorganizada e acidental. Havia nele uma preocupação com o método, com uma ordem de disposição do pensamento. Estava Descartes, em realidade, convencido da possibilidade de construir e mostrar o caminho pelo qual o homem deve peregrinar para alcançar o conhecimento, concentrando-se no caminhar, no percorrer, não tanto na verdade em si alcançada. Acreditava ele que a simples utilização do método por um espírito sagaz e curioso conduziria à verdade.

Essa concepção é fundamental para a pesquisa científica. Não há dúvidas de que a metodologia ajuda a ordenar e sistematizar o pensamento e contribui para que o pesquisador possa melhor empregar as suas capacidades aumentando as suas chances de alcançar resultados inovadores.

Em Direito, o método também ocupa relevante papel. A metodologia da pesquisa jurídica faz uso do método enquanto um “conjunto de processos que o espírito humano deve empregar na investigação e demonstração da verdade”[ii] potencializando no pesquisador suas chances de contribuir para a solução de questões relevantes.

Nesse mesmo sentido, Silvio Luiz de Oliveira esclarece que:

O método que deriva da Metodologia trata do conjunto de processos pelos quais se torna possível conhecer determinada realidade, produzir um objeto ou desenvolver certos procedimentos ou comportamentos. Assim ele nos leva a identificar a forma pela qual alcançamos determinado fim ou objetivo.

O jurista ou pesquisador da área jurídica em nível de graduação e pós-graduação se restringe a uma visão introspectiva. Ao criar um sólido trabalho (monografia, dissertação ou tese), questiona como levou cabo a descoberta de uma verdade.[iii]

Desta forma, a importância da metodologia da pesquisa em Direito é enorme, tão grande quanto imaginou Descartes, motivo pelo qual se passa a analisar o seu pensamento com ênfase na sua contribuição para a produção científica nesta área.

 

4 AS QUATRO PREMISSAS DO PENSAMENTO CARTESIANO

Descartes, ao elaborar suas duas principais obras ora analisadas, quais sejam: o Discurso do Método e as Regras para a Direção do Espírito, teve como principal objetivo apresentar o caminho para se alcançar a verdade nas ciências, inspirado no raciocínio matemático.

Com essa inspiração, tais obras apresentam e explicam o método cartesiano, que teria como principal objetivo a elevação e o aumento do conhecimento baseado na razão humana. É na razão, inata a todos os homens, que se funda o pensamento cartesiano; é ela que conduz ao conhecimento seguro e à verdade.

O pensamento cartesiano é, portanto, dirigido à criação de um caminho para o alcance de verdades claras e distintas; um passo a passo para o estudo de fenômenos, pois a verdade estaria ligada ao método. Esse processo intelectual é sugerido em regras que direcionam o estudioso a encontrar o conhecimento pleno do objeto.

Tal método envolve, por sua vez, tanto a noção de dedução, quanto a de intuição, que seriam as duas únicas formas de se alcançar o conhecimento, sem incorrer em equívocos. Tanto a dedução quanto a intuição a que se referem o método cartesiano são maneiras de se raciocinar e principalmente de se argumentar.

Assim, para formar juízos firmes e verdadeiros dispõe o estudioso somente da intuição e da dedução. A intuição seria um ato puro do intelecto, portanto subjetivo, e ao mesmo tempo completo e indene de dúvida, claro e distinto.

A dedução, por outro lado, sugere a identificação das coisas tidas como mais simples e mais gerais, das quais serão deduzidas outras e outras, e assim sucessivamente, num caminho de conhecimento aprofundado do fenômeno que conduzirá à buscada verdade.

Assim, na dedução, Descartes sugere a divisão do objeto do conhecimento em partes menores, em enunciados mais simples, sobre as quais a reflexão se dará. O conhecimento, em razão disso, jamais deve se iniciar por questões complexas e difíceis, mas sim e sempre das mais fáceis e universais, passando gradativamente para as menos gerais e mais complicadas.

Todavia, para alcançar tal conhecimento seguro por meio da dedução e da intuição, Descartes apresenta quatro antecedentes lógicos na sua teoria, quatro premissas que seriam necessárias para o alcance da verdade. O primeiro deles seria a necessidade de sempre duvidar, não devendo qualquer coisa ser aceita que não se conheça evidentemente como tal. Sugere como segunda premissa a divisão do objeto a ser conhecido em partes menores quanto possíveis, e a direção da atenção para o exame de cada uma delas. Em terceiro lugar, recomenda que o pensamento seja dirigido das questões mais simples para as mais complexas. Por fim, trata da necessidade de se formularem enumerações completas e revisões sucessivas e gerais, investigando se algo foi omitido.

O autor sugere assim, uma enumeração ordenada de todo o caminho percorrido nesse encadeamento da dedução, para que se possam revelar as etapas que foram cumpridas, além de revisadas num movimento contínuo. A dedução, deste modo, deverá ser interrompida quando se estiver diante de um fenômeno que não seja bem compreendido, exigindo um conhecimento mais aprofundado deste.

Essas quatro premissas são a base sobre a qual Descartes constrói todas as regras, todo o passo a passo para o alcance do conhecimento, sendo de grande relevância, portanto.

Postas desse modo, as quatro premissas representam e revelam, em síntese, quatro diferentes ações que devem ser praticadas por aquele que busca conhecer algo.

A primeira regra, segundo a qual nunca se deve aceitar como verdadeira nenhuma coisa, consiste num duvidar.

A segunda regra sugere dividir, ou seja, destrinchar, separar, repartir e decompor o objeto do conhecimento.

A terceira recomenda um deduzir, ou seja, aquele que pretende conhecer algo deve partir do conhecimento mais geral para o mais específico.

Por fim, a quarta e última premissa liga-se aos verbos enumerar e revisar, sempre num movimento contínuo de ir e vir.

As premissas cartesianas, portanto, revelam um modo de agir que serve à busca do conhecimento de forma metódica e organizada, qualidades indispensáveis a qualquer pesquisador, especialmente em Direito.

 

5 CONTRIBUIÇÕES DO MÉTODO CARTESIANO PARA A PESQUISA EM DIREITO

O método cartesiano que sugere uma série de ações ao pesquisador pode ser muito útil na realização de uma pesquisa.

Aplicado à pesquisa em Direito, a verdade buscada por Descartes se traduz na demonstração, pelo pesquisador, racionalmente de que é possível realizar uma reflexão problematizada de um tema, revisar as contribuições já existentes sobre ele e, sobretudo contribuir, ao final, com uma afirmação com algo de original.

A pesquisa, enquanto “procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos”[iv] pode, sem descurar de outros instrumentais, ser realizada a partir das quatro premissas cartesianas, o que poderá resultar na elaboração de um trabalho científico organizado, claro, conciso e sistemático.

Não se pode negar que a  clareza, objetividade e a organização metódica das etapas para a realização do trabalho certamente são características valiosas e positivas em uma pesquisa. Para isso, esteja o pesquisador a elaborar uma monografia,  uma dissertação ou uma tese em Direito, poderá valer-se do método cartesiano para tanto, alcançando bons resultados em tal empreitada.

 

5.1 O duvidar e a pesquisa

Descartes sugere, como visto anteriormente, que aquele que pretende conhecer algo deve duvidar, sendo esta a sua primeira premissa e, em realidade, a pedra de toque do seu pensamento. Ele recomenda que o espírito daquele que pretende conhecer a verdade não se precipite, não se antecipe apressadamente, detendo-se e questionando-se sempre, deixando de aceitar como verdadeira qualquer coisa que não tenha efetivamente conhecido como tal.

Em se tratando de uma pesquisa em Direito, esse duvidar pode ser entendido sob dois aspectos: como um verdadeiro problematizar um tema específico de forma criativa e como um duvidar, ou seja, adotar uma postura crítica.

Não há como se definir ou mesmo se aferir como cada pesquisador escolhe o seu tema, diante das inúmeras variáveis conscientes ou não que podem vir a influenciá-lo em tal decisão, como, por exemplo, as suas experiências pessoais ou a sua atuação profissional.

Entretanto, na escolha deste tema a ser trabalhado e estudado vale o conselho de Umberto Eco, para quem “quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha”[v].

Assim, uma vez definido o corte espistemológico, ou seja, após a restrição do tema a uma dimensão razoável, o pesquisador deve passar a problematizá-lo, ou seja, deve adotar uma postura crítica, um novo olhar, um novo aspecto.

Isso porque é indispensável que no trabalho de pesquisa em Direito sejam realizadas contribuições à ciência do Direito, é necessário demonstrar algo, ou seja, fornecer novos conhecimentos e idéias, colaborar, “dizer do objeto algo que ainda não foi dito ou rever sob uma óptica diferente o que já se disse”[vi].

Essa atitude de dúvida, de questionamento meticuloso com espírito sagaz e curioso do cientista é que se resulta na construção de um conhecimento científico.

Dessa forma, o pesquisador deve refletir, questionar, discutir, liberar o seu espírito, permitir-se duvidar de tudo. É a etapa da pesquisa em Direito em que aquele que a realiza busca em diferentes fontes, até mesmo nas inicialmente improváveis, todo o conhecimento que possa contribuir para o tratamento problematizado de um tema.

Acerca da importância de tal postura comenta Luiz Antonio Rizzato Nunes:

A definição muito clara dessas questões, isto é, a colocação do assunto de maneira problematizada, fará com que a excelência do texto surja. Uma problematização bem feita e solucionada revela a qualidade do pesquisador e de seu trabalho. E, o que é mais importante, nesse caso, um bom estudante que conseguiu cumprir a sua meta.[vii]

Isso quer dizer que o pesquisador ao duvidar, ao interrogar, acabará por refletir e chegar a uma solução temporária, uma hipótese, uma resposta provisória e possível para o problema apresentado. As respostas surgem deste perguntar, ou melhor, as prováveis  soluções para a problematização só podem ser alcançadas com a instalação da dúvida, residindo aí a grande importância do procedimento cartesiano.

No segundo aspecto, o método cartesiano também possibilita ao pesquisador em Direito, tão acostumado com o argumento de autoridade, a se despir de eventuais temores reverenciais que possa vir a constatar na elaboração da pesquisa. O estudioso deve se permitir, mesmo quando diante de autores consagrados, decisões de tribunais superiores ou mesmo de textos legais, questionar e adotar um posicionamento crítico na construção do seu pensamento. É preciso sair de uma postura passiva de aceitação de tudo. É útil fugir da anuência do consenso e ir além. Aí residirá a verdadeira contribuição daquela pesquisa em Direito.

 

5.2 O dividir e a pesquisa

A partir do momento em que o pesquisador já delimitou seu tema e o problematizou, ao final dessa operação, seguindo o método cartesiano, deve passar a dividir o tema problematizado em partes menores, dirigindo a sua atenção a cada uma dessas partes de forma ordenada e sistemática. Esta etapa revela o rigor indispensável ao pesquisador no tratamento do objeto pesquisado.

Ao pesquisador, portanto, sugere o método cartesiano que após fixar o que pretende demonstrar, para bem desenvolver a sua pesquisa caberá então investigar em quantas partes é possível destrinchá-lo, decompô-lo.

Ao realizar tal operação, poderá, eventualmente, se deparar com partes fáceis, singelas e simplificadas para as quais não se exigirão grandes reflexões.  Por outro lado, o oposto certamente ocorrerá com grande freqüência, sendo que o pesquisador irá se defrontar com partes complexas e difíceis na sua pesquisa.

Nessas ocasiões, poderá buscar Descartes, que sugere àquele que pretende conhecer algo deve iniciar o seu estudo pelas coisas mais fáceis, mais simples.

Assim, após dividir e identificar as partes componentes do seu tema problematizado, o pesquisador deverá inicialmente concentrar a sua atenção na simplicidade.

Recomenda Descartes:

Convém, pois, exercitar-nos primeiro nestas coisas mais fáceis, porém com método, a fim de nos acostumarmos a penetrar sempre na íntima verdade das coisas por caminhos claros e conhecidos, pois assim experimentaremos, pouco a pouco e em menos tempo do que se pode esperar, que nós também, com igual facilidade, podemos deduzir, de princípios evidentes, muitas proposições que pareciam muito difíceis e complicadas.[viii]

Isso significa dizer que aquele que pesquisa não deve se paralisar diante de eventuais obstáculos, especialmente quando sobre ele se abater a aflição de não solucionar e resolver aquela sua dificuldade que torna uma parte de sua pesquisa tão complicada e difícil de ser vencida. Poderá, ao invés de entrar em angústia, deter a sua atenção um pouco mais sobre as partes mais simples, formando um conhecimento tal das mesmas que poderá ser muito útil na solução daquela outra parte que lhe parece tão enigmática e complicada.

Nesse sentido, uma grande oportunidade também se abre ao pesquisador para que ele alcance uma profundidade no tema pesquisado, evitando tratá-lo de forma superficial e rasa. Isso porque ao dividir o objeto de conhecimento, o pesquisador enxerga com maior penetração aquilo que pretende conhecer.

Aqui também é o momento de se definir os marcos teóricos que compõem a pesquisa, delimitando-os de forma precisa e clara, evitando eventuais ambigüidades. A divisão em partes menores permite também esclarecer o ponto de onde se parte.

Essa divisão em partes menores, sugerida pelo método cartesiano será especialmente útil também na futura elaboração do sumário, ou seja, na divisão da pesquisa em títulos, seções e subtítulos, que devem ser razoavelmente detalhados e devem também guardar  correspondência com o tema total do trabalho.

 

5.3 O deduzir e a pesquisa

Como já visto no tópico 4, o método cartesiano sugere que a dedução é uma das formas, junto da intuição, para que o homem, no uso de sua razão possa chegar a uma verdade, ou seja, possa construir um conhecimento.

Descartes sugere, pela dedução, ser possível retirar-se uma conclusão a partir de um raciocínio que vai do geral ao particular. Este pensamento linear e lógico conduziria à enunciados precisos e livres de erros. Há aqui um movimento, uma sucessão de pensamentos que vai de uma verdade universal para uma outra particular.

Na pesquisa em Direito, o pesquisador, ao pretender realizar uma reflexão sobre um tema problematizado pode fazer uso da dedução, podendo de tal operação resultar justamente na originalidade de sua pesquisa, na sua contribuição acadêmica. Isso porque a dedução, quando bem empregada pode conduzir o pesquisador a um dado antes desconhecido que estava incógnito e oculto.

Outra forma de utilização da dedução cartesiana na pesquisa em Direito diz respeito ao modo como o pesquisador deve conduzir tanto a sua pesquisa bibliográfica, quanto a redação do seu trabalho. Assim, o deduzir acaba por revelar quais são os marcos teóricos, os pontos de partida do seu estudo.

Assim, na busca bibliográfica e documental o pesquisador poderá dirigir e orientar a sua pesquisa indo do mais geral, ou seja, partindo de noções teóricas mais universais com o estudo de aspectos filosóficos do tema, por exemplo, até noções mais específicas, com estudo de monografias já escritas sobre aquele mesmo tema.

Por outro lado, o raciocínio que vai do mais geral ao mais específico, por exemplo, pode levar facilmente a conclusões aparentemente lógicas, mas completamente equivocadas e para isso o pesquisador deve manter sempre o seu espírito alerta exigindo cautela na sua utilização.

O método dedutivo pode, ao partir de premissas equivocadas resultar em conclusões tão ou mais errôneas. Assim, muito embora o raciocínio dedutivo seja de grande utilidade, permitindo ao pesquisador formular conclusões e reflexões inéditas, o que inclusive é um dos objetivos da pesquisa em Direito, pode conduzir ao mesmo tempo a sofismas e equívocos. Nem por isso, todavia, o método deve ser descartado.

 

5.4 O enumerar e o revisar e a pesquisa

O método cartesiano sugere que o pesquisador, após cumprir as etapas precedentes, especialmente a de dividir o objeto do conhecimento em partes e realizar deduções,  enumere, ordene as idéias de forma concatenada.  Aqui a preocupação é com a ordem, com a arrumação do conhecimento, indispensável ao conhecimento científico.

Enumerar, de fato, pode ser muito proveitoso, como comenta Descartes:

Dizemos também que se requer a enumeração para completar a ciência, porque outros preceitos ajudam certamente a resolver muitas questões, mas só com a ajuda da enumeração se pode conseguir que, qualquer que seja a questão a que apliquemos o espírito, possamos sempre proferir um juízo certo e seguro sobre ela, e que, portanto, nada se nos escape, parecendo assim que de todas sabemos alguma coisa[ix].

Isso quer dizer que a divisão do objeto estudado, bem como a cadeia de dedução que lhe segue revelam em realidade, um encadeamento lógico do pensamento.

Esta identificação pelo pesquisador deste encadeamento, ou seja, das etapas para chegar a uma determinada conclusão após a investigação do tema está presente na regra VII das Regulae, que sugere que “é preciso examinar com um movimento contínuo e jamais interrompido do pensamento todas e cada uma das coisas que se relacionam com nosso propósito e reuni-las em uma enumeração suficiente e ordenada”[x].

Essa enumeração lógica conduz à sistematização do pensamento pelo pesquisador sob a forma de verdadeiros elos de uma corrente, permitindo ao mesmo observar com clareza de onde partiu, como prosseguiu e aonde finalmente chegou na construção do seu raciocínio.

Aqui a pesquisa mostra sua coesão, ou seja, o enumerar e o revisar irão evidenciar o entrelaçamento de idéias, a unicidade de pensamento e sua coerência.

Este passo permite também observar se em alguma dessas etapas ocorreram omissões, as quais seriam as verdadeiras falhas em uma pesquisa jurídica e evita que o pensamento, levando consigo o seu produto, entre num estado de confusão e superficialidade.

Essa ordenação das idéias também permite observar a possibilidade de realização de novas deduções, posto que fica mais claro a ordem como o pensamento foi  arrumado, permitindo uma revisão contínua de todo o trabalho realizado e a identificação das etapas onde podem ter ocorrido equívocos.

De fato, uma das preocupações de Descartes na enumeração e concatenação das idéias diz respeito à possibilidade de fácil identificação de possíveis erros, possíveis equívocos que podem conduzir a conclusões completamente falsas.

Enumerar permite ainda alcançar conclusões, soluções para os problemas apresentados.

Aliás, a preocupação com a solução dos problemas apresentados deve nortear a pesquisa em Direito, e, as possíveis respostas aos questionamentos formulados pelo ato de duvidar, que são as hipóteses não podem ser desprezadas. Antonio Henrique comenta essa contribuição:

A hipótese é definida, portanto, como solução tentativa; consiste em uma suposta resposta destinada a explicar provisoriamente um problema até que os fatos venham a contradizê-la ou confirmá-la, isto é, uma formulação provisória de prováveis causas do problema, objetivando explicá-lo de forma científica. É uma suposição que se introduz em um teste para demonstrar as conseqüências que seguem; portanto, não é mera opinião, ficção ou contraposição ao fato. Em geral, baseia-se, dedutivamente, na relação do problema com a solução proposta pelo pesquisador, tendo em vista verificar a validade da resposta.[xi]

Não há dúvidas que o pesquisador em Direito deve sempre demonstrar a relevância e atualidade do seu tema, bem como contribuir para a solução de alguma questão importante, jamais devendo se despreocupar com o arremate das suas idéias. Sistematizar, analisar, refletir, deduzir certamente se mostrará algo inútil e infrutífero se o pesquisador perder o seu fôlego e desistir de concluir.

 

6 A IMPORTÂNCIA DO MÉTODO CARTESIANO: UMA CRÍTICA

Como visto, o método cartesiano pode contribuir muito para a realização da pesquisa em Direito, especialmente quando se mostra como um instrumental à disposição do pesquisador apto a auxiliá-lo na organização de idéias e elaboração de um trabalho conciso, claro e sistemático.

Entretanto, muito embora René Descartes acreditasse fervorosamente na utilidade do método, bem como na sua eficiência e eficácia no encontro da verdade, não se pode concordar inteiramente com ele.

Ora, de fato o método cartesiano mostra-se muito proveitoso, entretanto, além de não ser o único à disposição do pesquisador, certamente não deverá ser o exclusivo na elaboração de uma pesquisa. Há outras metodologias que muito podem contribuir positivamente para a elaboração de uma pesquisa, especialmente em Direito, como é o caso do empirismo, do estruturalismo, do funcionalismo e da própria dialética, entre outras, que aqui figuram apenas à guisa de exemplo.

A utilização de apenas um método pelo pesquisador, ou ainda, sua crença exagerada e cega na falibilidade do mesmo pode conduzir a uma pesquisa insossa e pobre. É preciso reconhecer a utilidade de uma metodologia, mas não se apegar a ela excessivamente. Essa é a opinião de Pedro Demo:

Como em tudo na vida, a ciência não é ensinada totalmente, porque não é apenas técnica. É igualmente uma arte.  E na arte vale a máxima: é preciso aprender a técnica para termos base suficiente; mas não se pode sacrificar a criatividade à técnica; vale precisamente o contrário; o bom artista é aquele que superou os condicionamentos da técnica e voa sozinho. Quem segue excessivamente as técnicas, será por certo medíocre, porquanto onde há demasiada ordem, nada se cria.[xii]

A crença fiel e fervorosa de Descartes no método, portanto, não deve contaminar completamente o pesquisador, a ponto de este acreditar tão fielmente no mesmo que nenhum outro lhe pareça útil, ou mesmo que esta é a única forma de pensar ou de sistematizar um pensamento.

 

7 CONCLUSÕES

O método cartesiano revolucionou o pensamento filosófico ao propor a razão como a protagonista no conhecimento de qualquer objeto. Foi justamente em nome dela que  René Descartes construiu um método que acreditava ser o caminho para alcançar a verdade.

Foi ainda em nome da sua preferência pelo estudo da matemática que Descartes acabou por criar um método inspirado na lógica de tal conhecimento, aplicando-o à filosofia.

Esse método contém uma série de regras, de conselhos, de processos, de instrumentos que podem levar aquele que pretende conhecer algo a ter sucesso em sua tarefa.

Desta forma, por se tratar de um instrumental prático, pode ser aplicado também por aquele que realiza uma pesquisa em Direito. Suas quatro premissas básicas, identificadas como duvidar, deduzir, dividir e enumerar e revisar podem ser bem úteis na construção de uma pesquisa quando empregadas por um pesquisador sagaz.

Dessa forma, essa transposição do método cartesiano à pesquisa jurídica mostra-se benéfica e apta a conduzir o pesquisador à realização de um trabalho sistemático, coeso e coerente.

Todavia, ao contrário do que defendeu Descartes, o método em si não conduz necessariamente ao conhecimento eivado de quaisquer erros. O pesquisador deve empregar o método, sem, entretanto ser por ele atado e limitado.  Deve ter a noção e a consciência de que é possível elaborar uma pesquisa em Direito utilizando-se de um método eficaz para tanto, mas jamais que tal método substitui um espírito curioso, corajoso e audacioso.

 

8 REFERÊNCIAS

CERVO, Amado Luiz. Metodologia científica. 4ª ed. São Paulo: MAKRON, 1996.

DEMO, Pedro. Introdução à metodologia da ciência. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1997.

DESCARTES. Discurso do método. Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2008.

NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Manual da monografia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1997.

OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Metodologia científica aplicada ao direito. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisas.  4 ed. São Paulo: Atlas, 2002.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1983.

HENRIQUES, Antonio. Monografia no curso de direito: trabalho de conclusão de curso, metodologia e técnicas de pesquisa, da escolha do assunto à apresentação gráfica. 4ª ed, São Paulo: Atlas, 2004.


[i] Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região e Mestranda em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia.

[ii] CERVO, Amado Luiz. Metodologia científica. 4ª ed. São Paulo: MAKRON, 1996, p. 20.

[iii] OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Metodologia científica aplicada ao direito. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 30.

[iv] GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisas.  4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 17.

[v] ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1983, p. 10.

[vi] Idem, p. 22.

[vii] NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Manual da monografia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1997.

[viii] DESCARTES. Discurso do método. Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 101.

[ix] Idem, p. 90 e 91.

[x] Ibidem, p. 90.

[xi] HENRIQUES, Antonio. Monografia no curso de direito: trabalho de conclusão de curso, metodologia e técnicas de pesquisa, da escolha do assunto à apresentação gráfica. 4ª ed, São Paulo: Atlas, 2004, p. 41.

[xii] DEMO, Pedro. Introdução à metodologia da ciência. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.22.

 

Rafael Cruz Bandeira[1]

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Contribuição do método científico e de teorias do conhecimento no direito para uma busca da decisão justa. 3 Caráter argumentativo do direito. 4 Decisão justa como decorrência da argumentação e do discurso jurídico. 5 Conclusões. 6 Notas. 7 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

Trataremos neste ensaio de um embasamento teórico de um procedimento para chegar a uma decisão jurídica mais justa como resultado procedimental de uma adequação do discurso jurídico a um método no qual será desenvolvida argumentação. Isso lançará base para visualizar que a operação final do Direito é mais complexa do que lei e mais correta que decisionismo, e inexoravelmente é permeada de valores e ideologias.

Diz-se que padrões científicos exigem objetividade. Como ser então cientifico ao tratar de justiça? Tais conceitos vagos não têm existência objetiva, mas conceitual. Não existem a priori, decorrem de processo racional sobre um acontecimento ou situação.

Nesse sentido, a justiça, bem como uma decisão justa, não é um dado no mundo, mas um resultado de uma operação analítica com variáveis nem sempre definidas anteriormente, todavia definíveis num processo concreto, como o judicial, onde método, argumentação e discurso jurídico se entrelaçam para formar teia sólida da justiça e equidade em cada caso.

 

2 CONTRIBUIÇÃO DO MÉTODO CIENTÍFICO E DE TEORIAS DO CONHECIMENTO NO DIREITO PARA UMA BUSCA DA DECISÃO JUSTA

A metodologia científica nem sempre andou de braços dados com as ciências sociais. De fato, a característica argumentativa e valorativa mais saliente nessas ciências, e.g., no Direito, levaram  estudiosos (DESCARTES, 1985) a descartar como ciência aquelas que não pudessem apresentar resultados objetivamente mensuráveis, baseados em verificação empírica e raciocínio dedutivo1.

Descartava-se, assim, a dialética de Aristóteles, que leva à verossimilhança, expediente criticado por Descartes2 (1996, p. 78). No entanto, de grande valia ele e Bacon quando sacudiram a estrutura dogmática da época, criticando verdades postas e aceitas por todos sem análise crítica ou científica. Na opinião deles, o conhecimento e estrutura dados ou impostos na sociedade tornavam-se um dogma ou um ídolo (BACON, 1997) que  aprisionava e limitava o pensamento e o desenvolvimento.

Inicia, então, desde o século XVI, uma metodologia que, opondo-se à escolástica medieval, questiona dogmas e conhecimento dado pela via de construções racionais e científicas, a exemplo de proposições passíveis de dedução ou indução.

Entretanto, a ciência não é só quantificar, derivar proposições ou induzí-las, mas raciocinar sobre fatos nem sempre empiricamente testáveis, propor modelos e valorar situações, como nas ciências sociais e no Direito.

Neste sentido, Boaventura (SANTOS, 1995, p. 14) critica o paradigma dominante e o pretenso rigor científico que se pretende infalível:

[…] é ainda Einstein quem nos chama a atenção para o fato de os métodos experimentais de Galileu serem tão imperfeitos que só por via de especulações ousadas poderia preencher as lacunas entre os dados empíricos.

Em outro estudo, através de concepção tópico-retórica, o mesmo autor apresenta crítica quanto à conversão da ciência jurídica numa dogmática […]

ou axiomática, da qual seria possível deduzir soluções concretas no quadro de um sistema fechado de racionalidade tecno-jurídica” (SANTOS, 1988, p. 07).

Do mesmo modo, não se pode com o discurso em geral, particularmente o discurso jurídico pretender verdade absoluta, apenas a relativa, e “suas condições de validade nunca transcendem o circunstancialismo histórico-concreto do auditório” (SANTOS, 1988, p. 08).

Mutatis mutandis, isso será importante na construção da justiça e equidade, onde, muito além de se tomar o dado social isolado, como lei, comportamento e valor, podemos problematizá-los num amplo contexto argumentativo, trazendo novas concepções, dados, consequências ou razões.

Para Bunge (1987, p. 29-30), o método científico é o que nos aproxima mais da verdade, embora não seja infalível nem auto-aplicável3 Dessarte, se não podemos por puros silogismos chegar a uma verdade no Direito, pode-se sim utilizar método científico para chegar à melhor solução do problema, a justiça no caso concreto.

Ainda podemos responder com Bunge o que faz forte a ligação do Direito, metodologia e justiça, e com isso também surgirá importante divergência quanto à “verdade” proposta por ele.

Para ele, na resolução dos casos, deve o juiz estabelecer a verdade como tarefa primeira, porém na busca desta deve haver investigação independente e não se poderá atuar por intuição, além de haver de se chegar à verdade sob pena de não ser possível a justiça:

[…] la justicia depende críticamente de la verdad. Una persona o un filósofo que sostenga que la verdad es inalcanzable, …, no puede, a la vez, ser justo, no puede promover la causa de la justicia (BUNGE, 2000, p. 124).

Deve, outrossim, o método ser adequado ao conhecimento que se está buscando4 (BUNGE, 1987, p. 24).

No entanto, e aqui cabe nossa crítica à verdade proposta por Bunge, através de estudo de Gould (1999)5, vemos que a verdade científica, por mais que nos modelos lógicos e racionais mais matemáticos, estão imiscuídos com interesses, ideologias, ou seja, tendem para determinado ponto de vista ou finalidade.

A partir do método de Bunge, acreditaríamos numa verdade plena e cientificamente comprovada, o que foi desmentido por Gould através de exemplo da escola da criminologia positiva de Lombroso ou estudos sobre evolução das diversas raças humanas. Estudos estes que enquadram-se em lógica formal rigorosa e comprovação por dados coletados, mas pela forma, ideologia e preconceito que tinham inerentes a si, afirmaram como verdades grandes erros e preconceitos.

Popper (2004, p. 34), por sua vez, afirma o suporte lógico das teses nas ciências sociais, mesmo que elas não possam ser comprovadas, haja vista serem postas a críticas e comparações com outras teorias. Crê que, apesar de não podermos justificar logicamente nossas teorias, mas apenas levá-las a críticas, deve-se superar niilismo, uma vez que ao expor as teorias a crítica racional poderemos distingui-las das piores.

Com isso, abre-se justamente o caminho para a chegada à justiça pela construção de modelos mais próximos ao ideal, que passa pela via do debate, pelo discurso jurídico e argumentação contraposta e a posteriores críticas: acadêmica, corporativa nas cortes, e da sociedade, com vistas a aprimorar, conformar ou reformar entendimento, valoração e legislação.

O Direito tem característica de ser orientado por valores, possui normas carentes de interpretação e de texturas abertas, por vezes remetendo a conceitos indeterminados. A ciência do Direito não aceita dedução silogística pura e simples, é mais complexa e menos segura que lógica formal, pois está permeada de princípios e valores. Contudo, nem por isso dispensa método6 (LARENZ, 1997, p. 02), ao contrário, o exige na busca de uma solução justa.

Destarte, contradiz-se aqui, em parte, tanto Descartes, pois a dialética também integra método científico, quanto Bunge, ao ressalvar que a acepção da palavra verdade, quando em uso pelo Direito, está ligada à verossimilhança, posto que o Direito não é ciência exata, e por isso não tem apenas decisões de caráter demonstrativo, mas sim interpretam-se os fatos, conceitos, o alcance, o sentido da lei. Seu caráter é dialético, argumentativo e busca a validade de determinada asserção ou tese pelo uso de melhores argumentos e convencimento, com o ordenamento jurídico como pano de fundo.

Será procurada  a verdade no caso concreto, que, como nem sempre poderá ser demonstrável de plano, corresponderá à verossimilhança7 (PERELMAN, 2003, p. 01), o que mais se aproxima do justo e do equânime no caso dado, e nesse processo o discurso jurídico será unido à argumentação para se chegar ao justo daquele caso, sobre aquelas circunstâncias, dados os valores envolvidos e o espaço-tempo da decisão.

Haja vista o Direito ter como fonte de conhecimento a linguagem, sistema simbólico, não poderá afastar-se da interpretação e da tradição (conjunto de conhecimentos postos e sedimentados num tempo dado).

Assim, com Ricoeur (1978, p. 27-28), os símbolos têm variados significados no tempo, afetados pela tradição e interpretação. Na situação concreta é que se desvelará qual seu sentido mesmo. Para ele, enquanto a tradição mitologiza o símbolo, quando vai do tempo oculto (o símbolo em si com todas as suas possibilidades de acepções) ao tempo esgotado ( mítico dogmático: petrificação de sentido) (RICOEUR, 1978, p. 28-29), a interpretação faz o caminho reverso, subindo do mito ao símbolo e sua reserva de sentido, do tempo esgotado ao oculto.

Em que pese a pretensa segurança da generalização e abstração que as leis ou precedentes podem trazer, como ideais universais, o conhecimento buscado pelo Direito é local8 (SANTOS, 1995, p. 47), para uma realidade determinada onde o caso se discute, por mais ampla que seja, e total, pois se buscam todos os fatores e conhecimentos que influam ou sofram influência na aplicação do Direito. E não universais (sem realidade específica) e pontuais (com déficit de transdiciplinaridade, com microvisão de cada problema, num posicionamento linear e simplista) como muitas leis.

Neste sentido, as ideias de Sartre (1987, p. 176) de haver imbricação entre fatos e a época em que eles são considerados e um conflito quando buscamos esses fatos ou objetos em sua profundidade9 Para ele as instituições e as condições materiais atuam no dado objetivo, que atua no subjetivo e este atua nas próprias instituições e condições materiais.

A lei posta, o fato ocorrido e o contexto social como objetos do Direito e fenômenos no mundo passam por uma interpretação e uma avaliação, quer seja na perspectiva do seu sentido linguístico, posição valorativa e ideal de aplicação.

Importante observar com Durkheim (1999), que, assim como fatos sociais, a busca pela decisão mais justa e equânime para o caso deve ser posta objetivamente, e não com noções antecipadas e estereotipadas, mas de forma a poder ser estudada diretamente por outras pessoas, afastando condições psicológicas e corporativas (orgânicas).

Assim, visa-se uma aplicação do Direito que, ao ter em conta seus efeitos futuros, decline essas consequências objetivas para crítica e controle dos tribunais, dos pares ou da sociedade; ao considerar as circunstâncias pessoais e espaciais, indique em que se baseia o conhecimento produzido que supõe as características diferenciadas da pessoa e localidade no tempo. Ou seja, que objetive e exponha os dados brutos e os já analisados, para possibilitar conhecimento e controle por outros.

Falando de diferenças, cumpre ainda ressaltar obra de Derrida (1971), quando atine para importância em se considerar diferenças nos homens e respeitá-las. O padrão dominante não pode excluir o diferente apenas e simplesmente sem considerá-lo outra via, outra forma de expressão. A diferença pode ser analisada pela desconstrução. Não aceitando status quo, discutindo formas existentes, aceitando diferença e denunciando absurdo.

Em importante estudo referente a Derrida, Balkin (1987) desenvolve tese de que não há fundação firme suficiente que não caiba suplementação, assim, para o autor, não há verdade fixa, e esta é a base da argumentação, pois a verdade é construída pela mostra dos opostos. E para Balkin e Derrida a diferença é importante porque é o que mostra as coisas, pelo oposto vemos o normal.

Balkin afirma que a desconstrução serve de método para: -criticar doutrinas legais (e.g., como argumentos minam a própria regra que se quer sustentar e apoiam uma contrária); – mostrar como os argumentos de doutrina são influenciados por ideologias e as mascaram; -uma estratégia de interpretação e crítica da interpretação convencional10.

Prossegue Balkin nesse trabalho sobre ideias de Derrida sustentando que a ideologia está em tudo, e nos faz ver coisas sem raciocinar sobre o que está por trás, uma prisão para a mente. Devemos ir atrás das ideias desconstruindo o que está posto, invertendo prioridades, chegando a novos consensos e novos paradigmas.

Destarte, não devemos deixar hierarquia do pensamento que está em todo o lugar tolher iniciativas e boas práticas, mas buscar o mais próximo do ideal, que seria o justo. Assim, a justiça deve ser buscada de forma crítica para não ser usada como a construção dada e fundada pela ideologia. Derrida quer chegar na ideia que os conceitos são dependentes e não superiores, como identidade e diferença (Balkin, 1987, p. 07 et seq.).

Prossegue Balkin (1987, p. 24) defendendo que desconstrução não é niilista, como acusam. Não é negação de princípios, mas chamado a ver outras áreas menosprezadas. Desafia-se o que é dado e a suposta necessidade, além da encrustada ideologia nossa.

Levando em consideração tais ideais, a justiça só pode ser feita individualmente, nas circunstâncias do caso. E a forma de ponderação e argumentação realiza esse valor querido por Derrida e Balkin, quando permitem o intercâmbio de argumentos e de valores transcendentais.

Ainda neste mister de abrir caminho a um novo olhar e não somente paradigma único, o que é extremamente necessário no Direito e viabilizado pelo discurso jurídico e processo argumentativo, Deleuze (1974) contribui refletindo que o  bom senso ou senso comum tem seu oposto que não o deixa ser um caminho único.

Então, as formas de existência e da sociedade comportam diversos paradoxos, e estamos inseridos neles. A ideia exclusivista de um paradigma dominante pode e deve ser contraposto e analisado à luz dos paradoxos, que é o elemento que anima as séries do real e imaginário. As dualidades são ínsitas às coisas e às proposições (DELEUZE, 1974).

Pelo exposto, podemos crer estar bem suportada na metodologia científica a tese que de podemos sim chegar a uma decisão justa no Direito, com base na racionalidade da decisão e na verossimilhança de seus fundamentos, exposta a crítica e controle, que será baseada no discurso jurídico e na argumentação como via de trazer mais elementos ao Direito que apenas normas.

 

3 CARÁTER ARGUMENTATIVO DO DIREITO.

O Direito é validado na forma de verossimilhança, pelo provável, não pela evidência e pela lógica formal da passagem necessária das premissas à conclusão. Distingue-se ai o raciocínio dialético, sujeito a refutação por outros argumentos, do analítico, que tem seu campo delimitado a uma eterna subsunção de proposições, onde pode-se afirmar o certo e o errado11 (PERELMAN, 2003, p. 05-06). Mesmo positivistas como Hart (e mesmo Kelsen) demonstram a inescapável obrigatoriedade da interpretação e da abertura do Direito12 na sua fundamentação e aplicação (HART, 2001, p. 140-141).

O que, no entanto, não deixa Hart tão permeável a influências valorativas e principiológicas quanto poder-se-ia esperar, porém apenas o levando a conferir discricionariedade judicial pela impossibilidade de encontrar no direito vigente a exata solução do caso concreto (PINTO, 1997/1998).

Já seu sucessor na cátedra, Dworkin, vê sistema jurídico como complexo de normas, diretrizes e princípios não alheios às regras de justiça, além de adepto a modelo de decisão judicial vinculada a resposta correta, ao invés de livre apreciação e voluntarismo judicial. Seguindo sua crítica ao positivismo de Hart, baseou a distinção entre regras e princípios numa natureza lógica, onde princípios seriam exigências de justiça, equidade ou moralidade13 (MARTINS e OLIVEIRA, 2006, p. 248).

O que nos propomos a argumentar aqui é que a chamada discricionariedade judicial é a restrição do juiz à melhor solução, a mais justa, considerando especificidades do caso, efeitos da decisão, valores. Não há decisionismo no sentido de que juiz possa decidir por caminho que não seja o mais indicado pelas circunstâncias do caso, apesar da possibilidade de existirem decisões difíceis, aquelas com bons argumentos para ambos os lados contrários, o que não exime a busca pela melhor solução e a tomada de decisão que se creia a mais justa.

Indo além, MacCormick (2008), que, sem abandonar completamente as ideias de Hart ou de Dworkin, agregou o elemento da retórica na própria consecução do Estado de Direito (Rule of Law), propõe teoria sobre argumentação no Direito, por ser disciplina argumentativa, devido à sua forma dialética14 Neste diapasão, ao tratar da aparente insolubilidade do Estado de Direito como segurança da aplicação de regras pré-definidas, claras e inteligíveis a todos os cidadãos e o caráter argumentativo do Direito, que pressupõe tese e antítese apresentados com objetivo de persuasão e convencimento, MacCormick sustenta tanto a compatibilidade entre segurança jurídica e argumentação quanto uma relação de imbricação e necessidade recíproca15 entre eles.

Não são contraditórios a argumentação e o Estado de Direito, pois a certeza não é o único valor presente no Estado. Além de ser a certeza, defeasible, ou seja, excepcionável, provisória, o que comunga com o caráter argumentativo do Direito. A cada novo caso pode-se objetar uma diferenciação, uma especialização. Intentar-se-á enquadrar caso em regras gerais de justiça já estabelecidas como os precedentes, no entanto, essas regras não serão imutáveis e aplicáveis de imediato, senão estaríamos consagrando um dogma, uma estagnação da valoração, do conhecimento, dos fatos sociais e da sociedade.

Os fatores influentes relativos a cada caso influirão como topoi, no dizer de Viehweg (1964), que nada mais são do que elementos de convicção acerca de certo posicionamento sobre uma questão posta em discussão.

Tratando da legitimação argumentativa, Perelman (2003) traça as diferenças entre a demonstração, derivada de lógica formal, da argumentação, que busca a adesão dos ouvintes (auditório particular) e da coletividade das pessoas (auditório universal)16 De forma que, a demonstração é a passagem de premissas a uma conclusão.

Entretanto, na argumentação o caminho é mais complexo e não há forma predefinida para chegar ao fim pretendido: a persuasão e convencimento17 Tratar-se-á de trazer argumentos (topos para Viehweg) como normas, fatos, estudos, opiniões, consequências de determinados fatos sociais, como forma de fundamentar uma tese principal sustentada na qual se busca a aceitação de grupo de pessoas restrito ou amplo.

Quanto mais amplo for o auditório, tendendo a ser universal, mais será a legitimidade do consenso acerca de determinada questão (PERELMAN, 2003, p. 45), uma vez que todos os seres humanos são racionais e que podem contestar quaisquer argumentos, premissas, conclusões,  e passagens das premissas a conclusões.

Na visão de Alexy (2001), o discurso não é procedimento arbitrário porque é racional, através de processo de tomada de decisão em que são considerados todos os argumentos das partes e feitas considerações com base neles, seguindo-se regras do discurso jurídico, o qual é caso especial do discurso racional prático.

Para Alexy, dessarte, as regras citadas é que garantirão a racionalidade do discurso, justificação interna e externa. O correto é sempre provisório. O discurso busca alcançar consenso, a “verdade” (verossimilhança) o é pela aceitação dos demais, e não pelo seu caráter último e imutável. Isto ocorre pelo uso da razão prática racional, que não admite verdades definitivas (ALEXY, 2001, p. 272). Quem quer verdades tem que abandonar a razão, e.g., no discurso religioso. Quem usa razão deve abandonar verdades.

Insta pontuar que no paradigma de uma teoria da justiça para Rawls, este visualiza construção de uma justiça advinda do Contrato Social, onde todos restringem uma parte da liberdade para vida em coletividade, baseada em Locke, Rousseau e Kant,  a ideia norteadora é de que são os princípios da justiça, numa estrutura social básica, que serão objetos de consenso original entre os pactuantes do contrato Social. Nas palavras do autor: “São esses princípios que pessoas livres e racionais preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação” (RAWLS, 2000, p. 12).

Tal posição se parece bastante com regras do discurso racional quando tratam da reflexividade, reflexividade geral e generalização. Haja vista que no discurso racional prático, ao se propor argumento, este deve seguir a análise de aceitação do mesmo para o falante e para todos nas mesmas condições, e ao se distinguir uma pessoa das outras deve-se justificar.

Tratando-se de Habermas (1997), verdade é acordo entre todas as pessoas. Verdade não vem dos fatos, mas da aceitação dessas fatos. A democracia deve garantir procedimentos para a busca da participação das pessoas no Direito e no Estado, além de submeter estes procedimentos a racionalidade18.

Para ele, a fonte da legitimação do Estado Democrático vem da “estrutura discursiva de uma formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados” (HABERMAS, 1997, p. 28).

Por seu lado, vê Günther (2011) duas atividades na justificação das normas, quais sejam, mostrar razões para aceitá-la ou relacioná-la a situação prática verificando sua adequação.

Para o autor, o princípio de universalização de Habermas (consequências aceitas por todos, que resultem do cumprimento geral e da satisfação de cada um, preferidas a de outras normas) considera num mesmo momento aplicação e fundamentação de normas. Todavia, não há confundir aplicação de princípio moral com aplicação de norma que pode fundamentar-se nesse, em todo caso “um princípio de fundamentação, sem referência a situações de aplicação, per se seria uma fórmula vazia” (GÜNTHER, 2011, p. 10).

Ao afirmar a especialização dos discursos na fundamentação de pretensões de validade, Günther (2011) propõe um princípio que universalize determinada regra a todos, chamando-o de “U” 19 O princípio “U”  em discursos práticos assume função de regra de argumentação, para gerar juízo imparcial acerca de validade da norma, que vem da concordância das razões de justificação da norma.

Destarte, para Günther, os participantes do discurso buscam verdade a partir de processo argumentativo. O princípio “U” é transformado em princípio ético do discurso D, “segundo o qual uma norma só será válida, quando cada uma a aceitar (ou possa aceitá-la) como participante de um discurso prático” (GÜNTHER, 2011, p. 36).

Ainda para este autor, o discurso de aplicação da norma combina sua pretensão de validade com o contexto apresentado, dentro do qual a norma é aplicada (GÜNTHER, 2011, p. 38). Por outro lado, já discursos de fundamentação devem fazer a dinâmica da aplicação parar e generalizar uma determinada norma e sua aceitação por todos.

Na aplicação do Direito, na bem acabada construção de Günther, não se trata ainda da análise de interesses generalizáveis e particulares, o que fica para a fundamentação, mas sim de uma interpretação que: “à luz de todos os sinais característicos de uma situação, seja coerente.” (GÜNTHER, 2011, p. 63).

Importa ressaltar, todavia, que ao se tratar seja de fundamentação ou de aplicação do Direito, estamos em plena atividade argumentativa e discursiva, com as características aqui traçadas que compõem um processo de oportunidades de produção de argumentos, conjecturas e discussão, através da estrutura normativa posta.

Assim, cremos ser a argumentação inerente e indissociável do Direito, tanto na fundamentação do Direito e levantamento de premissas racionais que embasem uma decisão, quanto na aplicação em si do Direito ao caso, oportunizando controle e crítica da decisão judicial posta.

Estamos com aqueles que acreditam que a argumentação é também forma de realização do Estado de Direito, já que possibilita postulação e defesa frente ao Estado e particulares e apontamento de inconsistências e despropósitos nas decisões judiciais, ordenamento jurídico em si e na estrutura judicial, política e de poder do Estado.

 

4 DECISÃO JUSTA COMO DECORRÊNCIA DA ARGUMENTAÇÃO E DO DISCURSO JURÍDICO

O Direito não pode renunciar à argumentação para chegar a decisões mais acertadas, muito menos abrir mão do discurso jurídico de forma a possibilitar interpretação e contextualização.

Por isso a filosofia do Direito e as teorias do conhecimento e de como se chegar a este são tão importantes e foram aqui trabalhadas. O entendimento de que a ciência do Direito não é independente de outros fatores, especialmente os sociais, nem pode ser reduzido a mera aplicação mecânica ou formalmente dedutiva nos leva a buscar outras fontes de conhecimento para uma aplicação mais próxima da justiça em cada caso.

Santos (1995, p. 46) apoia isto quando assevera que “o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida”.

Inicialmente, sobre teorias do discurso jurídico, citamos Amando Júnior: “Normas e textos jurídicos são categorias vinculadas a um único gênero: os discursos jurídicos. São através dos discursos que os conflitos de valores subjacentes aos litígios concretos do direito são resolvidos” (2006, p. 134). Na ideia do citado autor, os significados jurídicos são determinados pelos valores constantes da própria estrutura do sistema.

Habermas por sua vez propõe construção do Direito com nexo em racionalidade comunicativa, incluindo democracia e agir comunicativo. O Direito mantém característica da coerção, mas também da autolegislação, onde terá função precípua de realizar integração social, pois deve-se entender as normas feitas através de participação democrática e consenso no agir comunicativo, a título explicativo, Pinto20.

Larenz (1997, p. 165) também sustém que situação e norma dependem de interpretação e que toda e qualquer circunstância pode vir a relevar nesse processo, afastando adequação das exigências do conceito positivista de ciência. Segundo ele exige-se ainda a observância da lógica e da razoabilidade, já que constatações empíricas e refutações não são possíveis ou só raramente o são.

Assim, não fecha a porta para ingrediente subjetivos, operações de ponderação e ratificação através do intelecto. Até porque Larenz crê que se acolhermos que os juízos de valor não podem ser fundamentados racionalmente, a discussão metodológica adquire força detonadora no plano jurídico-constitucional, e acrescentaríamos, também na busca da justiça, uma vez que não seria possível vinculação à lei e à Constituição já que não se saberia o que motivou a decisão judicial.

Larenz (1997) reputa a Perelman renovação de discussão cientificamente séria sobre justiça, crê que seu método argumentativo para se chegar à justiça satisfaz os ditames científicos, assim como a tópica de Viehweg, no entanto esta última forma de argumentação não serviria ao caso concreto por ser interminável sua discussão.

No entanto, vale notar que, como mais uma forma de argumentação possível, a utilização dos topos, nada há em desfavor da tópica, em que pese sua restrição como método único para decisão do caso. Haja vista sua complementação com considerações sistemáticas e valorativas, ou seja, processo de fundamentação racional considerando pontos mais relevantes e numa consideração em conjunto ou sistêmica, ao invés de pura pontualidade tópica. Como exemplo, o peso da Constituição, lei ou precedentes, que, por  serem opções escolhidas e representativas da sociedade e formas de universalização do Direito, têm destaque numa decisão judicial (mas não exclusividade, como aqui fundamentado).

De notar que, aos olhos de Larenz a Jurisprudência de valoração não tem aversão à argumentação, mas, pelo contrário, acredita ser via com que se pode concordar, à semelhança de uma metodologia adequada para pesquisa juscientífica, parecer ou fundamentação de julgamento (LARENZ, 1997, p. 212).

A seu turno, Sartre, em crítica ao positivismo, diz que sua mistificação suprema é a retirada do a priori na abordagem da experiência social, assim retirou o homem do estudo do campo social21 Esqueceu-se, no ramo do Direito, que ele é discurso jurídico, e, por sua vez, está ligado à compreensão, argumentação e interpretação dos fatos e normas à luz de valoração e fenômenos sociais.

À guisa de exemplificação, com Ricoeur, vemos que um símbolo separado não possui sentido ou possui sentido demais, pois fora do contexto o fogo pode ser a concupiscência ou o espírito santo. O contexto é que dá o sentido do símbolo: “É numa economia de conjunto que os valores diferenciais se manifestam e que a polissemia se reprime” (RICOEUR, 1978, p. 51). Em contrapartida, porém, também não há inteligência hermenêutica sem o intermédio de uma economia, de uma ordem, nas quais a simbólica significa.

Justiça e Direito são escorados em valores. Valores não são imutáveis nem são absolutos, são como princípios, ponderáveis, a racionalizar e utilizar da razoabilidade.

Então, a justiça não pode ser materialmente apreensível sem delimitação espaço-temporal: uma tribo indígena isolada na amazônia, e.g., mesmo hoje pode fazer uma justiça completamente injusta aos nossos olhos. Uma decisão injusta no Brasil na época do Império pode nos ser justa na análise contemporânea. Sabemos os valores de ontem e  de hoje, mas não os de amanhã. Não há uma disciplina científica cujo objeto seja oposto ao da História: estudar o que acontecerá. Apenas podemos prever fatos vindouros  por puras especulações, mesmo que bem fundamentadas e até como objeto de pesquisa científica.

Assim, pode-se tentar julgar fatos passados por valores passados, ou por valores presentes, ao modo de comparação histórica, mas não se pode antecipar uma decisão justa aos olhos do porvir. O devir é que é a regra, a mudança incessante dos fenômenos. Por conta disso, também, a adequação discursiva e argumentativa do Direito.

Mesmo que tenhamos uma certa continuidade histórica de  determinados pensamentos e valores em determinadas sociedades o devir nunca permitirá que o mesmo fato ocorra da mesma forma com as mesmas pessoas, a transformação ocorrerá em todos os aspectos, por mais que pareçam objetivos como a própria linguagem, que ainda assim terá sua tradição e sua interpretação, como vimos em Ricoeur.

Com isso não se legitimam fatos pretéritos criados por uma ideologia demagógica ou hipócrita, usualmente baseada no poder de fato e não nos valores sociais, senso comum ou considerações plurais.

Aqueles fatos distorcidos mesmo à luz da época não se legitimam, mas apenas buscarão argumentação oportunista, discursos inflamados buscando sentimentos exasperados e sem reflexão, tentativa de manipulação ideológica por comunicação de massa. A exemplo da utilização de gênero epidítico tratado por Perelman ou da busca do mito por Nietzsche, do espírito dionisíaco e trágico, sem considerações crítico-históricas, de forma a se posicionar a favor de um mito impulsionador de sentimentos e bloqueador de razão (NIETZSCHE, 1984).

De fato, apenas uma análise profunda distinguirá os fatos legítimos de seu tempo e os fatos oportunistas dele, os que foram gerados dos valores efetivos e mínima comunhão social necessária daqueles que foram apoiados em ideologias impostas, massificadas e verticalizadas pelo poder de fato que visavam artificializar valores, usualmente anti-humanitários, como abundam exemplos na história. Todavia, será certamente tanto mais fácil o desvelamento do oportunismo ou da realidade social quanto mais perto o tempo e o espaço do fenômeno ocorrido.

Já na obra de Engisch (1968) faz-se excelente exposição entre Direito posto e sua interpretação e aplicação nos cânones tradicionais, além de outra valiosa exposição sobre a textura aberta à metafísica e considerações principiológicas e valorativas da ideia de Direito22 (Direito justo).

O que nos pareceu faltar foi justamente uma ligação entre essa dicotomia que o autor realizou, a conexão necessária entre as normas jurídicas e interpretação de  textos e fatos, na construção de suas premissas de aplicação legal e a necessária abertura do Direito a valores e à decisão justa, construída à sua época e  por referência a seus valores e contexto, com uma certeza provisória do que foi decidido.

De sorte que propõe-se ultrapassar noção de relativismo axiológico, que não haverá nada a se fazer para uma justiça efetiva, mas nos contentar com a pauta existente e o dado. Pois se o existente assim o é, decorre de senso comum ou de racionalidade específica, que pode ser criticada, argumentada, debatida, como aqui demonstrado, inclusive utilizando-se de metodologia do conhecimento na metodologia do direito.

Justamente o que tratamos é de ligação metodológica de uma filosofia do conhecimento, que Engisch aparta do Direito e assim o desertifica, com método apenas jurídico. A dicotomia que traçou entre métodos racionais, transcendentais, dialéticos, entre outros, e o método jurídico não se justifica. A busca do conhecimento é total, o Direito ultrapassa meras considerações textuais de lei e precedentes, mesmo que interpretados por método jurídico que trata Engisch.

Podemos ver, já em Kaufmann (2004), crítica a Alexy por crer que verdade encontra-se no processo, pois o que foi decidido não é justo apenas porque tem força de coisa julgada, e assim estende a crítica a teóricos do discurso. Entretanto, defende também uma teoria processual, porém materialmente fundada, com referência à pessoa.

Ele crê que cientista pode chegar a direito justo melhor que políticos, que é risco deixar teorias formais a cargo do Direito, e que não se deve querer livrar-se da responsabilidade dos enunciados normativos. Assim, teorias processuais da verdade e da justiça são úteis como modelos de pensamento, com valor heurístico, também para controle de razoabilidade e plausibilidade (KAUFMANN, 2004, p. 427).

Kaufmann ainda admite correção do Direito no processo, não através do processo. E que debilidade das teorias processuais está em acreditarem poder renunciar aos conteúdos e experiência, então propõe complementação. Aduz ainda que discurso normativo não tem conteúdo substancial, e que objeto do processo é um dado inacabado que é construído. Mais ainda, esse objeto processual, bem como das ciências normativas (ética, teoria das normas, ciência jurídica), “nunca são substâncias, mas sim situações, relações” (KAUFMANN, 2004, p. 432). Por ser então formal, a teoria do discurso não pode afirmar ter chegado à verdade ou correção de algo dotado de conteúdo, v.g., as normas, mas apenas consenso formalmente correto.

No entanto, apesar das críticas, o próprio Kaufmann admite que quando é dado conteúdo a discurso, que não seja o próprio discurso, ele pode conduzir a resultados verdadeiros ou corretos. E aqui subjaz toda a dubiedade das suas crítica à teoria do discurso, uma vez que adere a ele e admite sua correção como via de acesso a decisão mais acertada.

O conteúdo do discurso se apresenta com a própria questão levantada, com a lide, o concurso de teses. Não parece razoável a afirmação de que um discurso só terá conteúdo quando este for uma referência imutável e definitiva, como o jusfilósofo o faz, colocando a pessoa como esse referencial.

Dessarte, não procede a crítica à falta de conteúdo do discurso. Este é complementado pela argumentação, referência a ordenamento, normas, princípios, valores, como no fundo Kaufmann mesmo se refere.

De sorte que, Kaufmann admite utilização discurso, mas traz importantes questionamentos a serem trabalhados numa prática do Direito, na aplicação da equidade e justiça em cada caso.

Obviamente, como ele mesmo ressaltou, não é apenas um procedimento que, como fórmula mágica, leva a uma solução justa. Mas é o caminho a passar, como um filtro, que tenderá a trazer esse desfecho, ou ao menos que possibilita controlar e atacar as incongruências.

Se as pessoas envolvidas na decisão são desonestas, fazem valer ideologias próprias abstendo-se do quanto argumentado, ou apenas são inexperientes ou lhes falta conhecimento, ou impõem valores contrários aos do Direito ou meio social, há espaço para decisões conflitantes com o ideal de justiça e quebra das expectativas.

Porém, ainda assim, a forma discursiva e argumentativa do Direito propicia a visualização dos posicionamentos e argumentos e valores contrapostos, viabilizando análise e apreciação, seja pelas cortes, sociedade, comunidade científica. Por fim, proporciona-se melhor forma de se chegar a soluções mais acertadas e mais justas no processo discursivo pela via argumentativa.

 

5 CONCLUSÕES

Pelo exposto, podemos dizer que a argumentação pela via do discurso jurídico é método legítimo a se trabalhar no Direito, e que, todavia, não exclue considerações e estudos sobre conhecimento e filosofia aqui apresentados, mas sim exige complementação, por ser via apenas procedimental de se chegar a uma decisão jurídica mais acertada, uma aplicação mais próxima da justiça.

De forma que se chega a conclusões no Direito por verossimilhança. Ele é argumentativo, mas não é puro decisionismo. Está aberto a crítica, a construção mais racional e, por isso, a controle jurídico e social.

A argumentação jurídica, com base em textura aberta do Direito, permeável a contexto histórico-social, valores e senso-comum, com sua busca de integração dos indivíduos no ordenamento jurídico e, por caminho inverso, legitimação das normas com base em consideração da aceitação social de essencial representatividade e adequação delas, está ainda sujeita a críticas pertinentes.

Isto porque, como meio, método de fundamentação e aplicação do Direito, pode ser utilizado a talante de quem detenha o poder de aplicação. No entanto, é justamente a busca dos métodos sobre conhecimento e filosofia que podem enriquecer esse meio, a argumentação jurídica, de forma a pautar sua atuação em critérios de legitimidade, racionalidade e representatividade.

Nunca se chegou definitivamente a forma justa de se produzir soluções jurídicas mais adequadas, até porque isto deveria derivar desde produção jurídica até sua aplicação consentânea com contexto e valores sociais e máxima representatividade e acordo do povo na decisão. Esta impossibilidade, como dito, decorre de caráter evolutivo da sociedade e Estado, onde devir é constante.

A argumentação e discurso jurídicos se adequam a uma busca dessas soluções adequadas pois estão sempre abertos a discussão e problematização, utilizando-se de racionalidade dos envolvidos e forma aberta de demonstração da verossimilhança de suas conclusões. Em que pese não deverem ser utilizados como meio de legitimação impositiva, mas com considerações de conteúdo, traçados por métodos e filosofia do conhecimento, mesmo que através de contextualizações sociais e valorativas imanentes ao Direito.

De modo que, numa solução mais adequada, dev-see expor objetivamente os critérios em que se baseia, tanto para controle de instâncias mais elevadas, quanto para o senso comum pode adaptar-se,  rejeitá-lo ou haver conformação, gerando pressão social, amplo debate em uma sociedade aberta, proporcionando integração social ou institucional aos argumentos, interesses e conclusões chegadas.

 

6 NOTAS

DESCARTES,  1985, p. 14: “Por isso, é melhor nuncar estudar do que ocupar-se de objectos de tal modo difíceis que, não podendo distinguir o verdadeiro do falso, sejamos obrigados a tomar como certo o que é duvidoso, porque então não há tanta esperança de aumentar a instrução como perigo de a diminuir.”.

DESCARTES, 1996, p. 78: “… se quiserem saber falar de todas as coisas e adquirir a reputação de doutos,  consegui-lo-ão mais facilmente satisfazendo-se com a verossimilhança, que pode ser encontrada sem muito esforço em toda espécies de matérias, do que procurando a verdade, que só se descobre pouco a pouco em algumas e que, quando se trata de falar das outras, obriga a confessar francamente que se as ignoram.”.

BUNGE, 1987, p. 29-30: “El método científico es falible: puede perfeccionarse mediante la estimación de los resultados a los que lleva y mediante el análisis directo. Tampoco es autosuficiente: no puede operar en un vacío de conocimiento, sino que requiere algún conocimiento previo que pueda luego reajustarse y elaborarse; y tiene que complementarse mediante métodos especiales adaptados a las peculiaridades de cada tema.”

BUNGE, 1987, p. 24: “Un método es un procedimiento para tratar un conjunto de problemas. Cada clase de problemas requiere un conjunto de métodos o técnicas especiales. Los problemas del conocimiento, a diferencia de los del lenguaje o los de la acción, requieren la invención o la aplicación de procedimientos especiales adecuados para los varios estadios del tratamiento de los problemas, desde el mero enunciado de éstos hasta el control de las soluciones propuestas.”.

GOULD, 1999, Capítulo 4 – A falsa medida do homem, páginas 109 a 146.

LARENZ, 1997 , p. 02: “ Hoje sabemos que a maior parte das leis sofrem sua configuração definitiva, e deste modo a sua suceptibilidade de aplicação aos casos singulares, apenas mediante a concretização no processo contínuo da actividade jurisprudencial. A heurística do Direito não e esgota de modo algum na aplicação da lei. A metodologia jurídica tem de ter em conta estas ideias. Isto não significa, contudo, que o procedimento metódico seja prescindível por parte dos juristas, nem tão-pouco que os métodos até aqui utilizados se revelam globalmente imprestáveis.”

PERELMAN, 2003, p. 01: “A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo.”.

SANTOS, 1995, p. 47: “Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adotados por comunidades interpretativas concretas como projetos de vida locais, sejam eles reconstituir a história de um lugar, manter um espaço verde, […]. A fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros.”

SARTRE, 1987, p. 176: “Definiremos o método de aproximação existencialista como um método regressivo-progressivo e analítico-sintético; é ao mesmo tempo um vaivém enriquecedor entre o objeto (que contém toda a época como significações hierarquizadas) e a época (que contém o objeto na sua totalização); com efeito, quando o objeto é reencontrado em sua profundidade e em sua singularidade, em lugar de permanecer exterior à totalização (como era até aí, o que os marxistas tomavam como sua integração na história), ele entra imediatamente em contradição com ela: numa palavra, a simples justaposição inerte da época e do objeto ocasiona bruscamente um conflito vivo.”

BALKIN, 1987, p. 02: “Lawyers should be interested in deconstructive techniques for at least three reasons. First, deconstruction provides a method for critiquing existing legal doctrines; in particular, a deconstructive reading can show how arguments offered to support a particular rule undermine themselves, and instead, support an opposite rule. Second, deconstructive techniques can show how doctrinal arguments are informed by and disguise ideological thinking. This can be of value not only to the lawyer who seeks to reform existing institutions, but also to the legal philosopher and the legal historian. Third, deconstructive techniques offer both a new kind of interpretive strategy and a critique of conventional interpretations of legal texts.”

PERELMAN, 2003, p. 118: “As premissas da argumentação consistem em proposições admitidas pelos ouvintes. Quando estes não estão ligados por regras precisas que os obrigam a reconhecer certas proposições, todo o edifício de quem argumenta funda-se apenas num fato de ordem psicológica, a adesão dos ouvintes.”

HART,  2001, p. 140-141: “ Seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamento, estes, não obstante a facilidade com que actuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuirão aquilo que foi designado como textura aberta.”

MARTINS e OLIVEIRA, 2006, p. 248: “princípios são definidos como o tipo de padrão que formula uma ‘exigência da justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade’ e que deve ser observada em virtude de seus próprios termos e não porque é capaz de promover algum estado de coisas visto como socialmente desejável.”

MACCORMICK, 2008, p. 18: “O Direito é uma disciplina argumentativa. Qualquer que seja a questão ou problema que tenhamos em mente, se os colocarmos como uma questão ou problemas jurídicos, procuraremos uma solução ou resposta em termos de uma proposição que pareça adequada do ponto de vista do Direito”.

MACCORMICK,  2008, p. 42: “Há um risco de mal compreender o ‘Estado de Direito’ como ideal se o tomamos isoladamente. Quando o fazemos, nós talvez ressaltemos seus aspectos mais estáticos, que prometem certeza jurídica e segurança de expectativas jurídicas. Mas o mesmo ideal possui um aspecto dinâmico também, ilustrado pelo direito de defesa e pela importância de deixar tudo aquilo que é contestável ser contestado”

PERELMAN, 2003, p. 16: “Quando se trata de demonstrar uma proposição, basta indicar mediante quais procedimentos ela pode ser obtida como última expressão de uma seqüência dedutiva” (…) “ Mas, quando se trata de argumentar, de influenciar, por meio do discurso, a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, já não é possível menosprezar completamente, considerando-as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação ficaria sem objeto ou sem efeito. Pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual.”

PERELMAN, 2003, p. 30-31: “Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação. Para Rosseau, de nada adianta convencer uma criança “se não se sabe se sabe persuadi-la”.” (…) “Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional.”

HABERMAS, 1997, p. 27: “As democracias preenchem o necessário “mínimo procedimentalista” na medida em que elas garantem: a) a participação política do maior número possível de pessoas privadas; b) a regra da maioria para  decisões políticas; c) os direitos comunicativos usuais e com isso a escolha entre diferentes  programas e grupos dirigentes; d) a proteção da esfera privada.”

GÜNTHER, 2011, p. 23: “O princípio de universalização “U” desempenha o papel de uma regra de argumentação que deve proporcionar a passagem de evidências empíricas, a respeito das consequências e dos efeitos colaterais de uma aplicação geral da norma sobre as necessidades de cada um individualmente, para a norma que representa em si um interesse geral”

PINTO, 1997/1998, p. 80: “Habermas chama a atenção para o caráter solipsista do Hércules dworkiano, contrapondo ao estilo monológico da teoria do direito de Dworkin uma concepção dialógica do conhecimento jurídico, fundada numa teoria da discussão, sob cuja ótica a organização de procedimentos sociais é a base de uma razão consensual, intersubjetiva e formada a partir do mundo vivido (lebenswelt) dentro do qual os sujeitos elaboram tanto suas crenças e valores quanto os argumentos com que buscam justificá-lo.”

SARTRE, 1987, p. 180: “A mistificação suprema do positivismo é que pretende abordar a experiência social sem a priori, quando decidiu desde o início negar uma de suas estruturas fundamentais e substituí-la pelo seu contrário. Era legítimo que as ciências da natureza se libertassem do antropomorfismo que consiste em emprestar propriedades humanas a objetos inanimados. Mas é perfeitamente absurdo introduzir por analogia o desprezo do antropomorfismo na antropologia: que se pode fazer de mais exato, de mais rigoroso, quando se estuda o homem, do que reconhecer-lhe propriedades humanas? A simples inspeção do campo social deveria ter feito descobrir que a relação aos fins é uma estrutura permanente das empresas e que é nessa relação que os homens reais julgam as ações, as instituições ou os estabelecimentos econômicos”.

ENGISCH, 1968, p. 324: “Por isso, concordo também com Esser quando ele diz que o pensamento jurídico ‘precisa de se apoiar numa concepção teorética clara do alcance dos direitos fundamentais, da ordenação constitucional dos valores no conflito das ideologias’. Mas, se desta maneira ‘a questão metafísica já não se deixa afastar’, se o jurista se vê confrontado com a ideia de Direito, os princípios supremos do Direito, os princípios da Constituição, a lei moral e as directrizes culturais, todavia neste ponto ele pode e deve necessariamente ‘contentar-se muitas vezes com uma resposta provisória’, quer dizer, com uma resposta cuja fundamentação  última já não pode ser obtida por métodos jurídicos. O jurista, se quer dar incidência prática à ideia de Direito (fazê-la vingar), há-de prestar ouvido atento  à voz do ‘espírito objetivo’. Ele precisa de saber o que ‘as necessidades actuais’ imperiosamente exigem, quais as ideias supralegais que reclamam consideração  e estão suficientemente amadurecidas para serem juridicamente aplicadas. Pondo de parte as ideias preconcebidas, ele tem de considerar-se e sentir-se como servidor  das concepções sociais, éticas e culturais dominantes, não pode pretender ser reacionário nem revolucionário.”

 

7 REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001.

AMANDO JÚNIOR, José. Efeito Reflexo Constitucional: Estudo de caso sobre a racionalidade e o sistema jurídico na pós-modernidade. Salvador: 2006 Tese (Mestrado) UFBA

BACON, Francis. Novum organum, ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

BALKIN, Jack M., “Deconstructive Practice and Legal Theory” (1987). Faculty Scholarship Series. Paper 291 http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/291. Acesso em 01/07/2012.

BUNGE, Mario. El Derecho como técnica social de control y reforma. Isonomía. Revista de teoría y filosofía del derecho, Número 13, outubro de 2000. Instituto Tecnológico Autónomo de México.

______. La investigación científica: su estratégia y su filosofía. Barcelona: Editora Ariel S.A., 1987.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

______. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1985.

DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1968.

GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Günther, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Rio de janeiro: Forense, 2011.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Vol II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HART, H.L.A.  O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MARTINS, A. C. M.; OLIVEIRA,  C. L. de. A Contribuição de Klaus Günther ao debate acerca da distinção entre regras e princípios. Revista Direito GV. São Paulo, v.2, n.1 , p.241-254, jan-jun. 2006.

MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes, 1984

PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação (A nova retórica). São Paulo: Martins Fontes, 2003.

PINTO, Marília M. M. O Pensamento Filosófico de A. L. Machado Neto e a Nova Hermenêutica Jurídica. Revista da Faculdade de Direito da UFBA, Salvador, v.37 , p.69-91, 1997/1998.

POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

RICOEUR, Paul. Conflito de Interpretação: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.

______. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1995.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método. São Paulo : Nova Cultural, 1987.

VIEHWEG, Theodor. Tópica y jurisprudencia. Madrid: Taurus, 1964.

 


[1] Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Público. Servidor efetivo do Ministério da Justiça. Email: rcband@hotmail.com.

Augusto Santos Mascarenhas

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A validação do conhecimento científico. 3 Metodologia e método científico. 4 O método da ciência do direito. 4.1 A especificidade do método jurídico. 4.2 Aspectos materiais. 4 3 Conteúdo formal. 4.3.1 Estrutura básica. 4.3.2 Outras regras importantes que integram o método da ciência do direito. 4.4 Operações gnoseológicas inerentes ao método da pesquisa jurídica. 4.4.1 Interpretação e compreensão. 4.4.2 Empirismo e racionalismo. 4.4.3 A dialética. 5 Conclusão. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO
Este estudo pretende apresentar uma aproximação possível à questão sobre em que consiste, de fato, o método da ciência do direito. A solução pode parecer evidente para alguns, mas é possível que ainda não esteja tão clara para boa parte dos membros da comunidade jurídica , haja vista, por exemplo, o embaraço dos aspirantes a títulos jurídico-acadêmicos quando são instados a explicitar o método que utilizarão em suas pesquisas. Em grande parte dos casos são apresentadas respostas um tanto incompletas, que mencionam como sendo “o” método, somente um ou alguns dos procedimentos dentre os vários que serão utilizados, omitindo-se outros procedimentos tão importantes quanto o citado na resposta e que serão necessariamente utilizados na pesquisa, de modo consciente ou inconsciente. Em outros casos, é afirmado que o método será “plural”, sem contudo haver uma definição razoavelmente precisa do que isto significa.
O que se fará precipuamente no presente estudo é definição, análise e interpretação conceitual. Talvez a relevância da definição prévia dos conceitos para a adequada compreensão de um tema científico nem sempre seja percebida na sua dimensão exata. Já na antiguidade Sócrates insistia na necessidade das definições e Platão refinava constantemente os conceitos que utilizava . Aristóteles escreveu um livro só para tratar deste tema (o pequeno tratado intitulado Definições). Na era moderna, Voltaire, por sua vez, afirmava: “se queres dialogar comigo, defina seus termos”.
No entanto, a tendência humana a não definir adequadamente os conceitos empregados num discurso é tão marcante que o alerta para a necessidade de definição prévia parece ser uma tarefa filosófica perene. Este parece ser o motivo da retomada da questão da análise conceitual, proposicional e do discurso por pensadores contemporâneos, tais como Ludwig Wittgenstein e os demais integrantes da corrente analítica (Moore, Russel, Frege, Carnap, Schlick etc). No campo da hermenêutica filosófica, Hans-Georg Gadamer chegou a afirmar que “a interpretação conceitual é o modo como se realiza a própria experiência hermenêutica”.
Esta discussão permanece atual e, dentre os filósofos ainda em atividade, merece ser citada a posição de Ernst Tugendhat, para quem a tarefa da filosofia é sobretudo o esclarecimento reflexivo dos conceitos indispensáveis à nossa compreensão do que quer que seja.
De fato, a filosofia ajuda e ensina a organizar as idéias, tornando possível a visão coerente e sistêmica acerca da problemática inerente a um determinado assunto. Assim, buscar-se-á neste estudo aclarar conceitos preliminares e, em seguida, delinear o próprio conceito de método jurídico-científico, com vistas a apresentar uma aproximação acerca do que é, ou deveria ser, tal método.
Embora o presente trabalho utilize como pontos de apoio algumas das construções epistemológicas mais sólidas dentre as disponíveis na literatura jusfilosófica, contém também, a par disto, concepções do autor que divergem um pouco das linhas de pensamento existentes.

2 A VALIDAÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
A diferença entre conhecimento científico e conhecimento ordinário é bem exposta pelo físico e epistemólogo argentino Mario Bunge, quando aponta que:
A investigação científica começa com a percepção de que o acervo de conhecimento disponível é insuficiente para manejar determinados problemas. À medida em que progride, a investigação corrige ou até rechaça porções do acervo do conhecimento ordinário. Assim se enriquece este último com os resultados da ciência. A ciência, então, cresce a partir do conhecimento comum e o refunda com seu crescimento.
A ciência não é um mero prolongamento nem o simples refinamento do conhecimento ordinário, mas sim um conhecimento de natureza especial: trata primariamente, ainda que não exclusivamente, de acontecimentos inobserváveis e insuspeitados pelo leigo não educado (p. ex., a evolução das estrelas e a duplicação dos cromossomos).
Tanto o bom senso comum quanto a ciência aspiram ser racionais e objetivos. Porém o ideal de racionalidade, ou seja, a sistematização coerente de enunciados fundados e contrastáveis, se consegue mediante teorias, e estas são o núcleo da ciência, mais que do conhecimento comum.
Não parece lícito afirmar, ao menos de início, que exista diferença ontológica entre os tipos de conhecimento humano, pois, em verdade, todos eles ocorrem de acordo com um processo (que inclui, isolada ou associadamente, os atos de percepção, intelecção, explicação e compreensão) inerente ao funcionamento do cérebro (e de algumas outras partes do corpo) de todos os seres humanos. A diferença é somente qualitativa, pois o que distingue o conhecimento científico das outras formas de conhecimento (por exemplo, o senso comum ou a especulação filosófica) é o maior grau de verossimilhança do primeiro com relação aos demais, tendo em vista a existência de um método mais rigoroso de validação das suas proposições (método científico), que inclui tentativas de falseamento da teoria pelo próprio pesquisador e por outros teóricos.
Neste sentido, Mario Bunge assere que “As disciplinas que não podem utilizar o método científico […] não são ciências, ainda que possam fornecer à ciência material bruto”. No âmbito da epistemologia das ciências do espírito, Hans-Georg Gadamer atesta que “É só a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal), que confere ao juízo a sua dignidade”.
No entanto, os critérios de validação do conhecimento científico nas ciências sociais são diferentes dos requisitos existentes para as ciências naturais, e isto é assim porque estes campos trabalham com objetos de natureza distinta. Disto deflui que as ciências sociais deverão utilizar um método diverso daquele que é proprio das ciências naturais.
A tarefa deste trabalho é a de tentar identificar, com dose razoável de amplitude e precisão, o conteúdo e a forma do método nas ciências jurídicas.

3 METODOLOGIA E MÉTODO CIENTÍFICO
Como é cediço, a disciplina filosófica que estuda o conceito de ciência e os métodos pertinentes para a sua realização é a epistemologia . A metodologia, por sua vez, é a parte da epistemologia que investiga especificamente os métodos empregados nas diferentes ciências, seus fundamentos e critérios de validade, bem como a sua relação com as teorias científicas.
Mario Bunge define método como sendo “um procedimento para tratar um conjunto de problemas”. E prossegue, afirmando, que
Cada classe de problemas requer um conjunto de métodos ou técnicas especiais. Os problemas do conhecimento, à diferença dos da linguagem ou da ação, requerem a invenção ou a aplicação de procedimentos especiais adequados para os vários estágios do tratamento dos problemas, desde o mero enunciado destes até o controle das soluções propostas.
Ainda segundo este autor,
Os estágios principais do caminho da investigação científica, isto é, os passos principais da aplicação do método científico, são os seguintes: 1) enunciar perguntas bem formuladas e verossimilmente fecundas; 2) estabelecer conjecturas, fundadas e contrastáveis com a experiência, para contestar às perguntas; 3) derivar conseqüências lógicas das conjecturas; 4) arbitrar técnicas para submeter as conjecturas a contraste; 5) submeter estas técnicas a contraste para comprovar sua relevância e a fé que merecem; 6) levar a cabo o contraste e interpretar seus resultados; 7) estimar a pretensão de verdade das conjecturas e a fidelidade das técnicas; 8) determinar os domínios nos quais valem as conjecturas e as técnicas, e formular os novos problemas originados pela investigação.
Portanto, o que Mario Bunge expõe são as principais linhas do método científico básico, sendo que, na prática, este modelo simplificado é acrescido de outras etapas e procedimentos. Bunge relata, inclusive, a existência de regras (tais como a de formulação do problema com precisão e especificamente; e a proposição de hipóteses bem definidas e fundadas de algum modo, e não suposições sem fundamento examinável) que podem guiar a execução adequada das operações antes indicadas.
Vislumbra-se, então, o rigor metodológico, que é a principal característica que distingue a ciência do senso comum.
É possível perceber, ainda, que a concepção do método deve harmonizar-se com a lógica interna da ciência à qual ele se aplica. Assim sendo, a escolha do método aplicável dependerá do objeto de estudo.
No campo do direito (ou seja, definido o objeto de estudo como sendo o direito), a escolha metodológica dependerá, ainda, da concepção epistemológico-jurídica adotada pelo pesquisador, ou seja, do conceito de direito adotado.
Tome-se como exemplo a teoria egológica do direito, de Carlos Cossio. Como as demais teorias de vertente culturalista (que foi uma das primeiras correntes jusfilosóficas a apresentar críticas ao positivismo jurídico), o egologismo percebe o direito como uma ciência de realidades, com base concreta e real, composta sobre valorações, e não como uma usina de procedimentos formais dedutivos e indutivos, operada por uma autoridade legitimada. Assim, para Cossio a ciência do direito é uma ciência de experiência e, por conseguinte, não pode ter como objeto a norma jurídica, mas sim a conduta humana em interferência intersubjetiva. A teoria egológica pretende afastar-se do positivismo da norma, e penetrar no campo da conduta que, na visão de Cossio, é conceitualizada pela norma.
Caso seja esta (egologismo) a concepção epistemológica escolhida, o pesquisador não poderá optar por um método que não vá muito além da análise lógico-formal de conceitos jurídicos e normas . Como é intuitivo, o seu método terá que ser mais abrangente, incluindo procedimentos sobre a análise axiológica e sociológica.

4 O MÉTODO DA CIÊNCIA DO DIREITO
4.1 A especificidade do método jurídico
Ao discorrer sobre a lógica das ciências sociais, Karl Popper menciona a existência de uma concepção equivocada, oriunda do cientificismo, segundo a qual estaria na hora de as ciências sociais aprenderem com as ciências naturais o que é método científico. Popper refuta esta abordagem, nos seguintes termos:
Este naturalismo equivocado estabelece exigências tais como iniciar com observações e medidas; isto significa, por exemplo, começar por coletar dados estatísticos; prossegue, logo após, pela indução a generalizações e à formação de teorias.
Declara-se que, através deste caminho, você se aproximará do ideal da objetividade científica, na medida em que isto é possível nas ciências sociais.
Procedendo deste modo, você deve estar consciente do fato de que a objetividade nas ciências sociais é muito mais difícil de alcançar (se puder totalmente ser atingida), do que nas ciências naturais, pois uma ciência objetiva deve ser “isenta de valores”, isto é, independente de qualquer juízo de valor. Mas, apenas nos casos mais raros pode o cientista social libertar-se do sistema de valores de sua própria classe social e assim atingir um grau mesmo limitado de “isenção de valores” e “objetividade”.
Qualquer uma destas teses que se atribui a este naturalismo equivocado está, em minha opinião, totalmente errada. Todas essas teses são baseadas em uma má compreensão dos métodos das ciências naturais, e, praticamente, um mito, um mito infelizmente muito largamente aceito e muito influente. É o mito do caráter indutivo do método das ciências naturais, e do caráter da objetividade das ciências naturais.
A par de discordar da opinião de que o método das ciências naturais deva ser aplicado às ciências sociais, Popper esboça aquilo que entende ser o método apropriado a estas últimas:
Sexta tese: a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente. b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la; pois toda crítica consiste em tentativas de refutação. c) Se uma solução tentada é refutada através do nosso criticismo, fazemos outra tentativa. d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e criticada mais além. e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica. É um desenvolvimento crítico consciente do método de “ensaio e erro”. f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e, mais ainda, que o instrumento principal da crítica lógica – a contradição lógica – é objetivo.
Embora a intenção do autor tenha sido das melhores, contribuindo, sem sombra de dúvida, para o esclarecimento de alguns aspectos do método próprio das ciências sociais, o fato é que tal proposta, por sua excessiva generalidade, não traz luz, na intensidade necessária, aos problemas específicos de cada ciência social em particular.
Assim, no tocante ao direito, mostra-se necessário o refinamento dos critérios metodológicos propostos supra, a fim de atender às demandas próprias desta disciplina.

4.2 Aspectos materiais
Como afirmado anteriormente, o método deve harmonizar-se com a lógica interna da ciência à qual ele se aplica.
Pelos seus inegáveis méritos, e considerando a necessidade de um modelo para fins didáticos, a teoria egológica será assumida neste estudo como descrição padrão do fenômeno jurídico, dentre as concepções existentes na literatura. Contudo, serão feitos alguns reparos à referida teoria, com vistas a uma maior conexão com a realidade ontológica da ciência do direito.
Definida a concepção epistemológica de ciência jurídica a ser adotada, cumpre, então, extrair um método de pesquisa que seja consentâneo ao estudo do seu objeto.
A definição do objeto da ciência do direito adotada neste trabalho coincide apenas em parte com a proposta pela teoria egológica. De fato, é a conduta em interferência intersubjetiva, e não a norma jurídica, que constitui o objeto do direito.
Mas é necessário reconhecer que tal conduta deve ser socialmente relevante para que o seu estudo possa ser deflagrado em nível científico. É dizer, somente quando a conduta compartida se apresenta como fato social , e não individual, é que ela pode ser considerada objeto do direito. E mais: para que este fato social interesse ao direito, como seu objeto de estudo científico, deve ser efetiva ou potencialmente gerador de conflitos comunitários.
Esta característica não implica que este fato social seja sempre identificado com os fatos sociais considerados patológicos segundo os critérios durkheimianos.
Estas constatações não levam, de nenhum modo, a que o direito passe a se identificar com a sociologia. Continuará diferindo desta por diversas razões, tais como: a) enquanto a sociologia é essencialmente uma ciência de descrição e previsão (ciência de “ser”), propondo eventualmente soluções fáticas, à ciência do direito (que é ciência de “dever ser”) cabe propor soluções normativas que sejam técnico-juridicamente aceitáveis, considerando-se não só os fatos sociais subjacentes, mas também o sistema jurídico como um todo ; b) a ciência do direito tem por objetivo precípuo a propositura de soluções normativas com vistas a resolver conflitos reais ou prevenir conflitos potenciais, é dizer, os seus objetivos sempre envolvem a possibilidade de intervenção na realidade fenomênica, enquanto que a sociologia pode por vezes contentar-se com a mera descrição ou explicação de um fenômeno social observável, sem enveredar pela apresentação de soluções (até porque a apresentação de proposições para a mudança social pode se mostrar desnecessária em boa parte dos casos estudados pela sociologia).
Ao direito cabe, então, tanto verificar a possibilidade jurídica de transformação da solução fática, proposta pela sociologia, em solução normativa a ser efetivamente implementada no ordenamento jurídico, quanto propor, por si só (sem o auxílio da sociologia), soluções normativas pertinentes do ponto de vista social e possíveis sob o prisma jurídico , sendo que tais tarefas diferem substancialmente dos objetivos da sociologia.
A adequada medida da imbricação entre direito e sociologia, no que toca ao método jurídico, parece ter sido melhor compreendida na seara do direito penal, tendo em vista que neste ambiente os criminalistas trabalham, desde a época de Hans Weltzel, com o conceito de Gesamte Strafrechtswissenschaft (ciência global do direito penal), o qual representa a existência de concatenação e integração entre a criminologia , a política criminal e a dogmática penal , sem que isto represente a desnaturação ou quebra da autonomia de cada ciência em particular.
À luz da concepção supra delineada, cumpre explicitar os aspectos do método jurídico-científico que se relacionam mais diretamente com o substrato do direito. O método seria, então, o conjunto de procedimentos e subprocedimentos capazes de possibilitar: a) precipuamente, o estudo dos fatos sociais (que comportam a intersubjetividade da ação humana, quando se considera a conduta individual de base) pertinentes a determinado corte fenomênico-social , escolhidos em razão de serem real ou potencialmente geradores de conflitos, sendo que este estudo tem por objetivo a propositura de análises ou soluções normativas com vistas à prevenção ou resolução in concreto e a posteriori destes conflitos ; e b) acessoriamente, o estudo do sistema normativo eventualmente já existente e aplicável a este corte fenomenológico-social, bem como a abordagem crítica da solução normativa específica que vigora no sistema, com a possibilidade de propositura de inovações regulatórias (como citado no item “a”), caso se verifique que isto é necessário.

4 3 Conteúdo formal
4.3.1 Estrutura básica
Com esteio no exposto até o momento, é possível sugerir (de modo similar ao que fez Mario Bunge com relação às ciências naturais), a seguinte estrutura básica, geral e formal , para o método jurídico-científico :
Enunciação (identificação) do problema (ou de um grupo de problemas inter-relacionados), da forma mais clara e precisa possível ;
Estabelecimento, de modo fundado e não arbitrário, das propostas preliminares de solução (hipóteses ou conjecturas) ;
Verificação da verossimilhança (plausibilidade) e adequação da hipótese, através da: 3.1 certificação de que não existe nenhuma outra norma no sistema (ainda que de outros ramos do direito que não o da especialidade do pesquisador) capaz de solucionar o conflito (efetivo ou potencial) estudado ; 3.2 verificação de que a norma (solução) jurídica sugerida está sendo proposta no nível hierárquico adequado dentro da pirâmide normativa; 3.3 investigação acerca da adequação social da hipótese (solução jurídica aventada), analisando-se as possíveis repercussões sociais da mesma, se possível com a utilização de considerações de direito comparado e sociologia comparada; 3.4 investigação sobre a existência ou não de outra(s) solução(ões) (hipóteses normativas) mais apropriadas para o equacionamento do fato social escolhido (procedimento de natureza dialética, no sentido hegeliano); 3.5 auto-reflexão acercado grau de influência e de legitimidade dos interesses pessoais do investigador na pesquisa, bem como reavaliação dos seus preconceitos (ver 4.3.1., infra); 3.6 reformulação da hipótese após todas as operações precedentes;
Proposição definitiva da solução do problema (síntese final), e formulação de novos problemas originados pela investigação.

4.3.2 Outras regras importantes que integram o método da ciência do direito
Além das regras fundamentais ante citadas, há outras de grande valia que merecem ser seguidas durante todo o decorrer da pesquisa, podendo ser citadas a clareza e precisão técnica (sem excessos pernósticos) na linguagem utilizada, a utilização somente da complexidade necessária (Navalha de Ockham) e a audácia intelectual.
Em verdade, a maior parte dos mal entendidos não provêm da complexidade das teorias, e sim do mau uso da linguagem. Karl Popper percebeu, com acerto, que a maioria dos estudantes universitários aprende e aceita, de modo inconsciente, “que uma linguagem altamente impressionante e difícil é o valor intelectual por excelência”. Todavia, ele adverte que o modelo de incompreensibilidade impressionante conflita hodiernamente com os padrões da verdade e do racionalismo crítico, pois a realização destes últimos valores depende de clareza.
Evidencia-se, então, a necessidade de que a linguagem do jurista deve ser técnica, clara, precisa, concisa e livre de ambiguidades. Para tanto, os conceitos utilizados precisam ser bem definidos.
Intimamente relacionada com a clareza no redigir, está a regra, que ora se sugere, de utilização somente da complexidade que se mostre necessária para a fundamentação da teoria.
Conforme postulado por William de Ockham no século XIV, a explicação de qualquer fenômeno deve servir-se apenas das premissas estritamente necessárias para fundamentar a referida explicação, devendo ser excluídas todas as que não gerariam qualquer diferença na formulação final da teoria (esta idéia ficou conhecida como a “Navalha de Ockham”). Embora tal diretriz tenha sido formulada com vistas aos procedimentos das ciências da natureza, ela é perfeitamente compatível, de modo geral, com os métodos das ciências sociais, devendo, portanto, ser adotada nestes.
Uma regra de grande valor que merece ser incorporada ao procedimento do jurista pesquisador, e que na verdade apresenta natureza material e não formal, pois configura uma atitude daquele que investiga, é a audácia intelectual. Tal idéia foi exposta por Popper, quando afirmou: “Nós não podemos ser intelectualmente covardes e ao mesmo tempo buscar a verdade. Aquele que busca a verdade deve ousar ser sábio – ele deve ousar ser um revolucionário no campo do pensamento”. Como se percebe, Popper já formulou a ideia na forma normativa (utilizando a cópula deve ser).
Em verdade, a idéia de audácia intelectual expressa uma das principais características que um cientista deve apresentar, pois a apresentação de novas concepções (que implicam às vezes a superação total ou parcial das já existentes), ao mesmo tempo em que constitui o móvel da ciência, possibilitando que esta continue viva, representa, de certa forma, uma tarefa de combate, na medida em que estas inovações podem ferir suscetibilidades e interesses estabelecidos (notadamente quando as inovações são fruto de rupturas metodológicas), havendo a possibilidade de reações misoneístas no ambiente acadêmico.

4.4 Operações gnoseológicas inerentes ao método da pesquisa jurídica
Neste tópico serão abordados os aspectos subjetivos do método jurídico, ou seja, o processo metodológico será visto sob a ótica do que ocorre internamente no espírito do pesquisador. Destarte, descrever-se-ão, ainda que sucintamente, os principais procedimentos ou atos mentais utilizados (consciente ou inconscientemente) pelo jurista no desenvolvimento da sua pesquisa.
Como se sabe, Carlos Cossio adota a teoria husserliana dos objetos como um dos fundamentos do egologismo . Esta teoria sugere a existência de quatro regiões ônticas, é dizer, quatro categorias de objetos (ideais, naturais, culturais e metafísicos), sendo que a noção de cada tipo de objeto pode ser ainda refinada sob os seguintes aspectos: a) definição dos seus caracteres ontológicos; b) definição do ato gnoseológico adequado para o seu conhecimento ; e c) escolha do método próprio para o seu estudo.
O direito seria um objeto cultural, tendo em vista que preenche os requisitos ontológicos gerais previstos na teoria husserliana para esta categoria: é real (tem existência espácio-temporal), está na experiência e comporta valoração positiva ou negativa. O seu ato gnoseológico característico seria a compreensão, e o seu método de abordagem, o empírico-dialético.
Mostra-se necessário, então, realizar uma breve incursão no significado de tais conceitos, bem como dos que lhes são intimamente relacionados.

4.4.1 Interpretação e compreensão
Em que consiste o ato da compreensão? Para um início de esclarecimento sobre a questão, cumpre introduzir o pensamento de Hans-Georg Gadamer, talvez o mais destacado filósofo do século passado no campo da hermenêutica. A premissa inicial de trabalho deste autor é a de que
[…] não se consegue compreender corretamente as ciências do espírito, usando o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit). A experiência do mundo sócio-histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências da natureza.
Diante desta constatação, e apoiando-se em Hermann Helmholtz, Gadamer procura atribuir maior valor a outras condições (que não o método indutivo) às quais se sujeitam as ciências do espírito em sua forma de trabalhar. Nesta linha, talvez a principal análise de Gadamer seja aquela concernente ao ato de interpretação compreensiva. Antes de iniciar a sua abordagem, este autor cita a importante e pioneira visão de Heidegger sobre o tema:
[O círculo hermenêutico] esconde uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, evidentemente, só será compreendida de modo adequado quando ficar claro que a tarefa primordial, constante e definitiva da interpretação continua sendo não permitir que a posição prévia, a visão prévia e a concepção prévia (Vorhabe, Vorsicht, Vorbegriff) lhe sejam impostas por intuições ou noções populares. Sua tarefa é, antes, assegurar o tema científico, elaborando esses conceitos a partir da coisa, ela mesma.
Gadamer prossegue afirmando que
Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’.
[…]
Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido.
Cumpre enfatizar, neste passo, o conceito de elaboração, que representa o aperfeiçoamento gradual da descoberta do sentido do texto ou, dito de outra forma, uma espécie de amadurecimento reflexivo da percepção do seu significado, através das revisões das opiniões prévias . Gadamer ainda esclarece que é “justamente todo esse constante reprojetar que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar”, configurando assim o processo circular descrito por Heidegger.
A importância do procedimento de elaboração verifica-se inclusive pelo fato de que, para Gadamer, “a confirmação que uma opinião prévia obtém [ocorre] através de sua elaboração”. A compreensão, para este autor, só atinge a sua verdadeira meta se as opiniões prévias inicialmente utilizadas não forem arbitrárias. Por tal motivo, o intérprete não deve se dirigir aos textos partindo diretamente da concepção prévia (pré-compreensão) que lhe é própria, mas deve antes examinar a legitimidade destas opiniões, ou seja, deve aferir a sua origem e validez.
A idéia básica presente nos argumentos de Heidegger e Gadamer – no sentido de que o que determina a compreensão do intérprete são as suas opiniões prévias que vão sendo reelaboradas – põe em evidencia duas questões: a verdadeira questão crítica da hermenêutica, que é a de “distinguir os verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal-entendidos” ; e a relevância da formação (Bildung) para a otimização da capacidade de interpretação (e, por conseguinte, de compreensão) do intérprete.

4.4.2 Empirismo e racionalismo
Empirismo pode ser definido, de modo geral, como a doutrina segundo a qual “todo conhecimento deriva da experiência e, em particular, da experiência dos sentidos”. A indução, por sua vez, representa a “forma de raciocínio que vai do particular ao geral, ou seja, que procede à generalização a partir da repetição e da observação de uma regularidade em um certo número de casos”. Por suas características, o raciocínio indutivo tem sido considerado o procedimento próprio do empirismo.
A corrente gnoseológica oposta ao empirismo é o racionalismo, segundo a qual a razão, por si só, é capaz de “conhecer o real e de chegar à verdade sobre a natureza das coisas”. A dedução, “operação lógica que consiste em concluir a partir de uma ou várias proposições, admitidas como verdadeiras, uma ou várias proposições que se seguem necessariamente” , é tida, por sua vez, como própria do racionalismo.
Como se percebe, indução e dedução são operações lógicas. Em verdade, tais atos mentais encontram-se presentes em todo tipo de produção científica, seja nas ciências naturais ou nas ciências sociais, variando somente o grau da sua presença a depender da natureza da ciência. O mais adequado então, seria referir-se a estas operações não com a designação de “métodos”, mas de “procedimentos que, juntamente com outros, integram o método”, evitando-se tomar a parte (ou seja, um dos procedimentos integrantes) pelo todo (o método).
Destarte, designações tais como “método empírico” (ou método empírico-dialético, empregada por Husserl) ou “método indutivo” parecem insuficientes para proporcionar uma visão minimamente precisa do que seja o método de pesquisa em uma determinada ciência social.

4.4.3 A dialética
Na filosofia de Aristóteles, o termo dialético qualifica o silogismo composto a partir de premissas apenas prováveis .
Outra visão, presente na tradição filosófica desde Platão, considera a dialética como sendo “a arte de conduzir uma conversação e, sobretudo, a arte de descobrir a inadequação das opiniões que dominam uma pessoa, formulando conseqüentemente perguntas e mais perguntas”.
Da mesma forma que a indução e a dedução, a dialética é um procedimento lógico empregado em pesquisas científicas, e não propriamente um método científico, valendo aqui as mesmas considerações feitas no item 4.3.2, supra.

5 CONCLUSÃO
A análise e definição correta e precisa dos conceitos é pré-requisito para o desempenho adequado da atividade científica, tendo em vista que a maior parte dos mal-entendidos surge do mau uso da linguagem, e não da complexidade da teoria exposta. A tendência humana a um alto grau de indefinição dos conceitos empregados num discurso é tão marcante que o alerta para a necessidade de definição prévia, ao menos nos campos de conhecimento rigoroso (ciência, filosofia e disciplinas técnicas), parece ser uma tarefa filosófica perene.
Não há diferença ontológica entre os tipos de conhecimento humano, pois todos eles ocorrem de acordo com um processo (que inclui, isolada ou associadamente, os atos de percepção, intelecção, explicação e compreensão) inerente ao funcionamento do cérebro (e de algumas partes do corpo) de todos os seres humanos. A diferença é somente qualitativa, pois o que distingue o conhecimento científico dos outros tipos de conhecimento (por exemplo, o senso comum ou o conhecimento filosófico) é o maior grau de verossimilhança do primeiro com relação aos demais, tendo em vista a existência de um método mais rigoroso de validação das suas proposições (método científico).
A ciência do direito é uma ciência cultural, ciência da realidade (e não apenas de objetos ideais, como as normas). Segundo a visão adotada neste trabalho, o seu objeto principal de estudo é a conduta humana compartida e enquanto fato social (na acepção durkheimiana) efetiva ou potencialmente gerador de conflitos na comunidade. As normas são os produtos do direito (e não o seu objeto), sendo que uma ciência deve ter também como objeto de estudo o ente que produz, e não só o seu substrato básico.
O método de uma ciência deve adequar-se ao objeto desta, é dizer, deve harmonizar-se com a lógica interna da ciência à qual ele se aplica. A proposta metodológica apresentada neste estudo apresenta considerações materiais e formais sobre o método da ciência do direito, sempre tendo em vista o seu amoldamento em relação à concepção objetal exposta anteriormente. A proposta inclui ainda considerações que visam elencar e esclarecer os atos gnoseológicos inerentes ao procedimento de pesquisa em ciências sociais, sendo que tal inserção tem por objetivo evitar que se façam referências a tais atos como se fossem eles “o” método em si, ou seja, visa-se evitar que a parte seja, de modo impreciso, tomada pelo todo.
A tarefa (e não o objeto de estudo) da ciência jurídica é produzir soluções normativas que sirvam para o equacionamento dos fatos sociais do tipo mencionado anteriormente. Ainda quando o jurista realiza, mediante o uso do método jurídico-científico, uma simples interpretação, está ele a propor soluções normativas, pois interpretar é emitir juízos, e no caso da ciência do direito, juízos de “dever ser”. A indagação sobre se esta proposição será ou não integrada efetivamente ao ordenamento jurídico é uma questão que não interessa ao cientista do direito, tendo em vista que depende de fatores por ele incontroláveis, tais como a aceitação pela classe política (parlamentares, Presidente da República etc), ou a aceitação social voluntária (no caso das normas meramente consuetudinárias ). Ou seja, o cientista do direito deve formular as suas propostas de modo cientificamente livre, sem se preocupar se elas serão ou não aceitas pelas instituições estatais formais de positivação jurídica.
O aplicador do direito in concreto, quando realiza subsunções de normas existentes no sistema jurídico a fatos individuais conflituosos (e não a fatos sociais) que lhe são apresentados para exame, ou mesmo quando propõe novas interpretações normativas sem, contudo, seguir minimamente o método jurídico supra exposto, não faz, a rigor, ciência jurídica, da mesma forma que um médico, ao receitar um medicamento cuja aplicação lhe foi ensinada por um professor ou por um tratado de medicina, também não o faz. Nestes casos o que ocorre é simplesmente a aplicação, por profissionais treinados, da ciência anteriormente produzida.

6 REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
BUNGE, Mario. La investigacíon cientifica. 2ª ed. Barcelona: Ariel, 1958.
COSSIO, Carlos. La valoración jurídica e la ciencia del derecho. Buenos Aires: Ediciones Arayú, 1954.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
DURANT, Will. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2005.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. Uma questão de princípio. 2ª ed. São Paulo: Marins Fontes, 2005.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.
MARCONDES, Danilo. Filosofia Analítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
SOUZA, José Crisóstomo de (org.). A filosofia entre nós. Ijuí: Unijuí, 2005.

________________________
NOTAS

1 Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Procurador Federal (Advocacia-Geral da
União – AGU).
2 O termo jurista, neste texto, será empregado para designar tão somente o pesquisador que produz ciência do
direito.
3 DURANT, Will. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 77.
4 Ibidem, p. 77.
5 Ibidem, p. 77 Na mesma obra e local, o historiador da filosofia Will Durant chega a exclamar: “Quantos não
seriam os debates que teriam ficado reduzidos a um parágrafo se os contendores tivessem tido a ousadia de
definir seus termos!”
6 Conforme Danilo Marcondes, “Em termos gerais, a filosofia analítica pode ser caracterizada por ter como idéia
básica a concepção de que a filosofia deve realizar-se pela análise da linguagem”. Ainda segundo o mesmo
autor, “Na verdade, podemos distinguir na tradição analítica tal como se constituiu historicamente uma
multiplicidade de concepções de análise, nem todas excludentes. Temos análise como tradução de uma
linguagem imprecisa para uma linguagem lógica isenta de equívocos e ambigüidades; como redução de algo
desconhecido ou obscuro a algo conhecido e mais claro; como decomposição de um complexo em seus
elementos simples constituintes; como elucidação ou clarificação de algo confuso ou obscuro. Temos análise do
conceito, análise da proposição e análise do discurso.” (MARCONDES, Danilo. Filosofia Analítica, p. 12/13)
7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 521.
8 SOUZA, José Crisóstomo de. Ernst Tugendhat: Um filósofo analítico interessado em problemas humanos. In:
SOUZA, José Crisóstomo de (org.). A filosofia entre nós, p. 134.
9 BUNGE, Mario. La investigacíon cientifica, p. 24 (Tradução de do autor)
10 Ibidem, p. 32 (Tradução de do autor)
11 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 361.
12 José Ferrater Mora esclarece que, na história do termo epistemologia, “Durante algum tempo, registrou-se
certa propensão para usar ‘gnosiologia’ [sic] de preferência a ‘epistemologia’. Depois, ao considerar-se que
‘gnosiologia’ estava sendo empregada com bastante freqüência por correntes filosóficas de orientação
escolástica, este termo passou a ser adotado no sentido geral de teoria do conhecimento, sem se especificar de
que tipo de conhecimento se tratava, enquanto ‘epistemologia’ foi introduzido para designar a teoria do
conhecimento científico, ou para elucidar problemas relativos ao conhecimento cujos principais exemplos eram
extraídos das ciências”. (MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia, p. 216)
13 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996, p. 182
14 BUNGE, Mario. Op. cit., p. 24 (Tradução de do autor)
15 Ibidem, p. 24
16 Ibidem, p. 26.
17 Ibidem, p. 26-27.
18 Para o pesquisador cuja noção epistemológica de direito seja, por exemplo, o sistema do positivismo jurídico
kelseniano, não farão muito sentido as etapas do método proposto neste trabalho (ver 4.2, infra) que se referem
ao sopesamento dos valores sociais eventualmente em conflito e à análise dos fatos sociais (no sentido
sociológico) correlatos para a tarefa de propositura da solução jurídica de um determinado problema, tendo em
vista que a concepção de direito adotada pelo pesquisador hipotético citado propõe a exclusão total de elementos
(a exemplo das considerações axiológicas e sociológicas) que não sejam estritamente normativos e neutros.
19 FERRAZ, Tércio. A ciência do direito. Apud, DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do
direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 131.
20 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 141.
21 O que seria admissível se se tratasse do normativismo kelseniano.
22 Utilizando a axiologia positiva, à qual interessa os valores existentes na comunidade, como fatos sociais (e não
as valorações internas do pesquisador, e nem os valores ideais de que trata a axiologia pura).
23 A teoria egológica de Carlos Cossio, ao mesmo tempo em que mantém os avanços proporcionados pela teoria
pura kelseniana (notadamente no campo da lógica jurídica), representa uma notável evolução epistemológica,
tendo em vista que logrou conceber uma forma de integrar os necessários conhecimentos filosóficos
(notadamente axiológicos) e sociológicos à ciência do direito, sem abrir mão da autonomia desta última.
Todavia, a teoria egológica ainda comporta algumas imperfeições, cuja exposição e discussão não cabe nos
limites deste estudo. Parece lícito afirmar que epistemologia jurídica caminha, de modo geral, para a
estabilização das concepções de ciência do direito atualmente predominantes, todas elas surgidas no pós-guerra
(sendo que, dentre estas, a teoria egológica parece ser uma das principais representantes, ao lado das concepções
de Ronald Dworkin e Robert Alexy, dentre outros pós-positivistas). Estas concepções possuem inúmeros pontos
de contato, notadamente quanto à inclusão definitiva, na ciência do direito, do sopesamento principiológico para
a solução de casos difíceis (hard cases). A ciência do direito parece voltar a admitir também a influência da
análise de dados sociológicos e estatísticos (o que deve ser feito com muito critério e cautela interpretativa),
superando-se, definitivamente, o positivismo jurídico estrito.
24 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 17-18
25 Ibidem, p. 16.
26 O que ora se denomina conteúdo material do método jurídico são os aspectos do método que se relacionam
mais diretamente com o substrato (objeto) da ciência jurídica.
27 Émile Durkheim sustenta que, antes de fazer ciência propriamente dita, o homem elabora noções précientíficas,
produto da reflexão. Este autor produz também uma crítica à utilização vulgar do termo “fato social”,
e postula a relevância da definição precisa deste conceito, pois disto deriva a definição do objeto da sociologia.
Assim, antes de propor a abordagem metodológica que entende conveniente ao estudo dos fatos sociais,
Durkheim expõe o seu conceito de fato social. Os fatos sociais seriam, então, “as maneiras de agir, de pensar e
de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem”. Suas
principais características seriam, como já se pôde vislumbrar, a exterioridade (objetividade) e a coercitividade
(ascendência). A realidade do fato social é sui generis, distinta dos fatos individuais que a manifestam. O fato
social exprime o estado da alma coletiva, e não um somatório de aspectos psicológicos individuais.
(DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 31-36)
28 Mesmo quando o jurista propõe determinada definição para um conceito, na verdade está propondo uma
norma, a qual prescreverá a acepção daquele termo que deverá ser adotada no mundo do direito (a estrutura da
referida norma será algo do tipo: “dado o termo X, a sua definição precisa para fins jurídicos deve ser Y”).
29 Ora, não é possível para o sociólogo, que não conhece a fundo o conteúdo ordenamento jurídico nem a sua
dinâmica de compreensão, interpretação e alteração, propor soluções normativas com um nível satisfatório de
correção técnica e plausibilidade (considerando as normas e princípios já existentes, os conceitos jurídicos, a
técnica adequada de elaboração de normas etc). Esta tarefa só pode ser desempenhada a contento pelo jurista,
embora o sociólogo possa atuar de modo auxiliar, conforme se verá no decorrer deste estudo.
30 Um possível equívoco seria a suposição de que a sociologia que interessa ao direito seria somente a sociologia
jurídica, que é aquela que estuda os efeitos sociais das normatizações. Em verdade, ao invés do estudo dos
efeitos das regulamentações jurídicas, interessa ao direito, em maior grau, que a sociologia (geral) investigue os
fatos sociais mais relevantes que ocorrem em uma dada sociedade, seja quais forem eles, e com isso forneça o
substrato empírico para que a ciência jurídica possa apresentar soluções adequadas com vistas à “cura” dos fatos
sociais patológicos. Sobre o conceito de fato social patológico, v. DURKHEIM, Émile. Op. cit., p. 67-90.
31 Ciência de matiz multidisciplinar que busca apurar as causas do crime, abordando este como um fato social.
32 Disciplina que realiza valorações éticas (inclusive quanto à necessidade ou não de proteção jurídico-penal de
certos bens jurídicos) e análises acerca das possibilidades políticas de implementação da solução sociológica
proposta pela criminologia, ou da solução jurídica proposta pelo direito penal.
33 Cuja tarefa precípua é a de viabilizar a introdução, sob o aspecto jurídico e na forma de normas, das soluções
fáticas propostas pelas duas disciplinas anteriores. Contudo, a atuação das três disciplinas não ocorre, na prática
de forma pura e estanque. O fato é que direito e sociologia são disciplinas irmãs, devendo dialogar uma com a
outra na persecução dos seus objetivos, assim como a biologia e a química, que são irmãs da medicina,
interagem com esta.
34 O termo fenomênico-social foi aqui concebido com um significado simples, querendo denotar tão somente a
generalidade dos eventos (fatos sociais) que ocorrem numa determinada sociedade. Não apresenta nenhuma
relação, portanto, com a fenomenologia hegeliana, husserliana ou heideggeriana.
35 Evidentemente, a resolução em massa dos conflitos in concreto, pela aplicação da norma proposta pela ciência
do direito, repercutirá na dinâmica do fato social originariamente estudado.
36 Ou, nas palavras de Mario Bunge, “os estágios principais do caminho da investigação científica, os passos
principais da aplicação do método científico”, (BUNGE, Mario. Op. cit., p. 25)
37 A relação ora proposta não tema pretensão de ser exaustiva, podendo ser identificadas outras etapas que
necessariamente devem integrar o método jurídico.
38 Esta identificação do problema jurídico depende da verificação da existência de um fato social normal (mas
potencialmente gerador de conflitos) ou patológico (que já é efetivamente gerador de conflitos).
39 A hipótese pode consistir, por exemplo, na proposta de edição de uma nova norma ou na proposta de uma
interpretação diferente para uma norma que já integra o sistema.
40 Esta verificação deve ser rigorosa, podendo ser fundada em dados estatísticos confiáveis (esclareça-se que a
utilização de dados estatíscos na área jurídica deve ser feita com o máximo rigor interpretativo). Por exemplo,
devem ser evitados os raciocínios (muito comuns) do tipo “eu acho que o direito administrativo sancionador é
suficiente para coibir as agressões ao meio ambiente, sendo desnecessária a intervenção do direito penal na seara
ambiental”. Um raciocínio deste tipo, para ser válido, teria que ser embasado na realidade empírica (ou seja, em
análises jurídicas profundas acerca dos limites de efetividade do direito administrativo sancionador, em
informações de outras ciências e em dados estatísticos), e não meramente nas impressões subjetivas precipitadas
do pesquisador.
41 V. os inúmeros desdobramentos desta idéia nas obras de Ludwig Wittgenstein e dos demais filósofos da
corrente analítica.
42 POPPER, Karl Raymund. Op. cit., p. 41
43 A obscuridade e o rebuscamento excessivo e intencional da linguagem técnico-jurídica, tornando o texto
excessivamente pesado e hermético, em detrimento da clareza e da concisão, em verdade pode esconder
propósitos ilegítimos, tais como o de formar uma “névoa” criadora de ares de autoridade inquestionável em torno
do autor do texto. Outra possibilidade que merece análise cuidadosa nestes casos é a intenção oculta de
deliberada dificultação, por meio do hermetismo, das tentativas de falseabilidade da teoria exposta.
44 POPPER, Karl Raymund. Op. cit., p. 91
45 Este estudo visa apenas apresentar uma noção introdutória a tais conceitos. Para um adequado entendimento
da realidade dos mesmos mostra-se necessária a pesquisa em obras específicas que versem sobre hermenêutica e
compreensão.
46 Que foi escolhido como concepção epistemológico-jurídica modelo no presente estudo, tal como já
mencionado supra (ver 4.2 retro).
47 Conhecimento é um termo mais amplo e genérico do que intelecção, explicação e compreensão, e em verdade
abrange os três últimos. O conhecimento, portanto, pode advir por meio dos atos da intelecção, da explicação ou
da compreensão, sendo que nem sempre cada um destes ocorre de maneira pura, podendo vir associado a algum
dos outros.
48 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 38.
49 Ibidem, p. 42.
50 HEIDEGGER, Martin. Apud GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 355.
51 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 355-356.
52 O termo preconceito não é utilizado por Gadamer na acepção atualmente em voga: “Uma análise da história
do conceito mostra que é somente na Aufklärung que o conceito do preconceito recebeu o matiz negativo que
agora possui. Em si mesmo, ‘preconceito’ (Vorteil) quer dizer um juízo (Urteil) que se forma antes do exame
definitivo de todos os momentos determinantes segundo a coisa em questão. […] ‘Preconceito’ não significa,
pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou
negativamente.” (GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 360) Assim, na obra de Gadamer a palavra preconceito
reassume o seu sentido originariamente neutro.
53 Ibidem, p. 356.
54 Ibidem, loc. cit.
55 Ibidem, p. 395.
56 Quanto a este termo, Gadamer explica que “Hoje a formação está estreitamente ligada ao conceito de cultura e
designa, antes de tudo, a maneira especificamente humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades”. (Ibidem,
p. 45).
57 MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 205.
58 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Op. cit., p. 142
59 Ibidem. p. 229.
60 Ibidem, p. 63.
61 José Ferrater Mora relata, sem apresentar refutação, que “O contraste entre empirismo e racionalismo tem sido
equiparado muitas vezes ao contraste entre empirismo e inatismo.” (MORA, José Ferrater. Op. cit., p. 206)
62 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Op. cit., p. 71 Na lógica aristotélica, o silogismo dialético se
opõe ao silogismo apodítico, que funda-se em premissas consideradas verdadeiras.
63 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 599.
64 Quando o jurista propõe para uma norma, após rigorosa aplicação metódica, uma determinada interpretação
em detrimento de outras, está realizando uma proposta normativa (produto da ciência do direito), pois a sua
proposição terá a forma “dada a norma X, a sua interpretação correta deve ser Y”.
65 Tal possibilidade foi aqui exposta tendo em vista a sua possibilidade de ocorrência em tese, conquanto se
conheça a improbabilidade de que soluções jurídico-científica

A METODOLOGIA NA COGNIÇÃO JUDICIAL

Publicado: dezembro 23, 2014 em Artigo


Daniela Santos Bomfim[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A cognição judicial como atividade de pesquisa. 3 O componente lógico da cognição: a relação entre o método dedutivo e a estrutura do fenômeno jurídico. 4 O processo do compreender: a relação estrutural entre o fato e a norma no círculo hermenêutico. 4.1 A norma no processo do compreender. 4.2 O fato no processo do compreender. 4.3 A relação fato e norma no processo do compreender: o círculo hermenêutico. 5 A crítica efetiva como método que legitima a atividade cognitiva judicial. 6 Conclusão. 7 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O conceito de cognição está relacionado ao de pesquisa, quer no que concerne às questões incidentais, quer quanto à questão principal, todas submetidas ao órgão jurisdicional. Por isso, no presente trabalho, buscar-se-á compatibilizar o método da lógica dedutiva com a noção do círculo hermenêutico, bem assim com a ideia de reciprocidade estrutural entre fato e norma, sujeito e objeto.  Isso porque, nada obstante a ideia de uma verdade absoluta pré-existente não mais possa prevalecer, a lógica dedutiva não pode ser descartada na atividade de pesquisa do órgão jurisdicional, eis que se trata da estrutura do fenômeno jurídico substancial no mundo do pensamento.

De outra parte, esta estrutura não é vazia, e a atividade do magistrado não é de mera subsunção em sentido estrito. A atividade cognitiva, tal como a atenção, é criativa; não se trata de mera descoberta. Deve-se, pois, identificar o conteúdo/a substância que preenche a estrutura da lógica dedutiva na atividade da pesquisa judicial. É o que se propõe.

Por fim, considerando que a objetividade do conhecimento judicial não se encontra na pretensão de neutralidade do magistrado, que não pode ser despido de sua história e de suas pré-compreensões, buscar-se-á identificar o método da crítica efetiva, proposto por Karl Popper, como aquele que objetiva e legitima o resultado da pesquisa judicial.

 

2 A COGNIÇÃO JUDICIAL COMO UM ATO DE PESQUISA

A pesquisa é a busca sistemática de solução para um dado problema. Nas palavras de Antônio Carlos Gil: “Pode-se definir pesquisa como o procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos”.[ii]

A pesquisa pressupõe, então, a existência de um problema. Nas palavras de Antônio Carlos Gil, problema é toda “questão não solvida e que é objeto de discussão, em qualquer domínio do conhecimento”[iii].

Problema e conhecimento se relacionam. Não há problema sem conhecimento, assim como não há conhecimento sem problema. O problema surge do conhecimento e é, a partir do problema, que se tem o conhecimento. É o que ensina Karl Popper:

[…] o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais propriamente, de problemas. Poder-se-ia dizer: não há nenhum conhecimento sem problemas; mas, também, não há nenhum problema sem conhecimento. Mas isto significa que o conhecimento começa da tensão entre conhecimento e ignorância. Portanto, poderíamos dizer que, não há nenhum problema sem conhecimento; mas, também, não há nenhum problema sem ignorância. Pois cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento.[iv]

É nessa perspectiva que problema, conhecimento e ignorância estão estruturalmente relacionados. Não se pode imaginar qualquer um deles sem os dois outros. É porque se conhece que se desconhece. E é porque se conhece e se desconhece que se busca conhecer, solucionar. Pesquisar é buscar conhecer. O conhecimento é o produto da pesquisa; o problema, o seu pressuposto.

Antônio Carlos Gil refere-se à ideia de hipótese como a solução possível ao problema, que, ao longo da pesquisa, será submetida à crítica para ser tida como verdadeira ou falsa[v]. Esta noção aproxima-se àquela referida por Karl Popper, em que a solução deve ser submetida à crítica efetiva; é esta crítica que legitima e traduz a objetividade do conhecimento[vi].

Karl Larenz, ao se referir à compreensão das expressões linguísticas, afirma que “interpretar é uma atividade de mediação pela qual o intérprete compreende o sentido de um texto, que se lhe tinha deparado como problemático”[vii]. O problema, no caso, envolve o sentido de dada expressão linguística (que é signo de linguagem). Afirma, ainda, que, no processo do compreender, “existe, por regra, uma conjectura inicial de sentido, mesmo que por vezes ainda vaga”[viii].

A conjectura inicial de sentido é a hipótese do problema, a solução possível de sentido, que, no processo do compreender, pode ser refutada ou confirmada. Ainda que seja confirmada, o intérprete não retorna ao ponto de partida, pois aí já não mais se tratará de hipótese, mas, sim, de conhecimento[ix].

Nesse contexto, pode-se afirmar que, em toda pesquisa, a hipótese é a conjectura inicial de resposta, que é possível justamente em face da pré-compreensão do pesquisador, do fato de ser o problema decorrente da tensão com um conhecimento prévio. O problema não surge do nada. Ele surge do próprio conhecimento, que permite, pois, a formulação de hipóteses[x]. Cuida-se de solução possível, experimental, que deverá ser submetida à crítica efetiva para que seja refutada. Apenas a crítica efetiva legitima o conhecimento decorrente da pesquisa.

No âmbito da atividade jurisdicional, também se pode falar em pesquisa, problema e hipótese.

Com efeito, a cognição judicial é um ato de inteligência, que, segundo Kazuo Watanabe, consiste “em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium[xi].  A cognição é a atividade que tem como resultado o conhecimento, vale dizer, a resposta do magistrado ao que foi pedido. A cognição é, pois, a pesquisa da solução aos problemas submetidos à apreciação do magistrado. Estes problemas são as questões.

Como ensina Fredie Didier Jr., na dogmática processual, o termo “questão” assume dois significados: (i) questão como todo ponto de fato ou de direito controvertido, em relação ao qual deve o magistrado pronunciar-se e (ii) questão como o próprio thema decidendum, questão principal a ser decidida pelo magistrado.[xii] Em qualquer destas acepções, questão é problema, que deve ser solucionado pelo órgão jurisdicional, que titulariza o dever de decidir, correspectivo ao direito de ação da parte.

É nesse sentido que se distinguem as questões que devem ser resolvidas incidenter tantum daquelas que devem ser resolvidas principaliter tantum.

A resolução das primeiras será posta como fundamento para a solução de outras[xiii], assemelhando-se à cadeia dedutiva do método cartesiano. Em relação a essa espécie de questões, há cognição e há resolução, mas não há decisão, não há julgamento, de forma que a sua solução não ficará imune em razão da coisa julgada.[xiv] São também problemas a serem solucionados na atividade cognitiva de pesquisa do magistrado, mas a solução não comporá o fato jurídico da coisa julgada material. Uma vez resolvidas, serão conhecimento definitivo apenas naquela relação jurídica material.

“Há questões, no entanto, que devem ser decididas, não somente conhecidas”[xv]. Cuida-se das questões principais, que compõem o objeto litigioso do processo. Veja-se: todas as questões compõem o objeto do processo, mas apenas aquelas que devem ser decididas compõem o seu objeto litigioso do processo. Com relação a elas, haverá decisão, que é pressuposto fático da coisa julgada material. Com relação a todas, há cognição, há pesquisa e há conhecimento.

A questão principal, que é submetida ao órgão jurisdicional, é a de saber se a situação jurídica afirmada na demanda (como sua causa de pedir próxima) existe ou não existe. É este o problema principal da atividade de pesquisa do magistrado. Todos os demais problemas (questões incidentais) serão solucionados para que sirvam de fundamento na busca de solução da questão principal.

A ideia, aqui, assemelha-se àquela da cadeia dedutiva referida por René Descartes. O método dedutivo é justamente a enumeração de coisas em que “se deduz diretamente algumas verdades de outras”.[xvi] O conceito de verdade, entretanto, aqui, não pode ser aquele tido pelo autor, como verdade absoluta revelada na pesquisa, mas, sim, como solução construída processualmente, que será atingida pela preclusão (ainda que apenas formal).

O problema principal é, portanto, a existência ou não da situação jurídica afirmada; problema, em regra, decorrente da tensão existente entre as partes acerca da sua existência (o que caracteriza o interesse de agir). Pode-se afirmar que, por meio da demanda, o autor traz ao Poder Judiciário um problema a ser solucionado, ao longo do processo. Demais disso, ele afirma uma solução que considera a melhor ao caso (a sua hipótese). A hipótese do autor será submetida à crítica efetiva da parte contrária, cujo escopo é justamente refutá-la. Ao final, cabe ao órgão jurisdicional refutá-la ou certificar a sua existência, tal como afirmado na hipótese do autor. Note-se que, nesse caso, a solução perde o seu caráter de conjectura inicial – de mera afirmação – para que, na lógica jurisdicional, seja conhecimento, que comporá, inclusive, o suporte fático da coisa julgada material, já que se terá havido, além de cognição, decisão.

Nesse sentido, Henri Motulski afirma que “réaliser le Droit, c’est donc rechercher si le fait social à examiner donne ou non lieu à un droit subjectif, s’intègre ou non dans une règle de Droit”[xvii].

Portanto, realizar o direito seria, em suas palavras, “pesquisar” se o fato social corresponde ou não ao pressuposto da norma, para, assim, criar a situação jurídica (consequência jurídica). Dessa forma, ainda que a resposta seja negativa, estar-se-ia realizando o direito.[xviii] Nas palavras do autor:

Et c’est ainsi que nous pouvons donner une définition de la réalisation du Droit: c’est la tentative de penser un cas particulier comme contenu dans une règle de Droit, et la constatation du résultat, positif ou négatif, de la recherche.[xix]

Continua ressaltando que “a constatação do resultado da pesquisa” pode assumir variadas formas. Para o juiz, por exemplo, a conclusão está na decisão. Um advogado consultado, por exemplo, sobre a viabilidade de uma causa, emite sua opinião.[xx]

Como se vê, para o autor, a realização do direito seria a pesquisa acerca da sua existência, a partir da verificação dos seus elementos criadores, vale dizer, dos seus pressupostos fáticos. O resultado da pesquisa pode ser positivo ou negativo. A realização do direito pelo órgão jurisdicional é a pesquisa acerca do direito afirmado pelo autor.

A demonstração da existência de um direito subjetivo – afirma, ainda, Henri Motulski – só poderia ocorrer, no espírito, sob a forma do silogismo da determinação da consequência jurídica[xxi]. A pesquisa dos termos do silogismo ocorreria por meio da seleção dos fatos juridicamente relevantes, do magma de fatos, e da norma aplicável.

Le juriste chargé de la réalisation du Droit se trouve  devant un “cas particulier”, qui se présent à lui sous la forme d’un “magma” de faits. […] il faut, de l’ensemble de l’ordre juridique positif, détacher une règle paraissant correspondre au cas dont il s’agit; il faut, d’un autre côté, dégager du magma de faits les circonstances juridiquement importantes: el il faut essayer de construire, avec ces mattérieux, un syllogisme juridique.[xxii]

Os direitos são consequências jurídicas irradiadas apenas dos fatos jurídicos – fatos ou conjunto de fatos que se inserem no mundo jurídico por força da incidência normativa. São os elementos que compõem o fato jurídico, que são chamados por Henri Motulski como fatos criadores do direito, que são destacados do magma de fatos.

Cabe ao autor/demandante afirmar a irradiação do direito por meio da formação do fato jurídico. Cabe ao órgão jurisdicional, em sua pesquisa, verificar a formação do fato jurídico e a irradiação da consequência jurídica. Em ambos os casos, tem-se o fenômeno jurídico substancial no mundo dos pensamentos, mas assumindo vestes diversas: no primeiro, é afirmação; é hipótese; é solução possível. No segundo, é conhecimento; é produto da pesquisa.

A pesquisa do magistrado ocorre, no espírito, sob a forma de um silogismo, o silogismo da determinação da consequência jurídica. Este é o seu componente lógico que a estrutura. Como afirma Kazuo Watanabe: “procura-se reduzir a atividade do juiz, didaticamente, ao esquema de um silogismo, no qual a regra jurídica abstrata constituiria a premissa maior, os fatos representariam a premissa menor e o provimento do juiz seria a conclusão.”[xxiii] Esta é a sua estrutura lógica, o seu elemento lógico.

Mas não é o único. A estrutura da pesquisa judicial não é um vazio, não é oca. A atividade do magistrado não é de descoberta, mas, sim, de constituição. Há valoração nos fenômenos da formação do fato jurídico e da irradiação da consequência jurídica. É por meio da relação dos seus elementos valorativos e do seu elemento lógico que a pesquisa do magistrado se revela como um processo do compreender, por meio do círculo hermenêutico. É o que se verá.

 

3 O COMPONENTE LÓGICO DA COGNIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE O MÉTODO DEDUTIVO E A ESTRUTURA DO FENÔMENO JURÍDICO

René Descartes propõe a aplicação do método das ciências exatas às ciências sociais. Afirma que seria necessário buscar um método compreendendo as vantagens da lógica, da geometria e da álgebra, mas isento de defeitos.[xxiv] São seus quatro preceitos fundamentais: (i) não se aceitar como verdadeira nenhuma coisa que não se conhecesse evidentemente como tal; (ii) dividir as dificuldades examinadas em tantas partes quanto possível e necessário; (iii) conduzir por ordem o pensamento, iniciando-se dos mais simples e prévios para, gradativamente, os compostos e decorrentes; (iv) fazer, para cada caso, enumerações completas e revisões gerais.[xxv]

No contexto do surgimento do paradigma da ciência moderna, em que se buscava a racionalização da noção de verdade, para retirar-lhe qualquer caráter místico ou teológico, afirmava que só haveria uma verdade para cada coisa[xxvi]. Assim, o ato de pesquisa seria uma descoberta da verdade escondida (e não uma criação).

A verdade seria o escopo da pesquisa. A sua primeira regra para o espírito foi a seguinte: “Os estudos devem ter por finalidade a orientação do espírito, para que possamos formular juízos firmes e verdadeiros sobre todas as coisas que se lhe apresentam”.[xxvii]

A ciência, como conhecimento certo e evidente, em que se rejeitam conhecimentos apenas prováveis[xxviii], valer-se-ia do método como instrumento necessário para a procura da verdade.[xxix] Conceitua método como “regras certas e fáceis, graças às quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz.”[xxx]

O método proposto consistia “na ordem e disposição das coisas, para as quais é necessário dirigir a agudeza do espírito para descobrir a verdade.”[xxxi] Segundo o autor, “observaremos isto fielmente, se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras e obscuras a outras mais simples, e se depois, partindo da intuição das mais simples, tentar nos elevar pelos mesmos graus ao conhecimento de todas as outras.”[xxxii]

O método dedutivo seria a formulação de uma série de coisas em que se deduz diretamente algumas verdades de outras.[xxxiii] Cuidar-se-ia de uma cadeia de silogismo (enumeração) “em um movimento contínuo e jamais interrompido”[xxxiv].

No que concerne à relação do método dedutivo com a dialética, afirma René Descartes:

Imitamos os dialéticos apenas nisto: como eles, na exposição das formas dos silogismos, supõem conhecidos os seus termos ou a matéria, assim também supomos que a questão é perfeitamente compreendida. Não distinguimos, porém, como eles, dois extremos e o meio. Consideramos o assunto desta forma: primeiramente é necessário que em toda questão haja algo desconhecido, pois, do contrário, a investigação seria vã; em segundo lugar, esse incógnito deve ser designado de alguma maneira, pois do contrário não estaríamos determinados a investigar isso melhor que qualquer outro objeto; em terceiro lugar, só pode ser designado mediante algo que já seja conhecido.[xxxv]

O método dedutivo é caracterizado pela enumeração, pela série, pela cadeia de silogismos. Nas lições de René Descartes, o método revelaria uma verdade pré-existente.

A estrutura do método dedutivo aproxima-se da estrutura do elemento lógico da cognição judicial. Cuida-se do silogismo da determinação da consequência jurídica, em que a premissa maior seria a norma jurídica – em que se enlaçariam a hipótese fática abstrata e a consequência jurídica – e a premissa menor, a afirmação de que os fatos da vida são equivalentes à previsão hipotética da norma.

A estrutura do silogismo da determinação da consequência jurídica – frise-se, faz-se referência à estrutura – aproxima-se daquela do método proposto por René Descartes. Na linha do pensamento do mencionado autor, poder-se-ia dizer que o silogismo seria o meio para que se formulasse um juízo verdadeiro acerca da questão da existência ou não de dada situação jurídica, questão submetida ao Poder Judiciário por meio da postulação da parte. Nesse contexto, a atividade do magistrado não seria criativa; caber-lhe-ia tão somente realização a subsunção do fato à norma, revelando uma verdade pré-existente, qual seja, a irradiação ou não da consequência jurídica.

Nesse contexto, Merleau Ponty afirma que, para os empiristas, a atenção seria como “um projetor que ilumina objetos preexistentes na sombra. O ato de atenção então não cria nada, e é um milagre natural”.[xxxvi]

Esta concepção, de outra parte, aproxima-se da ideia de Pontes de Miranda de que a incidência da norma seria automática e infalível. Consoante a sua teoria do fato jurídico, deve-se distinguir o mundo dos fatos (ou simplesmente mundo) do mundo jurídico. O mundo jurídico é formado pelos fatos jurídicos, que são os fatos da vida qualificados (como jurídicos), por forca da incidência da norma jurídica. Nesse sentido, é célebre a metáfora por ele utilizada: “para que os fatos da vida sejam jurídicos, é preciso que regras jurídicas – isto é, normas abstratas – incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’”[xxxvii].

Dos fatos jurídicos decorrem efeitos jurídicos, situações jurídicas em sentido lato (dentre as quais, as relações jurídicas). E apenas deles. É incorreto afirmar que as relações jurídicas (bem assim os direitos e deveres, posições jurídicas ativas e passivas) têm como fontes os fatos (da vida) ou as normas. Os direitos subjetivos, compondo o conteúdo eficacial das relações jurídicas, apenas decorrem de fatos jurídicos, resultado da incidência da norma no suporte fático concreto[xxxviii]. Mais do que apenas fatos. Mais do que apenas norma.

Ocorre que, para Pontes de Miranda, uma vez verificado no mundo o suporte fático concreto, haveria a incidência automática (e infalível) da regra jurídica, qualificando o fato como jurídico (plano da existência do fato jurídico)[xxxix]. Sobre a incidência “infalível” da norma, afirma:

A incidência das regras jurídicas nada tem com o seu atendimento: é fato do mundo dos pensamentos. O atendimento é em maior número, e melhor, na medida do grau de civilização. A falta no atendimento é que provoca a não coincidência entre incidência e atendimento (= auto-aplicação) e a necessidade de aplicação pelo Estado, uma vez que não se tem mais, na quase totalidade dos casos, a aplicação pelo outro interessado (justiça própria, ou de mão própria).[xl]

Como se vê, para o autor, a incidência ocorreria automaticamente independentemente de qualquer “dizer” do direito, quer pela parte interessada, quer pelo Estado. Estar-se-ia, então, no âmbito do atendimento voluntário ou, se assim não ocorresse, no âmbito da aplicação pelo magistrado, já que se veda, em regra, a autotutela. Demais disso, em sua concepção, não se poderia falar em interpretação dos fatos; os fatos apreendidos pela norma seriam os fatos brutos, e não o enunciado fático decorrente de sua interpretação.

Ocorre que, assim como a ideia de verdade absoluta e pré-existente do método cartesiano, a noção de infalibilidade da incidência normativa não mais se sustenta. Como visto, cuida-se de noções relacionadas: a ideia de infalibilidade da incidência normativa reflete uma concepção positivista da atividade magistrado, que seria reveladora de um direito pré-existente, em nada criativa. Este paradigma, quer no que concerne ao método de pesquisa científico, quer no que concerne à atividade do órgão jurisdicional, já foi superado.

Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos relata acerca da crise do paradigma da ciência moderna e acerca da emergência de um novo paradigma, no qual carece de sentido a dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais, bem assim outras dicotomias como natureza/cultura, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, dentre outras.[xli]

É nesse sentido, em que não cabem mais as dualidades, que se apresenta a relação estrutural entre o fato e a norma. Não são os fatos brutos que são apreendidos pela norma; nem é o texto normativo que os apreende. No silogismo da determinação da consequência jurídica, é o enunciado fático – decorrente da interpretação dos fatos – que é apreendido; é a norma reconstruída, a partir da interpretação do texto normativo ou de outros signos de linguagem que apreende. A atividade de pesquisa do magistrado é uma atividade criativa, e não de descoberta.

A estrutura da lógica dedutiva não deve ser, de todo, afastada. Ela é o componente lógico da cognição judicial. O método dedutivo é também utilizado na pesquisa judicial, mas ele é compatibilizado com a ideia de relação estrutural entre sujeito e objeto, entre fato e norma. É o que se manifesta por meio do círculo hermenêutico no silogismo da determinação da consequência jurídica.

 

4 O PROCESSO DO COMPREENDER: A RELAÇÃO ESTRUTURAL ENTRE O FATO E A NORMA NO CÍRCULO HERMENÊUTICO

4.1 A norma no processo do compreender

A vida é uma sucessão causal e contínua de fatos, mas nem todos são relevantes para as relações interhumanas a ponto de justificar a interferência estatal. A comunidade jurídica, assim, regula os fatos e as relações reputadas relevantes, para atribuir-lhes efeitos que repercutam na convivência social.

Daí por que Henri Motulski afirma que elaborar o direito “c’est dégager de la matière brute des relations de la vie le principe normatif qui, une fois cristallisé, devra régir, dans le futur, ces mêmes relations”.[xlii] A regra de direito (tecnicamente mais correto: a norma jurídica) decorre da multiplicidade das manifestações sociais. A realização da norma, logo, como bem acentua M. Motulski, na reintegração da norma à realidade social de onde ela saiu.[xliii]

A norma jurídica é estruturalmente composta pelo pressuposto (“présupposition”, “Voraussetzung”) e pelo efeito jurídico (“l’effet juridique”, “Rechtsfolge”). Esta é a fórmula de Stammler difundida na França por Henri Motulski.[xliv]

No mesmo sentido, para Karl Larenz, a regra do Direito tem a forma linguística de uma proposição, a proposição jurídica, por ele assim definida:

A proposição jurídica enlaça, como qualquer proposição, uma coisa com a outra. Associa à situação de facto circunscrita de modo geral, à «previsão normativa», uma conseqüência jurídica, também ela circunscrita de modo geral. O sentido desta associação é que, sempre que se verifique a situação de facto indicada na previsão normativa, entra em cena a conseqüência jurídica, quer dizer, vale para o caso concreto.[xlv]

A norma jurídica teria a estrutura, portanto, de uma proposição, por meio do qual se ligaria o pressuposto fático à consequência jurídica. Acentua Karl Larenz que se deve, todavia, distinguir a consequência jurídica da eficácia fática da norma.[xlvi]

A consequência jurídica situa-se, sempre, no mundo do pensamento, no mundo jurídico. Daí por que não se equivale à efetividade social da norma. Demais disso, nem toda norma jurídica expressa um comando, uma permissão ou uma proibição. Toda norma jurídica contém, isso sim, uma ordenação de vigência. O seu sentido é colocar em vigência a consequência jurídica prevista sempre que um fato concreto corresponder à previsão fática abstrata que lhe for correspondente. E esta é a crítica que Karl Larenz faz à teoria imperativista.[xlvii] A consequência jurídica é modificação no mundo juridicamente vigente: é criação, modificação ou extinção de situações jurídicas (em sentido lato), e não apenas de direitos ou deveres a uma prestação.

O conceito estrutural da norma jurídica é também ressaltado por Pontes de Miranda e por Marcos Bernardes de Mello (Pontes de Miranda refere-se, normalmente a regra jurídica). Marcos Bernardes de Mello define a norma como proposição em que há o enlace entre dois elementos: a descrição de um suporte fático (abstrato) e os efeitos (abstratamente previstos) que serão irradiados do fato jurídico respectivo.

Desse modo, a norma jurídica constitui uma proposição através da qual se estabelece que, ocorrendo determinado fato ou conjunto de fatos (=suporte fático) a ele devem ser atribuídas certas consequências no plano do relacionamento intersubjetivo (=efeitos jurídicos).[xlviii]

A noção de suporte fático abstrato da teoria de Pontes de Miranda equivale à de “préssuposition/Voraussetzung” de Henri Motulski/Stammler e à de pressuposto de Karl Larenz. De igual modo, na estrutura de proposição, ao pressuposto fático abstrato ligam-se determinados efeitos jurídicos para que sejam irradiados, uma vez se verificando, no mundo, o suporte fático abstratamente previsto.

A norma jurídica não se confunde com o texto normativo. A estrutura lógica à qual nos referimos é da norma jurídica, e não do texto, do dispositivo normativo. Nesse sentido, Henri Motulski: “cette structure logique de la règle de Droit est tout à fait indepéndante de la rédaction”.[xlix] Cabe ao intérprete reconstituir, a partir do texto normativo, a regra (norma) de direito que se depreende da vida.[l] Na concepção de Henri Motulski, como se vê, a regra é resultado da relação recíproca do texto normativo e dos fatos da vida. Se os fatos sociais são “donnés” para o legislador; o texto normativo e os fatos particulares são “donnés” para o intérprete na reconstrução da norma.

A chacun son travail donc. Le législateur peut se borner à traduire en contours fermes les “arêts vives” des fluctuations du milieu social. Pour le technicien du Droit, la loi est un “donné”; il lui appartient d’organizar lui même, pour les besoins de son activité, la matière brute dont il dispose.[li]

Riccardo Guastini bem acentua a diferença entre texto e norma, ao entender a interpretação jurídica como “a atribuição de sentido (ou significado) a um texto normativo.”[lii] Na fórmula dos enunciados interpretativos, em que “T significa S”, a variável T é a disposição, o texto, que é objeto da interpretação: S está para a norma, que é o resultado da interpretação. [liii]

No mesmo sentido, ensina Humberto Ávila: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos.”[liv] Na verdade, como bem observa o autor, trata-se de uma reconstrução de sentido – o sentido semântico inicial inerente ao texto.

Uma norma pode ser decorrente da interpretação de vários dispositivos, assim como há norma sem texto (o princípio da cooperação, por exemplo), como texto sem norma (o preâmbulo da Constituição).

Podemos pensar, ainda, na norma jurisprudencial, construída a partir dos precedentes (que são fatos da vida). A súmula é um texto normativo de cuja interpretação decorre a norma jurídica. A interpretação da súmula deve ser realizada a partir dos precedentes que lhe deram origem. Há norma jurídica jurisprudencial mesmo quando inexiste texto sumulado. Os precedentes funcionam, então, como sinais de cuja interpretação conjunta decorre a norma jurídica, como uma exteriorização tácita de vontade.

Portanto, deve-se evidenciar que é a norma jurídica estruturada como proposição, independente da estrutura do texto (signo de linguagem) ou dos sinais (circunstâncias fáticas) dos quais ela é decorrente. Estes funcionam como ponto de partida da interpretação cujo sentido inicial a eles atribuído pode, inclusive, ser revisto no decorrer do processo do compreender.

 

4.2 O fato no processo do compreender

De outra parte, também os fatos são objeto de interpretação. O fato (da vida) em si não existe (ou, ao menos, careceria de utilidade tentar imaginá-lo). Existem interpretações, apreensões, compreensões sobre o fato. A realidade é linguagem. Carece de sentido pensar em algo que seja pré-linguístico.

Nesse contexto, em que se considera que os fatos são também objeto da interpretação, relaciona-se a noção da relação sujeito-objeto proposta pela fenomenologia de Merleau-Ponty e Martin Heiddeger.

Na concepção fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, o objeto é tal como ele é percebido pelo sujeito. É pedra angular da fenomenologia a relação entre o objeto e o sujeito. O objeto é reconstruído, e não descoberto. Nesse sentido, até mesmo o ato de atenção seria constitutivo. O ato de atenção seria a mudança da estrutura da consciência. Nesse sentido, afirma o autor:

Prestar atenção como uma mudança da estrutura da consciência. “Prestar atenção não é apenas iluminar mais dados preexistentes, é realizar neles uma articulação nova considerando-os como figuras. Eles só estão pré-formados enquanto horizontes; verdadeiramente, eles constituem novas regiões do mundo total. É precisamente a estrutura original que eles trazem que manifesta a identidade do objeto antes e depois da atenção. [lv]

A atenção seria constitutiva na medida em que representa a configuração dos dados tidos no horizonte; cuida-se da passagem do indeterminado ao determinado; a retomada, a cada instante, de um novo sentido.[lvi]

O milagre da consciência é fazer aparecer pela atenção fenômenos que estabelecem a unidade do objeto em uma dimensão nova, no momento em que eles a destroem. Assim, a atenção não é nem uma associação de imagens, nem o retorno a si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então só se oferece como horizonte indeterminado.[lvii]

Existem tantas verdades como existem tantas percepções (interpretações) do objeto. Não se pode pretender uma noção de verdade absoluta e anterior, tal como acreditava René Descartes. Daí por que não se pode falar de objeto sem sujeito. Sabe-se que são dois elementos distintos, mas um não existe sem o outro, tal como o fato e a norma.

No texto “Sobre a essência da verdade”, Martin Heiddeger afirma que o verdadeiro, seja o ente, seja o enunciado/enunciação/proposição, é aquilo que está de acordo, está em conformidade. Afirma: “Ser verdadeiro e verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas maneiras: de um lado, a concordância entre uma coisa e o que dela previamente se presume, e, de outro lado, a conformidade entre o que é significado pela enunciação e a coisa.”.[lviii]

Como se vê, o autor identifica a essência da verdade na relação circular entre o ente e o conhecimento sobre o ente (que é o enunciado). O ente é tido como verdadeiro na medida em que há sobre ele um juízo de concordância com a pré-compreensão sobre ele. De outro modo, o resultado deste juízo valorativo (que é interpretação) também vai ser valorado como verdadeiro ou não verdadeiro.

A relação entre o ente e o enunciado aproxima-se da relação entre o fato e o enunciado fático no círculo hermenêutico proposto por Karl Larenz. Na premissa menor do silogismo de determinação da consequência jurídica (S é um caso de P), “S” não é a situação de fato em bruto, mas, sim, o enunciado fático, resultado da interpretação da situação de fato. S é um enunciado fático, e não a situação de fato em bruto. Cuida-se, aqui, do processo de conformação da situação de fato.[lix]

 

4.3 A relação fato e norma no processo do compreender: o círculo hermenêutico

O fato, para o Direito, assim só o é quando considerado em relação há norma. Fato e norma são, ao mesmo tempo, separáveis e inseparáveis; distintos e não distintos. Cuida-se de uma relação de implicação de um na concepção do outro; uma associação estrutural recíproca.[lx]

Certamente, esta implicação estrutural recíproca ocorre no mundo do pensamento (la pensée juridique); é uma operação intelectual, à qual Maan Bou Saber, em sua tese de doutorado na Universidade de Paris II – Assas denominou de “Moyen”.[lxi] O “Moyen” proceder-se-ia por meio de duas formas essenciais que estão no fundo de toda forma de conhecimento: (i) abstração e (ii) síntese.

A abstração seria a dissociação (procedimento do espírito) realizada em dados brutos da experiência que pressupõe uma condição negativa e uma positiva. A negativa consiste no fato de que, no todo complexo, só se pode compreender que uma parte dele, uma qualidade ou um aspecto. A apreensão do todo não nos é impossível. A positiva consiste no estado de “reforçamento” daquilo que se abstrai (para aquele contexto) e, logo, de enfraquecimento do que não se abstrai. Assim, a real característica da abstração seria o crescimento parcial (condição negativa) de intensidade (condição positiva).[lxii]

Vale frisar: ainda que se suponha uma operação eliminatória, cuida-se de um procedimento positivo do espírito. Os elementos omitidos não comportam necessariamente uma supressão. Eles não são selecionados por, naquele contexto, não serem convenientes ou relevantes.[lxiii]

A síntese, por sua vez, é a unidade do diverso. Não se cuida de “distinguir sem separar” (abstração), mas de “unir distinguindo”. “Au lieu de voir deux où il y a un, nous devons voir un là où il y a deux”[lxiv]. A síntese ou unificação relaciona-se, pois, à ligação (relação, vínculo) necessária.

Fato e norma são elementos diversos, mas se deve pensar o fato quando se pensa a norma (e vice-versa). Os dois termos (fato e norma) são, então, tidos como, ao mesmo tempo, separáveis e inseparáveis. Para que estejam ligados, os dois elementos devem ser diferentes sem o serem.[lxv]

Não há fato (para o direito) se não há norma, assim como não há norma se não há fato. Daí por que M. Bou Saber fala em “impossibilité de concevoir l’un distinctement de l’autre”.[lxvi] E continua: “Le moyen est associaniste, une structure associative à l’interieur de laquelle un élément, le Fait, se trouve lié à un autre élément, la Norme”.[lxvii] Tem-se a ideia de vínculo estrutural, servindo de vetor a um tipo de ação causal.

O fato, bem como a norma, nesta operação do pensamento, não é objeto de um “conhecimento completo” – o conhecimento só seria completo se o objeto é concebido como “algo completo” sem a necessidade de outro elemento para que o seja ou que todo outro elemento possa ser-lhe negado. Assim não se verifica na relação fato e norma. Os dois elementos, aqui, não podem ser concebidos independentemente, mas, apenas, um em relação ao outro.[lxviii]

Simone Goyard-Fabre utiliza a expressão “interpenetração do fato e do direito” para caracterizar a constante conexão que revela a descrição da realidade jurídica. Afirma:

Du fait au droit, du droit aux faits, c’est donc un “incessant échange” un passage pérpetuel” qui s’opère”[lxix]. E mais adiante: “C’est donc impossible d’établir entre le droit et les faits une ligne de démarcation au tracé net, et il nous semble beaucoup plus exact de parler de “l’interpénétration du fait et du droit[lxx].

Esta ideia de relação recíproca entre o fato e a norma é característica do círculo hermenêutico proposto por Karl Larenz. Larenz distingue as noções de “situação de fato em bruto” e “situação de fato definitiva”. A “situação de fato em bruto” também ela não seria o fato bruto em si, mas já uma interpretação daquele que a relata e a percepciona. O intérprete parte da “situação de fato em bruto” para, dela, selecionar as circunstâncias fáticas juridicamente relevantes e atribuir-lhes significado (interpretá-las) a partir das normas possivelmente aplicáveis. A “situação de fato definitiva” é o resultado desta operação e irá constituir a premissa menor do silogismo da determinação da consequência jurídica.[lxxi]

Na premissa menor do silogismo da determinação da consequência jurídica (“S é um caso de P”), “S” não seria a situação de fato bruto (e note-se, mais uma vez, que também esta seria resultado de alguma interpretação), mas, sim, um enunciado fático construído pelo intérprete, a partir das possíveis proposições jurídicas aplicáveis no caso.[lxxii]

Da situação de fato em bruto, o julgador seleciona e interpreta (abstração no sentido de M. Bou Saber) as circunstâncias fáticas relevantes a partir das proposições jurídicas potencialmente aplicáveis. Ocorre que estas também serão escolhidas (mais uma vez, a ideia de abstração proposta por M. Bou Saber) e reconstruídas a partir da situação de fato em apreço. Portanto, a construção do enunciado fático (a partir da situação de fato em bruto) e a construção do enunciado normativo (a partir do texto) seriam operações que se interrelacionam em sua própria estrutura interna.

Esta é a ideia do círculo hermenêutico, do “ir e vir na perspectiva. Nas palavras de Karl Larenz:

O “ir e vir da perspectiva” entre a situação de facto e a proposição jurídica não deve conceber-se como se o observador mudasse apenas a direcção do seu olhar, mas trata-se antes de um processo de pensamento em cujo decurso a «situação de facto em bruto» será conformada enquanto situação de facto acabada (como enunciado) e o texto da norma (como que a norma em estado bruto), na norma suficientemente concretizada para a apreciação desta situação de facto. Este processo está de tal modo condicionado pela colocação da questão de direito, que encontra o seu termo com a resposta definitiva — em sentido afirmativo ou negativo — a esta questão.[lxxiii]

A concretização da norma e a apreensão (ou qualificação jurídica) dos fatos são, pois, duas operações concomitantes e sinalagmáticas. Vale dizer: entre elas há uma relação da causalidade recíproca, segundo M. Bou Saber.[lxxiv]

Na verdade, é mais. É uma relação de interdependência estrutural. A concretização da norma pressupõe a (re)construção da norma, a partir da situação fática. A qualificação jurídica do fato pressupõe a construção do enunciado fático (que figura na premissa menor do silogismo da determinação da consequência jurídica), a partir das normas juridicamente aplicáveis. Se não há norma (reconstruída), não há qualificação jurídica do fato. Se não há fato (selecionado), não se concretiza a norma.

Por isso, Simone Goyard-Fabre afirma que a qualificação jurídica dos fatos não é uma questão de vocabulário, nem tampouco uma operação superficial de atribuir às condutas humanas um vocábulo jurídico (não é uma operação de denominação).[lxxv] A qualificação do fato pelo direito não é um fenômeno linguístico, mas, sim, uma operação do fenômeno jurídico. A qualificação jurídica dos fatos é uma valoração dos fatos. É a sua interpretação conforme o direito positivo.[lxxvi]

Além de conceituar a qualificação jurídica como um fenômeno de “intelligibilisation des faits”, como já referido, a autora o caracteriza como “phénoméne d’idéation”, referindo-se à relação recíproca constante entre o fato e o Direito. Afirma que a união, na normatividade jurídica, do fato e do Direito apresenta-se mediante dois aspectos complementares e inseparáveis: o preenchimento do direito pelo fato e a indissociável apreensão do fato pelo direito.[lxxvii]

É nesta interpenetração do fato e da norma, por meio da relação recíproca entre a apreensão jurídica do fato e a concretização da norma, que se tem a formação do fato jurídico. O fato jurídico é o resultado das operações concomitantes e indissociáveis que são a incidência normativa (concretização normativa) e apreensão do fato. A juridicização do fato é a unidade das duas operações, que são duas e são uma. E esta é a ambiguidade da lógica jurídica. Qualificar um fato como jurídico não é, certamente, uma operação linguística, é um fenômeno da lógica jurídica.

Cuida-se de operações do espírito, que se verificam no mundo do pensamento. Pressupõem ambas valoração. A incidência e/ou a apreensão não podem ser automáticas ou “infalíveis”, já que a norma que irá incidir não existe previamente, assim como o fato bruto não é o suporte fático concreto do fato jurídico.

O processo do compreender, como se vê, é caracterizado pelo rompimento da dualidade sujeito/objeto, quer no que concerne aos textos normativos ou demais sinais de linguagem, quer no que concerne aos fatos.

Nesse contexto, ressalta-se o emergente paradigma científico, ao qual se refere Boaventura de Souza Santos, em que carece de sentido a dicotomia ciências naturais e ciências sociais, bem assim outras dicotomias. Neste novo paradigma, não se tem um conhecimento dualista, considerando, inclusive, a relação estrutural recíproca entre o que antes era tido em faces opostas. Por exemplo, o conceito de natureza depende daquele de cultura; não há natureza sem cultura nem cultura sem natureza. São dois; é um. Daí a noção de ambiguidade. No âmbito do Direito, por exemplo, é o que ocorre com a superada dicotomia interesse público/interesse privado. É o que ocorre com as noções de sujeito e objeto.[lxxviii]

O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não-dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa. Este relativo colapso das distinções dicotômicas repercute-se nas disciplinas científicas que sobre elas se fundaram.[lxxix]

Neste paradigma pós-moderno, o conhecimento constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica transdisciplinar. Nesse método transdisciplinar, não mais existe a dicotomia sujeito/objeto, tal como foram superadas as demais. Sujeito e objeto, tal como o fato e norma, relacionam-se reciprocamente em sua estrutura. Por isso, afirma o autor que o objeto é continuação do sujeito, e todo conhecimento científico seria autoconhecimento. O conhecimento científico não seria descoberto, mas, sim, criado, por meio de um ato criativo protagonizado pelo sujeito. Afirma o autor:

[…] podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real.[lxxx]

Jean Paul Sartre, já sob a ótica do método existencialista, é tido como um revolucionário justamente por tirar a pretensão de verdade da ciência. O método, no existencialismo, não estaria em busca da verdade, mas propõe a interação entre subjetivo e objetivo, que é construída.[lxxxi]

O referido autor refere-se ao indivíduo e aos objetos como significantes. Nesse sentido, na relação fato e norma, a linguagem está sempre presente.[lxxxii] Os fatos são significantes em dado jogo de linguagem. De outra parte, o Direito é linguagem. A norma é o significado reconstruído dos seus significantes (signos, como os textos normativos, ou sinais, como precedentes jurisprudenciais).

De outra parte, Jean Paul Sartre propõe a superação da visão clássica marxista da dialética para propor o método progressivo-regressivo, caracterizado pela ideia de ambiguidade, inclusive na interação construída entre objetivo e subjetivo.[lxxxiii] Esta ideia de ambiguidade é, como visto, também característica na relação fato e norma. Só há fato (para o Direito) quando há norma; só há norma quando há fato. São distintos, mas não o são.

Esta noção de ambiguidade também é característica na relação entre o ente e onada referida por Martin Heiddeger. Ao referir-se à angústia, o autor distingue-a do temor. Teme-se algo determinado. Tem-se angústia pelo indeterminado. A angústia manifesta o nada.[lxxxiv]

É na fuga para o nada, enquanto suspensos na angústia, que o ente, inclusive o ente cognoscente, se delineia, que ele “estar aí” (Dasein).

Suspendendo-se dentro do nada o ser-aí já sempre está além do ente em sua totali dade. Este estar além do ente designamos a transcendência. Se o ser-aí, nas raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e isto expressamos agora dizendo: se o ser- aí não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto, também não consigo mesmo. […]

O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser).[lxxxv]

Não há o nada sem o ente; não há o ente sem o nada. Aqui também relação estrutural recíproca. Aqui também há ambiguidade.

Em síntese, a estrutura lógica do silogismo dedutivo é preenchida pelo círculo do compreender, em que a atividade de pesquisa do magistrado certamente não será isenta de valoração. Não se trata de descoberta de uma verdade pré-existente acerca da incidência normativa e da irradiação da consequência jurídica. Cuida-se de atividade criativa. A objetividade do conhecimento judicial (do resultado da pesquisa) não está na pretensa neutralidade do julgador, hoje já tida como ideal impossível. O julgador não pode ser desgarrado da sua carga histórica, de suas pré-compreensões. A objetividade da atividade cognitiva do órgão jurisdicional está justamente na crítica efetiva que antecede o resultado da pesquisa. É o processo que legitima a decisão jurisdicional.

 

5 A CRÍTICA EFETIVA COMO MÉTODO QUE LEGITIMA A ATIVIDADE COGNITIVA JUDICIAL

Nesse contexto de identidade estrutural recíproca entre sujeito e objeto, não se pode pretender a neutralidade do cientista e do julgador para que se revele uma verdade pré-existente no ato de pesquisa científica ou judicial.

Afirma Karl Popper que “é um erro admitir que a objetividade de uma ciência dependa da objetividade do cientista. E é um erro acreditar que a atitude do cientista natural é mais objetiva do que a do cientista social”.[lxxxvi] Não se pode eliminar do sujeito os seus valores, científicos ou não científicos. Para Karl Popper, “é claramente impossível eliminar tais interesses extra-científicos e evitar sua influência no curso da pesquisa científica”[lxxxvii], notadamente considerando que a própria pretensão de isenção de valores é, em si, um valor.

[…] não podemos roubar o partidarismo de um cientista sem também roubá-lo de sua humanidade, e não podemos suprimir ou destruir seus juízos de valores sem des-truí-lo como ser humano e como cientista. Nossos motivos e até nossos ideais puramente científicos, inclusive o ideal de uma desinteressada busca da verdade, estão profundamente enraizados em valorações extra-científicas e, em parte, religiosas. Portanto, o cientista “objetivo” ou “isento de valores” é, dificilmente, o cientista ideal. Sem paixão não se consegue nada — certamente não em ciência pura. A frase “a paixão pela verdade” não é uma mera metáfora.

[…] a objetividade e a liberdade em relação a tais dependências, são valores em si mesmos. E, desde que, a liberdade de valores é, ela própria, um valor, a exigência incondicional de liberdade em relação a qualquer ligação a valores é paradoxal.[lxxxviii]

A objetividade do conhecimento científico, na visão do autor, não está na neutralidade do sujeito cognoscente, mas, sim, na crítica efetiva e permanente que caracteriza o método da pesquisa à qual está submetido o conhecimento, sempre provisório. O autor não nega o papel da lógica dedutiva na atividade do conhecimento; ao contrário, busca compatibilizá-la com a impossibilidade de neutralidade destacada. É nesse sentido que a função mais importante da lógica dedutiva seria o de um sistema de crítica.[lxxxix]

Para o autor, o método científico “consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica. É um desenvolvimento crítico consciente do método de ‘ensaio e erro’”[xc]. Não se trata apenas de crítica formal. A crítica há de ser efetiva; a solução experimental deve ser criticada para que seja refutada. Não se poderia criticá-la apenas para confirmá-la. Todo conhecimento seria, assim, provisório, já que submetido constantemente à crítica efetiva.

A objetividade da ciência não estaria, pois, na suposta liberdade do cientista individual com relação aos valores, mas, sim, no instrumento principal da crítica lógica (a contradição lógica). A objetividade estaria na crítica que torna possível a superação dos dogmas. O que torna o conhecimento legítimo (vale ressaltar que seria apenas uma conjectura) seria a crítica recíproca, o resultado da divisão hostil-amistosa entre os cientistas (de cooperação e competição) que o antecedeu.[xci]

De outra parte, Karl Popper elucida a ideia de explicação ou, mais precisamente, de explicação causal, como a solução tentada de um problema científico. Como visto, em seu pensamento, nenhum conhecimento seria definitivo, sendo decorrente de problemas aos quais são atribuídas soluções experimentais sujeitas à crítica. É a crítica recíproca que daria objetividade ao conhecimento.[xcii]

A explicação seria, assim, uma teoria, um sistema dedutivo, uma conjectura. O que se pretende explicar é o “explicandum”. O sistema dedutivo que é a explicação relaciona o “explicadum” (consequência na lógica dedutiva) a outros fatos, chamados condições iniciais. A explicação consiste em demonstrar que o “explicandum” decorre/deriva (relação de derivação lógica) da teoria reforçada pelas condições iniciais.[xciii]

Assim, logicamente, a explicação poderia ser estruturada por meio de uma inferência dedutiva entre as premissas (teoria e condições iniciais), tendo como conclusão o “explicandum”.[xciv]

O sistema dedutivo da explicação proposto por Karl Popper muito se aproxima do silogismo da determinação da consequência jurídica  referido por Karl Larenz, tendo como primeira premissa proposição jurídica e como segunda a verificação, por meio do círculo hermenêutico, de que o enunciado fático corresponde à hipótese normativa.

Assemelha-se, também neste contexto, à estrutura do fenômeno da irradiação da consequência jurídica na teoria de Pontes de Miranda. É nesse sentido também que Henri Motulski afirma que, como visto, a demonstração da existência de um direito só poderia ocorrer, no espírito, sob a forma do silogismo da determinação da consequência jurídica[xcv].

O fenômeno jurídico substancial é estruturado por meio da lógica dedutiva e daí a importância do método dedutivo na atividade cognitiva de pesquisa. Ocorre que, em sendo uma atividade também valorativa, esta estrutura tem como substância o círculo hermenêutico, em que fato e norma se relacionam estruturalmente para formar o fato jurídico e irradiar a consequência jurídica.

O fenômeno jurídico é certeza (conhecimento) quando compõe a lógica judicial e é estruturado por meio do sistema dedutivo da explicação proposto por Karl Popper. O produto da atividade cognitiva (no que concerne à questão principal) do órgão jurisdicional de certificação de um direito é estruturado por meio de uma conclusão (o explicandum) a partir da constatação da existência de seus pressupostos fáticos.

A objetividade e a legitimidade deste conhecimento não estão na já superada pretensão de neutralidade do magistrado, mas, sim, na crítica recíproca que lhe antecede, vale dizer, no diálogo processual, do qual participam partes e órgão jurisdicional. É o contraditório que legitima a decisão judicial. E não se trata apenas de um contraditório formal, mas também um contraditório substancial, como efetivo poder de influência. Fazendo alusão aos ensinamentos de Karl Popper, não se pode criticar buscando confirmar a solução criticada, mas, sim, buscando efetivamente refutá-la.

Vale frisar que o processo é o método, o meio, de legitimar uma decisão (o que seria, na concepção de Karl Popper, a solução) por meio da participação em contraditório daqueles que podem ser por elas influenciados. É o processo (em sentido amplo, não apenas o processo judicial) que legitima a decisão.

No diálogo processual, as manifestações das partes também são estruturadas por meio da inferência dedutiva da explicação. Cuida-se do fenômeno jurídico substancial como causa de pedir (em afirmação) e como objeto do contraditório. Aquele que postula afirma ser titular de uma situação jurídica ativa (direito subjetivo) – que seria o “explicandum” – decorrente dos pressupostos fáticos afirmados (seriam as condições iniciais). A causa de pedir é, assim, composta pela afirmação do direito (causa de pedir próxima) e do fato jurídico (causa de pedir remota).

A tarefa da parte demandada é, então, tentar desconstruir o sistema dedutivo, a teoria, a explicação afirmada pela parte autora. Deve evidenciar que a solução proposta pelo autor não subsiste à crítica que lhe é feita. O exercício do contraditório, evidencia-se, mais uma vez, é o exercício da crítica visando refutar a solução proposta.

Por fim, deve-se ressaltar que, no que concerne às lições de Karl Popper, a ideia de conhecimento permanentemente provisório não se aplica ao produto da atividade de pesquisa do magistrado, em face do instituto da preclusão, inclusive da coisa julgada material, em decorrência do princípio da segurança jurídica e da relação do processo com o formalismo.

 

6 CONCLUSÃO

São as conclusões deste trabalho:

  1. A cognição é a pesquisa da solução aos problemas submetidos à apreciação do magistrado. Estes problemas são as questões, incidentais e principais.
  2. A pesquisa do magistrado ocorre, no espírito, sob a forma de um silogismo, o silogismo da determinação da consequência jurídica. O método dedutivo é também utilizado na pesquisa judicial, mas ele é compatibilizado com a ideia de relação estrutural entre sujeito e objeto, entre fato e norma.
  3. A estrutura lógica do silogismo dedutivo é preenchida pelo círculo do compreender, em que a atividade de pesquisa do magistrado certamente não será isenta de valoração. Não se trata de descoberta de uma verdade pré-existente acerca da incidência normativa e da irradiação da consequência jurídica. Cuida-se de atividade criativa.
  4. A objetividade e a legitimidade do conhecimento judicial não estão na já superada pretensão de neutralidade do magistrado, mas, sim, na crítica recíproca e efetiva que lhe antecede, vale dizer, no diálogo processual, do qual participam partes e órgão jurisdicional. É o contraditório que legitima a decisão judicial.

 

7 REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BOU SABER, Maan. Le moyen: Essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel. Thése de Doctorat apresentée à l’Université de Paris II – Assas, 2009.

DESCARTES, René. Discurso do método e regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2001.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria Geral do Processo e processo do conhecimento. Salvador: Juspodivm, 2009.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

GOYARD-FABRE, Simone. Essai de critique phénoménologique du droit. Librarie Klincksieck: Paris, 1972.

HEIDDEGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Sobre a essência da verdade. O que é metafísica?, s/d..

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983 Tomo I.

______. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, p. 271 Tomo V.

MOTULSKI, Henri. Principes d’une réalisation du droit privé: la théorie des éléments générateurs des droits subjetctifs. Paris: Dalloz, 2002.

POPPER, KARL. A lógica das ciências sociais. MARTINS, Tradução de Estevão Resende. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estud. av. [online]. 1988, v. 2, n. 2, pp. 46-71 ISSN 0103-4014 doi: 10.1590/S0103-40141988000200007.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. A imaginação. Qestão de mé́todo. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. GUEDES, Rita Correina, FORTE, Luiz Roberto Salinas e JÚNIOR, Bento Prado (Tradução de). 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. rev.atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.


[i] Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Jus Podivm.
Mestranda em Direito Público do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Professora da Faculdade Baiana de Direito.

[ii] GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 17.

[iii] GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa, cit., p. 23.

[iv] POPPER, KARL. A lógica das ciências sociais. MARTINS, Estevão Resende (Tradução de). 3 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 14.

[v] GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa, cit., p. 31.

[vi] POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais, cit., p. 21-22

[vii] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 282/283

[viii] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 288.

[ix] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 286-287

[x] POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais, cit., p. 16.

[xi] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 41

[xii] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria Geral do Processo e processo do conhecimento. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009, v. 1, p. 293-294.

[xiii] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria Geral do Processo e processo do conhecimento, cit., p. 294.

[xiv] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria Geral do Processo e processo do conhecimento, cit., p. 294.

[xv] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria Geral do Processo e processo do conhecimento. Cit, p. 294.

[xvi] DESCARTES, René. Discurso do método e regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 86.

[xvii] MOTULSKI, Henri. Principes d’une réalisation du droit privé: la théorie des éléments générateurs des droits subjetctifs. Reed. Dalloz: Paris, 2002,. p. 45.

[xviii] Ibidem. p. 45

[xix] Ibidem. p. 45.

[xx] Ibidem.  p. 46.

[xxi] Ibidem.  p. 47.

[xxii] Ibidem.  p. 50.

[xxiii] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, cit., p. 42.

[xxiv] DESCARTES, René. Discurso do método e regras para a direção do espírito, cit., p. 31.

[xxv] Ibidem., p. 31-32.

[xxvi] Ibidem., p. 33

[xxvii] Ibidem., p. 73.

[xxviii] Ibidem., p. 75

[xxix] Ibidem., p. 80.

[xxx] Ibidem, p. 81

[xxxi] Ibidem, p. 83

[xxxii] Ibidem, p. 83

[xxxiii] Ibidem, 86

[xxxiv] Ibidem, p. 90.

[xxxv] Ibidem, p. 177

[xxxvi] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro Moura. Martins Fontes: São Paulo, 2006, p. 53.

[xxxvii] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 1983, t. 1, p. 06

[xxxviii] Nas lições de Pontes de Miranda: “Não há direito subjetivo sem regra jurídica (direito objetivo), que incida sobre suporte fático tido por ela mesma como suficiente. Portanto, é erro dizer-se que os direitos subjetivos existiram antes do direito objetivo; e ainda o é afirmar-se que foram simultâneos. A regra jurídica é prius, ainda que tenha nascido no momento de se formar o primeiro direito subjetivo.” (MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, t. 5, p. 271.). Em idêntico sentido, Lourival Vilanova: “inexiste direito subjetivo sem norma incidente sobre fato do homem”. (VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ed. rev.atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000, p. 219).

[xxxix] A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros “pontos” do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É, portanto, infalível”. (MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 1983, t. 1, p. 62.)

[xl] MIRANDA, PONTES. Tratado de direito privado, t. 1, cit., p. 63

[xli] SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estud. av. [online]. 1988, v. 2, n. 2, pp. 46-71 ISSN 0103-4014 doi: 10.1590/S0103-40141988000200007.

[xlii] MOTULSKY, Henri. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé. La théorie des éléments générateurs des droits subjectifs. Reed. Dalloz: Paris, 2002, p. 16.

[xliii] Ibidem, p. 17.

[xliv] Ibidem, p. 18

[xlv] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Fundação Calouste. Gulbenkian: Lisboa, p. 351

[xlvi] Ibidem, p. 352.

[xlvii] Ibidem, p. 358.

[xlviii] MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 20.

[xlix] MOTULSKY, Henri. Op. Cit., p. 19.

[l] Ibidem, p. 19.

[li] Ibidem, p. 20.

[lii] GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartien Latin, 2005, p. 23.

[liii] Ibidem, p. 26.

[liv] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 30.

[lv] MERLEAU-PONTY, Maurice. Op. Cit., p. 58

[lvi] Ibidem, p. 59.

[lvii] Ibidem, p. 59.

[lviii] HEIDDEGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Sobre a essência da verdade. O que é metafísica?, s/d., p. 331

[lix] LARENZ, Karl. Op. Cit., p. 389.

[lx] BOU SABER, Maan. Le moyen : Essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel. Thése de Doctorat apresentée à l’Université de Paris II – Assas, 2009, p. 55.

[lxi] Ibidem, p. 52 e seq.

[lxii] Ibidem, p. 52.

[lxiii] Ibidem, p. 53

[lxiv] Ibidem, cit., p. 54.

[lxv] Ibidem, p. 54.

[lxvi] Op. Cit.,p. 55.

[lxvii] Op. Cit.,p. 55.

[lxviii] Op. Cit.,p. 55.

[lxix] GOYARD-FABRE, Simone. Essai de critique phénoménologique du droit. Librarie Klincksieck: Paris, 1972, p. 56.

[lxx] Ibidem, p. 56.

[lxxi] LARENZ, Karl. Op. Cit., p. 391 e seq.

[lxxii] Ibidem, p. 391 e seq.

[lxxiii] Ibidem, p. 395.

[lxxiv] BOU SABER, Maan. Op. Cit., p. 63

[lxxv] GOYARD-FABRE, Simone. Essai de critique phénoménologique du droit, cit., p. 68.

[lxxvi] Ibidem, p. 69.

[lxxvii] Ibidem, p. 70.

[lxxviii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna, cit., passim

[lxxix] Ibidem, passim

[lxxx] Ibidem.

[lxxxi] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. A imaginação. Questão de mé́todo. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. GUEDES, Rita Correina, FORTE, Luiz Roberto Salinas e JÚNIOR, Bento Prado (Tradução de). 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, passim.

[lxxxii] Ibidem, passim.

[lxxxiii] Ibidem, passim.

[lxxxiv] HEIDDEGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Sobre a essência da verdade. O que é metafísica?, p. 236.

[lxxxv] Ibidem, p. 239.

[lxxxvi] POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais, cit., p. 22.

[lxxxvii] Ibidem, p. 25.

[lxxxviii] Ibidem, p. 25.

[lxxxix] Ibidem, p. 26

[xc] Ibidem,  p. 21.

[xci] Ibidem, p. 26.

[xcii] Ibidem, p. 28/29.

[xciii] Ibidem, p. 28/29.

[xciv] Ibidem, p. 28/29.

[xcv] MOTULSKI, Henri. Principes d’une réalisation du droit privé: la théorie des éléments générateurs des droits subjetctifs, cit., p. 47.

Emanuel Lins Freire Vasconcellos[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A pluralidade conceitual e metodológica: contribuição do pensamento de Boaventura de Sousa Santos.  3 A Educação no Marco da OMC e do GATS. 3.1 A concepção da educação enquanto direito fundamental. 3.2 A concepção de educação da OMC. 3.2.1 O GATS e a Educação: as “barreiras” ao livre comércio. 4 Conclusões. 5 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo apresentar um estudo acerca das concepções de educação, de forma a subsidiar uma análise pautada numa perspectiva interdisciplinar, que toma em consideração a pluralidade de conceitos apresentados sobre a educação.

Tais conceitos, por sua vez, são abordados a partir de uma pluralidade metodológica, pautada tanto na compreensão jurídica da educação como direito (fundamental ou humano), como também no entendimento da educação como serviço, posição aqui representada pelas opiniões defendidas pela Organização Mundial do Comércio.

Para tanto, são utilizados elementos apresentados por Boaventura de Sousa Santos, notadamente em sua obra “Um discurso sobre as ciências”[ii], de modo a formar um estrato das possibilidades interpretativas do conceito de educação.

 

2 A PLURALIDADE CONCEITUAL E METODOLÓGICA: CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Boaventura de Sousa Santos[iii], em sua obra “Um discurso sobre as ciências”[iv], apresenta uma explanação acerca da crise do paradigma científico dominante, ao tempo que especula acerca da configuração de um paradigma científico emergente, pautado sobretudo na relativização da distinção entre ciências naturais e sociais, nas idéias de conhecimento local-total e de conhecimento como autoconhecimento, propondo, ao final, o paradigma do conhecimento prudente para uma vida decente, pugnando que todo conhecimento visa constituir-se em senso comum.

No presente trabalho, interessa-nos, particularmente, as idéias voltadas à pluralidade metodológica, buscando-se uma síntese que não representa uma “ciência unificada nem sequer uma teoria geral”[v], mas sim, um “conjunto de galerias temáticas onde convergem linhas de água que até agora concebemos como objectos teóricos estanques”[vi].

Neste sentido, cumpre destacar que a pluralidade metodológica se apresentará através de diferentes abordagens acerca da educação, que é concebida tanto como direito, quanto como serviço.

Para tanto, buscamos apresentar um estrato da concepção de educação defendida pela Organização Mundial do Comércio (OMC), reconhecendo, desta forma, a influência que este organismo comercial multilateral exerce na área educacional.

De outra sorte, apresenta-se brevemente a concepção jurídica de educação como direito (fundamental ou humano), bem como a idéia de prestação positiva do Estado.

Tal distinção conceitual acaba por ocasionar uma diferenciação na forma de conceber juridicamente, v.g., o acesso à educação, posto que, enquanto serviço passível de comercialização, o acesso à educação se vincula a uma lógica econômica relacionada à capacidade de aquisição/contratação de serviços especializados pelo indivíduo. Por outro lado, de modo relativamente distinto, a compreensão da educação enquanto direito (fundamental ou humano) guarda relação com uma atividade positiva do Estado no sentido de assegurar ao cidadão o gozo do direito constitucional à educação.

Cumpre ressaltar, contudo, que o objetivo do presente trabalho está voltado às possibilidades interpretativas do conceito de educação, e não à sua forma de aplicação jurídica, não obstante a busca em subsidiar um estudo neste sentido.

Neste particular, de essencial relevância é a observação, trazida pelo autor português, de que a “reflexão epistemológica versa mais sobre o conteúdo do conhecimento científico do que sobre a sua forma”[vii]. Assim, para a definição da natureza jurídica da educação (enquanto serviço ou enquanto direito fundamental), essencial se faz a reflexão acerca do seu conteúdo, a partir de conhecimentos oriundos de diferentes abordagens e diversos campos de conhecimento.

Busca-se, deste modo, uma racionalidade mais plural[viii], que guarda certa relação com a idéia de paradigma emergente defendida por Boaventura, paradigma este que, segundo o autor, tende a ser um conhecimento não dualista, que se funda na superação de distinções familiares e óbvias[ix].

Reconhecemos, portanto, que, inclusive no tocante à temática educacional, o pensamento excessivamente especializado, sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, ocasionando uma segregação da organização do saber, que é orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor[x], tal como afirma Boaventura. Neste sentido, assevera o autor português:

É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são sobretudo visíveis no domínio das ciências aplicadas.

[…] o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida. [xi]

De outra sorte, importa destacar que todo conhecimento é auto-conhecimento, sendo que as nossas trajetórias de vida pessoais e coletivas são intercambiáveis, constituindo-se como móvel da investigação científica, como bem destaca o autor português:

Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajetórias de vida pessoais e coletivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não-ditos dos nossos trabalhos científicos.[xii]

No que toca à parcelização do conhecimento decorrente da excessiva especialização cognitiva, Boaventura destaca:

No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal de que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm. Mas sendo total, é também local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adotados por comunidades interpretativas concretas como projetos de vida.locais, sejam eles reconstituir a história de um lugar, manter um espaço verde, construir um computador adequado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doença, etc., etc. A fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces.[xiii]

Desta forma, dialogando com o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, reconhece-se que a fragmentação pós-moderna da ciência não é disciplinar, e sim temática[xiv], bem como se reconhece que o pensamento pós-moderno se assenta sobre as condições de possibilidade da ação humana, projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local, conhecimento este que é, como afirma o autor português, relativamente imetódico, constituindo-se a partir de uma pluralidade metodológica.

Por sua vez, para Boaventura, a busca por uma pluralidade metodológica é um conhecimento relativamente imetódico, posto que cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada[xv]. Ademais, um lado da pluralidade de métodos está ligada à tolerância discursiva, que, por sua vez, refere-se a uma composição transdisciplinar e individualizada, que mescla estilos e métodos cognitivos, sugerindo um movimento no sentido da maior personalização do trabalho científico[xvi].

Ademais, segundo o autor português, a pluralidade de métodos só é possível através de uma transgressão metodológica. Conforme Boaventura:

Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural.

[…]

A transgressão metodológica repercute-se nos estilos e gêneros literários que presidem à escrita científica. A ciência pós-moderna não segue um estilo unidimensional, facilmente identificável; o seu estilo é uma configuração de estilos construída segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista. A tolerância discursiva é o outro lado da pluralidade metodológica[xvii].

Estes são, portanto, os elementos metodológicos que identificamos como fundamentais para a construção do presente artigo, haja vista a impossibilidade de, aqui, esgotar a riqueza das discussões trazidas por Boaventura no seu “discurso sobre as ciências”. Desta forma, os conceitos, observações e elementos metodológicos esposados acima serão aplicados no tocante à discussão acerca da educação, de forma a subsidiar uma análise do seu conteúdo e da sua natureza jurídica.

 

3 A EDUCAÇÃO NO MARCO DA OMC E DO GATS

Inicialmente, revela-se importante apresentar um breve panorama do funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC), da sua organização e do seu histórico, de modo a possibilitar uma melhor compreensão da sua relevância no cenário das políticas comerciais internacionais, bem como a influência exercida sobre as políticas educacionais.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em 1995 Até então, as regras internacionais de comércio eram discutidas dentro do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, em inglês), assinado em 1947, após a Segunda Guerra Mundial. Um primeiro texto, que previa a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC), foi recusado pelos Estados Unidos, que apenas aceitaram assinar o GATT[xviii]. No início, o GATT incluía 23 países, mas, ao cabo de oito rodadas de negociação até 1994 – quando foi criada a OMC –, 125 países eram membros. Em 2008, 151 países participavam da OMC e os países não membros se situavam na África do Norte, Oriente Médio, Rússia e Europa do Leste[xix].

Na OMC há vários acordos[xx], dentre as quais o Acordo Geral sobre Comércio em Serviços[xxi] (conhecida pela sigla em inglês “GATS” – General Agreement on Trade in Services), que representa a primeira tentativa de elaboração de regras internacionais para a liberalização do comércio de serviços[xxii]. Sua importância se dá porque, segundo a OMC, nas últimas décadas houve um aumento dos fluxos no comércio de serviços, que chegaram a representar 25% do valor do comércio mundial de bens[xxiii].

O GATS divide os serviços em doze setores: Comércio; Comunicação; Construção e Engenharia; Distribuição; Educação; Meio Ambiente; Serviços Financeiros; Saúde; Turismo e Viagens; Lazer, Cultura e Esporte; Transporte; e “Outros”. A divisão aplica-se a todas as medidas relativas ao comércio de serviços, ou seja, todas as leis, regulamentações e práticas nacionais, regionais ou locais[xxiv]. Além dessa divisão por setores comerciais, o GATS estabelece e classifica a natureza das atividades comerciais, chamadas de modos de fornecimento, segundo a tabela abaixo:

Tabela 1 – Modos de fornecimento das atividades comerciais no GATS

Modo O que é Natureza

1

Comércio transfronteiriço O serviço cruza as fronteiras, saindo de um país para ser consumido em outro. No setor da educação, entram nessa categoria qualquer tipo de curso à distância ou por internet, qualquer prova material de educação que possa cruzar as fronteiras.

2

Consumo no exterior O consumidor cruza as fronteiras. Representa a forma mais comum de comércio na educação, por meio da educação no exterior.

3

Presença comercial O fornecedor cruza as fronteiras estabelecendo-se e investindo em um país estrangeiro. No setor da educação, manifesta-se quando universidades criam cursos ou instituições em países estrangeiros.

4

Movimento temporário de pessoas físicas O fornecedor cruza a fronteira na forma de um deslocamento de pessoas físicas. Na educação, remete ao deslocamento de professores e outros profissionais da área.
Fonte: SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 91.

As negociações do GATS seguem um quadro jurídico comum a todas as negociações da OMC, em particular a cláusula da Nação Mais Favorecida e o Trato Nacional, como também algumas disciplinas particulares adaptadas ao setor de serviços, como a mudança das regras de aduana para regras de acesso ao mercado, uma vez que o setor de serviços não pode comportar regras de aduana, já que não é possível impor taxas aduaneiras a mercadorias que não são físicas[xxv].

Ademais, além das regras que se aplicam a todos os serviços, há regras setoriais, que estão expostas nos “anexos setoriais” do GATS. Esse sistema de anexos setoriais cria uma certa flexibilidade nas negociações de serviços, pois autoriza a existência de negociações específicas que se atrelam ao acordo geral do GATS[xxvi].

O texto do GATS possui sete partes, três delas essenciais para a compreensão das negociações: o segundo capítulo expõe as disciplinas e obrigações gerais, o terceiro capítulo explicita os compromissos específicos em termos de acesso ao mercado e trato nacional e, por fim, os anexos especificam as exceções de cada setor. Em princípio, o GATS apenas fornece um parâmetro de negociação e cada país é livre para propor o grau de liberalização que aceita dentro de cada setor, no que diz respeito ao acesso ao mercado e ao trato nacional.

As negociações do GATS funcionam com um sistema de pedidos e ofertas, no qual cada membro da OMC pode pedir a um ou mais membros que se comprometam a liberalizar o comércio em determinados serviços. Cada país que recebe os pedidos tem um prazo para fazer uma oferta inicial, que, após comentada e criticada pelos outros membros, poderá ser “melhorada”.

No entanto, apenas os setores ou sub-setores ofertados pelos países estão sujeitos às regras do GATS e, dentro de cada setor, apenas os modos que o país decidiu liberalizar. Por exemplo, é possível liberalizar a educação somente nos Modos 1, 2 e 3, sem liberalizar o Modo 4, posição seguida por países como Austrália e Nova Zelândia. É também possível se engajar em termos de acesso ao mercado sem, no entanto, garantir trato nacional.

Essa flexibilidade de negociação vem sendo criticada pelos países favoráveis a uma maior liberalização dos serviços, visando acelerar as negociações, além de considerarem que as ofertas são poucas e de baixa qualidade. Estes países apresentam como proposta a criação de benchmarks, que são parâmetros de negociação que obrigariam o conjunto de países da OMC a se enquadrar num nível mínimo de liberalização, parâmetros estes que podem ser quantitativos (número de setores ofertados, por exemplo) ou qualitativos (como a ausência de limitações e exceções em cada modo)[xxvii].

Essa questão não foi decidida, e é alvo de incisivas críticas e recusa por parte de muitos países, que consideram ser uma modificação injusta dos termos de negociação e um aumento da pressão sobre os países que não querem liberalizar alguns de seus setores[xxviii].

Segundo SILVA, GONZALEZ e BRUGIER, a Oxfam Internacional afirma que “os países em desenvolvimento encontram uma pressão crescente para participar de negociações plurilaterais” e também se insiste que esses países

[…] estabeleçam novas ‘referências qualitativas’, tais como níveis maiores de participação estrangeira, desenhadas para impulsionar a liberalização de novos setores de serviços, seja ou não benéfico para seu próprio desenvolvimento[xxix].

É neste contexto de pressão para que os países em desenvolvimento participem das negociações internacionais e abram setores como a educação para o comércio, que se insere a concepção da OMC sobre educação, defendendo a educação não como direito, mas como um serviço não-exclusivo do Estado, e, portanto, comercializável.

 

3.1 A concepção da educação enquanto direito fundamental

Segundo Sérgio Haddad, uma das grandes questões que surge nos debates sobre GATS e educação é a própria concepção de educação. Nas negociações do GATS, a educação, assim como a saúde ou os transportes, é reduzida a um mero “serviço”, perdendo sua dimensão de direito humano. Para o referido autor, assumir a educação como direito humano significa afirmá-la como uma necessidade intrínseca ao ser humano e como um direito universal (para todos e com igualdade), indivisível e interdependente com relação aos outros direitos humanos destinados a garantir a dignidade para todas as pessoas, cabendo ao Estado a responsabilidade pela efetivação deste direito[xxx].

A Constituição Federal brasileira de 1988 estabeleceu a educação como um direito de todos e dever do Estado, positivando-a como tal no art. 205 do diploma constitucional.

Para alguns doutrinadores constitucionalistas, a educação está inclusa entre os direitos fundamentais. Tais direitos, segundo Canotilho, cumprem

[…] a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)[xxxi].

O Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de classificar os direitos fundamentais em três categorias:

[…] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam os princípios da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante do processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade[xxxii].

Em relação aos direitos fundamentais, Luís Roberto Barroso[xxxiii] afirma que:

Embora existam dissensões doutrinárias, fulcradas, sobretudo, em sutilezas semânticas, e haja discrepância na linguagem do Direito Constitucional positivo, é possível agrupar os direitos fundamentais em quatro grandes categorias, que os repartem em: direitos políticos, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos

[…] Os direitos econômicos, sociais e culturais, identificados, abreviadamente, como direitos sociais, são de formação mais recente, remontando à Constituição mexicana de 1917, e à de Weimar, de 1919. Sua consagração marca a superação de uma perspectiva estritamente liberal, em que se passa a considerar o homem para além de sua condição individual. Com eles surgem para o Estado certos deveres de prestações positivas, visando à melhoria das condições de vida e à promoção da igualdade material. A intervenção estatal destina-se a neutralizar as distorções econômicas geradas na sociedade, assegurando direitos afetos à segurança social, ao trabalho, […] à educação, […], dentre outros. Enquanto os direitos individuais funcionam como um escudo protetor em face do Estado, os direitos sociais operam como “barreiras defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social. Tese apresentada à IX Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Florianópolis, 1982.)”.

Sobre a temática, afirma José Afonso da Silva:

Os Direitos Fundamentais Sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais. São os Direitos fundamentais do homem-social dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência aos interesses coletivos ante os interesses individuais[xxxiv].

A educação se caracteriza, deste modo, como direito social, pressupondo uma prestação positiva do Estado para assegurar ao cidadão o seu gozo, protegendo o indivíduo de ofensivas econômicas de outros indivíduos. Nesse sentido, a educação, enquanto direito social, é norma imperativa, que não pode ser violada por vontade dos indivíduos. Assim, ressalta Luís Roberto Barroso que

A Constituição de 1988 reiterou ser a educação direito de todos e dever do Estado (art. 205) […]. Também aqui não parece haver dúvida quanto à imperatividade da norma e a exigibilidade do bem jurídico tutelado […][xxxv].

No entanto, a imperatividade e a exigibilidade dos direitos sociais têm sido mitigadas em meio às normas constitucionais programáticas, como destaca Luís Roberto Barroso:

Não sem surpresa, os direitos sociais são os que têm percorrido trajetória mais ingrata. Sob o aspecto estritamente jurídico, uma das dificuldades que enfrentam é que, frequentemente, vêm eles encambulhados com as normas programáticas, sem que se possa prontamente discriminar as hipóteses em que existem prestações positivas exigíveis[xxxvi].

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, reafirma a definição da educação como direito de todos e dever do Estado, listando de forma específica quais são os deveres do Estado em relação à educação. Da mesma forma, diversos acordos internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e várias outras constituições nacionais fazem referência ao direito à educação como um direito fundamental de cada cidadão[xxxvii].

Esta concepção de educação como direito humano coloca aos poderes públicos quatro tipos de obrigações:

1) disponibilidade, ou seja, educação gratuita à disposição de todos;

2) acessibilidade, que é a garantia de acesso à educação pública;

3) aceitabilidade, que diz respeito á qualidade da educação;

4) adaptabilidade, ou seja, correspondência entre a educação e a realidade imediata das pessoas[xxxviii].

Quanto a estes aspectos, especialmente em relação à disponibilidade e à acessibilidade, Sérgio Haddad frisa que “a privatização de alguns setores impossibilita o acesso dos mais pobres, em particular no ensino pré-escolar e no Ensino Superior”[xxxix].

Ademais, o direito à educação é também fundamental para o acesso a outros direitos, como o direito ao trabalho, o direito de obter comida adequada, um teto ou cuidados médicos, o direito de participar ativamente da vida política, ou de se beneficiar do progresso da ciência e da tecnologia, como ressaltou, inclusive, o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura[xl]. O funcionamento da democracia, neste sentido, guarda profunda relação com a educação.

 

3.2 A Concepção de Educação da OMC

No âmbito da OMC, a educação está compreendida enquanto serviço passível de comercialização, o que destoa, em boa medida, da concepção acima apresentada de educação enquanto direito, na medida em que o acesso à mesma fica sujeito à capacidade de aquisição, lógica distinta da prestação de direitos pelo Estado.

Assim, para a OMC, os serviços são considerados uma mercadoria que deve obedecer ao critério da máxima liberalização e abertura ao capital estrangeiro, de forma a maximizar os lucros das empresas que investem nesses setores, particularmente as transnacionais[xli].

Portanto, a concepção da educação como um direito conflita com aquela que apresenta a educação como um serviço e defende a idéia de que as necessidades básicas dos cidadãos seriam supridas de forma mais eficiente pelas instituições privadas, em razão dos mecanismos de mercado. O setor privado incentivaria a competição e diminuiria a burocracia e a inércia supostamente inerentes ao sistema público.

Entender a educação como serviço comercializável, a ser oferecido por um setor privado mais ágil, menos burocrático e mais competitivo, reduz o estudante cidadão a cliente, resultando em profundas consequências na qualidade educacional, que se reflete, por exemplo, no crescente e visível investimento em marketing educacional, que invade TV´s, outdoors, jornais, rádios e cria uma profusão de eventos sobre a temática[xlii]. Esta concepção comercial da educação pode ser vista de maneira bastante emblemática, por exemplo, na declaração do consultor em marketing educacional do grupo Objetivo/UNIP, Ryon Braga, que, durante o 9º Seminário de Marketing Escolar, realizado em 2003 em São Paulo, atribuiu o sucesso do grupo à sua postura comercial[xliii]:

[…] aqueles que entraram na educação com uma visão mais empresarial e profissional desde o início, como o caso do Di Gênio [um dos proprietários do grupo], obtiveram resultados melhores do que aqueles que entraram com uma visão muito acadêmica, pouco profissional.

O conceito de qualidade que sustenta a concepção de educação como serviço é o de “qualidade total”, com foco na eficiência. Os últimos anos viram a emergência da avaliação dos professores e alunos por critérios de produtividade, oferecendo, inclusive, bônus e prêmios aos considerados mais produtivos. Além disto, a educação é fator fundamental de soberania nacional e autonomia dos Estados para definirem a política educacional mais adequada, razão pela qual a abordagem da educação como serviço tem impacto também nesta discussão. A capacidade do setor público de elaborar políticas públicas de educação é, portanto, inseparável da liberdade que cada país tem de elaborar um projeto de desenvolvimento humano, social e econômico, ou seja, de soberania nacional[xliv].

 

3.2.1 O GATS e a Educação: as “barreiras” ao livre comércio.

O texto do GATS prevê a exclusão de alguns serviços públicos da negociação, com a condição que os mesmos sejam prestados exclusivamente pelo Estado, como polícia, bombeiros, seguro social obrigatório etc. A educação não poderia estar incluída nessa categoria já que em praticamente todos os sistemas educativos do mundo coexistem escolas publicas e privadas[xlv].

A OMC, de acordo com sua lista classificatória de serviços[xlvi], divide a educação em cinco categorias, todas incluídas na negociação:

Tabela 2 – classificação dos serviços educacionais de acordo com a OMC

Categoria

Natureza da atividade

Educação primária Corresponde, no Brasil, à pré-escola e ao primeiro ciclo do ensino fundamental; não inclui, no entanto, creches e alfabetização de adultos.
Educação secundária Segundo ciclo do ensino fundamental, ensino médio, ensino técnico e vocacional, e serviços de tipo educacional para estudantes com deficiência.
Educação superior Serviços educacionais providos por universidades e escolas profissionalizantes especializadas e ensino técnico e vocacional de nível pós-secundário.
Educação de adultos Serviços educacionais para jovens e adultos, não ministrados em universidades e escolas normais, incluindo programas de educação geral e vocacional, programas de alfabetização etc.
Outros setores Qualquer serviço educacional não mencionado, com exceção de lazer.
Fonte: OMC – Organização Mundial do Comércio. Serviços Educacionais. Nota documental da Secretaria. Conselho de Comércio de Serviços, S/C/W/49, 23 de setembro de 1998, p. 15, 25 e 26[xlvii].

Segundo a OMC[xlviii], há barreiras que limitam o livre comércio de serviços educacionais, conforme a tabela abaixo, distribuída de acordo com o modo de fornecimento:

Tabela 3 – Barreiras ao livre-comércio da educação

MODO

O QUE É

EXEMPLOS DE BARREIRAS

1

Comércio transfronteiriço

– restrição à importação de materiais escolares;

– limitação do uso de satélites nacionais para transmissão de atividades educacionais às empresas nacionais ou estatais;

– testes de necessidade econômica para a implantação de empresas estrangeiras ou multinacionais.

2

Consumo no exterior

– limites à mobilidade dos estudantes;

– problemas com visto;

– dificuldade para obter equivalência de diploma;

– limite à quantidade de dinheiro com que se pode entrar no país;

– desigualdade de acesso aos recursos dentro do país de estudos.

3

Presença comercial

– dificuldade para obter o direito de fornecer diplomas ou certificados;

– limites ao investimento direto estrangeiro (incluindo as que limitam o tamanho das entidades estrangeiras);

– exigência que a instituição de ensino pertença a pessoa ou empresa nacional;

– subvenções governamentais ou qualquer benefício a nacionais;

– restrição ao número de fornecedores ou à oferta de determinado tipo de serviço, de acordo com o que o governo avalia que seja necessário para o país;

– restrição ao recrutamento de professores estrangeiros.

4

Movimento temporário de pessoas físicas

– monopólio estatal;

– diferença no processo de aprovação de provedores de educação nacionais ou estrangeiros;

-dificuldade para reconhecer credenciais de educação estrangeiras;

– necessidade de vistos para estudar, ensinar ou estabelecer uma empresa em outro país;

– problemas com a importação por provedores estrangeiros de educadores estrangeiros.

Fonte: OMC – Organização Mundial do Comércio. Serviços Educacionais. Nota documental da Secretaria. Conselho de Comércio de Serviços, S/C/W/49, 23 de setembro de 1998, p. 08-09.

 

Segundo SILVA, GONZALEZ e BRUGIER[xlix], vários trabalhos mostram que a eliminação das barreiras ao livre comércio identificadas acima provocaria uma falência dos sistemas públicos de ensino. A concorrência que surgiria entre os provedores de educação estrangeiros (que teriam pleno acesso ao mercado nacional) e o sistema público poderia criar uma pressão para deixar o setor público mais “produtivo”, menos oneroso, colocando em risco, portanto, a natureza pública do ensino. Além disso, a intervenção do governo no suposto “mercado educacional” seria identificada como barreira à criação de um mercado privado, já que alteraria a livre competição.

Dessa forma, segundo as referidas autoras, a capacidade de regulação e fiscalização do Estado na área educacional, bem como a sua liberdade de decidir qual a melhor política para a sua realidade, diminuiria consideravelmente. Para se visualizar este quadro, apresentam, como exemplo, o quadro as seguintes situações:

– o fornecimento transfronteiriço (Modo 1) totalmente liberado, por exemplo, traz à tona a questão do controle dos conteúdos dos livros didáticos;

– quanto ao consumo no exterior (Modo 2), a concessão de subsídios a estudantes nacionais seria considerada uma barreira ao livre comércio caso o benefício não fosse estendido aos estudantes estrangeiros. Isso poderia tornar inviável uma política de ajuda financeira aos estudantes nacionais;

– no que se refere à presença comercial (Modo 3), exigências curriculares, tais como curso na língua nacional, história e geografia do país poderiam ser consideradas barreiras ao livre-comércio, pois poderiam impedir que instituições estrangeiras contratassem unicamente professores estrangeiros;

– no que diz respeito à presença de pessoas físicas (Modo 4), exames nacionais – instituídos para controlar a qualidade da formação dos profissionais e regular a quantidade de profissionais presentes no mercado, que existem em determinadas carreiras, como a advocacia – poderiam ser eliminados[l].

Ainda segundo as autoras, outro problema importante a ser destacado, que pode surgir no Modo 3, é a demanda das instituições estrangeiras receberem dos governos nacionais tratamento semelhante às instituições nacionais “do mesmo tipo”. Por um lado, isso pode significar apenas as instituições privadas, pois somente elas são de natureza comercial. No entanto, com a tendência cada vez mais marcada de comercialização das instituições de ensino públicas, com a cobrança de taxas ou busca de outros financiamentos que não públicos, essa diferença entre instituições privadas e públicas ficará cada vez menos evidente. Pode-se, assim, sofrer uma contestação judicial ou o questionamento da legitimidade do financiamento público ao ensino superior[li].

Neste mesmo sentido, destaca Ângela Siqueira, de forma precisa, que:

Quanto ao setor público, quanto mais terceiriza atividades (por exemplo, alimentação, treinamento de professores, avaliação etc.), vende serviços (cursos e tratamentos pagos, desenvolvimento de pesquisas remuneradas ou que beneficiem empresas), faz marketing comercial para atrair interessados, torna-se extremamente vulnerável à regulamentação da educação como um serviço comercial via OMC/GATS, saindo do frágil escudo do “exercício da autoridade governamental”, pois passa a oferecer educação em base comercial e em competição com outros provedores. Assim sendo, os grupos empresariais poderão processar os países por práticas prejudiciais à livre oferta de serviços educacionais, em vista do oferecimento de tratamento diferenciado, caracterizado por subsídios às entidades públicas, exigindo tratamento igual: recursos públicos para todos ou para nenhuma instituição[lii] (grifo nosso).

Neste contexto, o GATS é, portanto, afirmam as autoras acima mencionadas, uma ameaça ao caráter público da educação e à compreensão da educação como um direito humano[liii]. É o instrumento utilizado pelos países desenvolvidos para forçar, nos países em desenvolvimento, a abertura da educação e outros setores à exploração comercial.

 

4 CONCLUSÕES

Pelas diferentes abordagens acima apresentadas, verifica-se a importância exercida pelas distintas possibilidades de interpretação jurídica da educação. Tal constatação guarda relação com a reflexão feita por Boaventura de Sousa Santos de que, na reflexão epistemológica, passou a ocupar papel de relevo a análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da ciência[liv].

Tal distinção conceitual, repise-se, ocasiona uma diferenciação na interpretação jurídica da educação. Assim, por exemplo, no tocante ao acesso à educação, caso esta seja concebida como serviço passível de comercialização, o acesso se vincula a uma lógica econômica relacionada à capacidade de aquisição do indivíduo. Por outro lado, de modo relativamente distinto, a compreensão da educação enquanto direito social fundamental guarda relação com a prestação positiva de direitos pelo Estado.

Da mesma forma, percebe-se que, como opção metodológica, a precisão quantitativa do conhecimento sobre a educação é estruturalmente limitada, não superável com maiores quantidades de investigação[lv]. Logo, a discussão sobre a temática deve ser tratada a partir de uma metodologia qualitativa, que busca qualificar a definição de educação a partir de um referencial teórico selecionado entre as concepções compreendidas como mais relevantes, sobretudo em virtude da impossibilidade de elencar todas as compreensões existentes.

Portanto, malgrado não se esteja aqui a defender o paradigma da pós-modernidade, reconhece-se a relevância da tese que especula sobre a configuração de um paradigma emergente, que incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidas localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de forma a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem[lvi]. Isto se verifica especialmente no tema em exame, no qual se articula conhecimento e opiniões produzidas em diferentes espaços cognitivos, produzindo, da mesma forma, concepções distintas sobre educação que, não obstante sejam diversas, são igualmente relevantes para o estudo e compreensão da natureza jurídica da educação, seja enquanto serviço, seja enquanto direito fundamental.

 

5 REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

HADDAD, Sérgio (org.). Banco Mundial, OMC e FMI: o impacto nas políticas educacionais. São Paulo: Cortez, 2008.

______; GRACIANO, Mariângela. Educação: direito universal ou mercado em expansão. São Paulo em Perspectiva. São Paulo: vol. 18, nº. 3, 2004 Disponível em <http://www.seade.gov.br/produtos/spp/v18n03/v18n03_07.pdf&gt;. Acesso em 23 jun. 2009.

______. O direito à educação no Brasil. Relatoria Nacional para o Direito à Educação, Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, DhESC, 2003 Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/direito.pdf&gt;. Acesso em 20 jun. 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

SIQUEIRA, Ângela. A regulamentação do enfoque comercial no setor educacional via OMC/GATS. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: nº. 26, p. 145-156, mai-ago. 2004 Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n26/n26a11.pdf&gt;. Acesso em 23 jun. 2009.

WTO – WORLD TRADE ORGANIZATION. Education Services. Background Note by the Secretariat. Council for Trade in Services, S/C/W/49, 23 set. 1998, 26 páginas. Disponível em <http://docsonline.wto.org/gen_searchResult.asp?searchmode=simple&collections=&restriction_type=&synopsis=&subjects=&organizations=&products=&articles=&bodies=&types=&drsday=&dreday=&meet_date=&dpsday=&dpeday=&mh=&c2=@meta_Symbol&c3=@meta_Title&c4=@Doc_Date&o4=%3E%3D&c5=@Doc_Date&o5=%3C%3D&c6=@meta_Serial_Num&c8=@Derestriction_Date&c9=@Derestriction_Date&q0=&q4=1998%2F09%2F23+00%3A00%3A00&q5=&q8=&q9=&q2=&q3=education+services&q6=&countries=&q1=&ddsday=23%2F09%2F1998&ddeday=&multiparts=on&scndformat=off&ct=DDFEnglish%2CDDFFrench%2CDDFSpanish&search=Search&searchtype=simple&gt;. Acesso em 23 jun. 2009.

WTO – WORLD TRADE ORGANIZATION. Services Sectoral Classification List. Note by the Secretariat. Council for Trade in Services, MTN.GNS/W/120, 10 de julho de 1991, 08 páginas. Disponível em <www.wto.org/english/news_e/news00_e/w120.doc>. Acesso em 23 jun. 2009.


[i] Advogado, Mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

[ii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

[iii] Boaventura de Sousa Santos também possui escritos sobre a temática educacional, especialmente no que toca à universidade. Contudo, este trabalho tem como foco a utilização dos elementos metodológicos propostos pelo autor português na obra “Um discurso sobre as ciências”, de modo que não serão abordadas no presente trabalho as idéias do autor relacionadas à educação. Para estudo dos escritos de Boaventura sobre a temática educacional, cf., em especial: A universidade do Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004; Da Idéia de Universidade à Universidade de Idéias. In: Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª ed., São Paulo: Cortez, 2010.

[iv] SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit.

[v] Ibidem, p.20.

[vi] Ibidem, loc. cit.

[vii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p.53.

[viii] Ibidem, p.58.

[ix] Ibidem, p.53.

[x] Ibidem, p.74.

[xi] Ibidem, loc. cit.

[xii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p.85.

[xiii] Ibidem, p.76.

[xiv] Ibidem, loc. cit.

[xv] Ibidem, p.77.

[xvi] Ibidem, p.79.

[xvii] SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p.78-79.

[xviii] Para estudo sobre a criação, o funcionamento e a organização da OMC, cf. SIQUEIRA, Ângela. A regulamentação do enfoque comercial no setor educacional via OMC/GATS. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: nº. 26, p. 145-156, mai-ago. 2004

[xix] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. OMC em foco: a comercialização da educação na América Latina. In: HADDAD, Sérgio (org.). Banco Mundial, OMC e FMI: o impacto nas políticas educacionais. São Paulo: Cortez, 2008, p. 89-90.

[xx] Sobre demais acordos existentes dentro da OMC existem vários acordos, referentes diferentes áreas comerciais, cf.: SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 90.

[xxi] O GATS é resultado da Rodada do Uruguai e entrou em vigor em janeiro de 1995, porém as negociações só começaram em janeiro de 2002 Para aprofundamento sobre o estudo das rodadas de negociação da OMC, cf. SIQUEIRA, Ângela. Op. cit., p. 147.

[xxii] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 91.

[xxiii] Ibidem, loc. cit.

[xxiv] Ibidem, loc. cit.

[xxv] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 91-92 Segundo as autoras, a cláusula da Nação mais Favorecida estabelece que um país que abrir seu mercado para outro em determinado setor deve estender esse privilégio a todos os países participantes do acordo. Por sua vez, o Trato Nacional proíbe a concessão de privilégios a empresas nacionais, discriminado as estrangeiras, por meio, por exemplo, de incentivos fiscais.

[xxvi] Ibidem, p. 92.

[xxvii] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 93 Segundo as autoras, com base em documentos da OMC (Communication from the European Union and its Member States, Elements for “Complementary Approaches” in Services), em uma comunicação sobre as possibilidades de abordagens complementares na negociação do GATS, a União Européia propôs, como “objetivos quantitativos”, que os países desenvolvidos façam propostas novas ou melhoradas em pelo menos 85% dos setores presentes no GATS, e os países em desenvolvimento em pelo menos 66% dos setores do GATS. Como proposta de objetivos qualitativos, propõe, por exemplo, que nos Modos 1,2 e 3, os compromissos sejam feitos sem limitações, quando possível e em setores significativos comercialmente.

[xxviii] Ibidem, p. 91-94 Segundo as autoras, o Brasil é um dos países que adotou posição contrária aos benchmarks, sob o argumento de que “não parecem levar devidamente em conta a necessidade de respeitar a arquitetura e as flexibilidades construídas no GATS”. Para aprofundamento, cf.: SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p.90-94.

[xxix] Ibidem, p. 94.

[xxx] HADDAD, Sérgio. O direito à educação no Brasil. Relatoria Nacional para o Direito à Educação, Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, DhESC, 2003, p. 03-28.

[xxxi] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 541.

[xxxii] STF – Pleno – MS n 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206.

[xxxiii] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99.

[xxxiv] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 115

[xxxv] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p.115.

[xxxvi] Ibidem, p.148.

[xxxvii] HADDAD, Sérgio. O direito à educação no Brasil. Op. cit., p.1-6.

[xxxviii] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 95.

[xxxix] HADDAD, Sérgio. Op. cit., p.49.

[xl] Tradução livre de trecho da mensagem do Diretor-geral da Unesco na ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 2003). Disponível em <http://portal.unesco.org/education/en/ev.php-URL_ID=27259&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html&gt;. Acesso em 23 jun. 2009.

[xli] HADDAD, Sérgio; GRACIANO, Mariângela. Educação: direito universal ou mercado em expansão. São Paulo em Perspectiva. São Paulo: vol. 18, nº. 3, 2004, p. 73.

[xlii] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 96.

[xliii] Ibidem, loc. cit.

[xliv] Ibidem, p. 96-97.

[xlv] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 97.

[xlvi] WTO – WORLD TRADE ORGANIZATION. Services Sectoral Classification List. Note by the Secretariat. Council for Trade in Services, MTN.GNS/W/120, 10 de julho de 1991, 08 páginas.

[xlvii] WTO – WORLD TRADE ORGANIZATION. Education Services. Background Note by the Secretariat. Council for Trade in Services, S/C/W/49, 23 set. 1998, 26 páginas.

[xlviii] Id., Ibidem.

[xlix] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 98 Os trabalhos citados pelas autoras são os seguintes: ROBERTSON, Susan; BONAL, Xavier; DALE, Roger. Gats and the Education Service Industry: The Politics os Scale and Global Re-territorialization. Comparative Education Review. Chicago. EUA: The University of Chicago Press, vol. 46, nº. 4, p. 472-496, 2002;  COHEN, Marjorie Griffin. The World Trade Organization and Post-Secondary Education: Implications for the Public System. Vancouver, Canadá: British Columbia Teachers’ Federation, 2000; EDUCATION INTERNATIONAL. WTO trade talks “suspended”. TradE-ducation News. Bruxelas, Bélgica: nº. 10, agosto de 2006.

[l] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p.99.

[li] Ibidem, loc. cit.

[lii] SIQUEIRA, Ângela. Op. cit., p. 147.

[liii] SILVA, Camila Croso; GONZALEZ, Marina; BRUGIER, Yana Scavone. Op. cit., p. 99.

[liv] SANTOS, Boaventura Sousa. Op. cit., p.50-51.

[lv] Ibidem, p.54-55.

[lvi] Ibidem, p.77.

 Liana Brandão de Oliva[i]

Thiago Pires Oliveira[ii]

Tiago Silva de Freitas[iii]

Sócrates: Pois bem, Górgias, é tua vez. A oratória vem a ser uma das artes que tudo efetuam e operam por meio da palavra, não é?

Gór. Assim é.

Sóc. Dize: de que tratam estas? De qual dos seres existentes tratam as palavras empregadas pela oratória?[iv]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O argumento de autoridade na teoria do conhecimento. 3 Aplicações do argumento de autoridade ao direito. 3.1 O discurso do uso. 3.2 O discurso do abuso. 4 O anarquismo metodológico de Paul Feyerabend. 4.1 A contra-regra e a metodologia pluralista. 4.2 O princípio do “tudo vale” e a incomensurabilidade. 5 Conclusão: Feyerabend e a superação do abuso do argumento de autoridade na ciência do direito. 6 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O questionamento socrático acima transcrito do diálogo “Górgias ou A Oratória”, obra do filósofo grego Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.), é um questionamento que transcende à discussão do papel da oratória na sociedade grega da época, especialmente o uso abusivo da oratória pelos sofistas, abrangendo o citado diálogo a própria relação entre o saber e o discurso.

No citado diálogo, Górgias responde a Sócrates dizendo que a oratória trata dos “assuntos humanos mais importantes e nobres”[v]. Obviamente que o sofista, ao dar esta resposta a Sócrates, acaba permitindo a este que inicie a sua investigação com o intuito de alcançar o autêntico conhecimento[vi] sobre aquilo que Górgias tanto se orgulhava de “conhecer”.

Pois Sócrates vai refutar Górgias mostrando que as distinções estabelecidas pelo sofista não permitiam que se conhecesse a essência daquilo que seria a arte da oratória e que, apesar de Górgias sustentar que a essência da oratória residiria na produção da persuasão, Sócrates vai rebatê-lo ao confrontá-lo com o fato de que todos os saberes produzem persuasão também:

Sóc. Pois bem, dize-me, sôbre a oratória: só ela, a teu ver, produz a persuasão, ou também outras artes? Minha idéia é mais ou menos esta: quem ensina qualquer coisa, persuade aquilo que ensina, ou não?

Gór. Por sem dúvida, Sócrates; persuade com tôda a certeza.[vii]

A questão levantada por Sócrates permite inferir que a produção de um determinado conhecimento também passa pela construção de um discurso que visa influir no ânimo das pessoas de modo a elas serem convencidas por aquilo que foi argumentado e então possam apreender os conceitos transmitidos pelo emissor.

Este processo comunicativo que possibilita o ato de conhecimento pelo sujeito, receptor da mensagem, pode se utilizar de diferentes tipos de argumentos e abranger distintos saberes, seja o científico, seja o comum.

A assertiva acima é igualmente válida para o direito, visto que este saber é um “sistema de comunicação cuja função pragmática é organizar a convivência humana mediante, basicamente, a regulação das ações”[viii]. Nessa condição, é possível visualizar uma dependência do direito em relação à retórica.

Existem diversos tipos de argumentos elencados pela retórica que os saberes podem se utilizar. Na Antiguidade, o filósofo grego Aristóteles afirmava haver duas formas de se argumentar na retórica: o exemplo (uma indução) e o entimema (um silogismo, dedução)[ix].

Esta sistematização aristotélica permaneceu intocada durante o Medievo até que, durante a idade Moderna, o filósofo inglês John Locke propôs uma tipologia quatripartite formada pelos seguintes argumentos: ad judicium, ad ignorantiam, ad hominem e ad verecundiam[x].

O primeiro argumento elencado por John Locke (ad judicium) é o que se baseia em algum conhecimento produzido ou na probabilidade matemática. O segundo, argumento ad ignorantiam, é aquele que se aproveita da falta de conhecimento do receptor/interlocutor do discurso sobre um determinado assunto. No terceiro, o autor do discurso se aproveita de algum pensamento do interlocutor, desqualificando-o, com o fim de pressionar o próprio ou demais receptores a aceitar o seu argumento por ser mais plausível. Por fim, o argumento ad verecundiam é o que se apóia em algum tipo de autoridade, dignidade ou boa reputação (do orador, de um pensador)[xi].

Com a nova retórica capitaneada por Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, surge a classificação dos argumentos em quatro tipos: os quase-lógicos, os fundados na estrutura do real, os que fundamentam a estrutura do real e os argumentos por dissociação[xii].

O argumento quase-lógico é aquele que se caracteriza por ser não-formal e que necessita de um esforço mental para sua redução ao formal[xiii], ou seja, para ser compreendido faz-se necessário aproximá-lo do pensamento formal.

Já as estruturas argumentativas por dissociação visam separar (dissociar) noções em pares hierarquizados, a exemplo de aparência/realidade, meio/fim, etc. diferenciando-se assim dos demais tipos de argumentos que buscam associar as noções[xiv].

Os argumentos que fundamentam a estrutura do real são esquemas discursivos empíricos que permitem a criação senão, pelo menos, a complementação da própria estrutura do real[xv]. É o caso do uso do exemplo, da ilustração, do modelo, da comparação, da analogia e da metáfora.

Por fim, os argumentos fundados na estrutura do real são aqueles que se valem dessa estrutura para “estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover”[xvi]. Nestes argumentos priorizam-se a forma como é exposto e a sua fundamentação. Uma das estruturas que se inserem neste tipo argumentativo é a figura do argumento ad verecundiam ou argumento de autoridade que será explicitado a seguir.

 

2 O ARGUMENTO DE AUTORIDADE NA TEORIA DO CONHECIMENTO

Apesar de seu largo uso durante a Antiguidade, especialmente pelo direito romano, e a Idade Média, o magister dixit reinante nos mosteiros e universidades da época, foi possível constatar que a ascensão do projeto filosófico da modernidade permitiu o surgimento de críticas a supremacia deste modelo argumentativo. Um exemplo foi Francis Bacon que vai atribuir a dependência do argumento de autoridade como um dos obstáculos para o desenvolvimento das ciências:

A reverência à Antiguidade, o respeito à autoridade de homens tidos como grandes mestres de filosofia e o geral conformismo para com o atual estádio do saber e das coisas descobertas também muito retardaram os homens na senda do progresso das ciências, mantendo-os como que encantados[xvii].

Entretanto, será seu conterrâneo, John Locke, quem irá se debruçar sobre essa modalidade argumentativa quando propõe uma classificação dos argumentos nos quatro tipos supramencionados (ad judicium, ad ignorantiam, ad hominem e ad verecundiam)[xviii]. Será este último a modalidade correspondente ao argumento de autoridade que o citado autor inglês define como aquele que serve “para sustentar as opiniões de homens cuja habilidade, aprendizado, eminência, poder, ou algum outro motivo lhe deram um nome, e estabeleceram uma reputação na estima comum com algum tipo da autoridade.”[xix]

Quanto a este argumento, Locke vai criticá-lo ao entender que há uma inclinação a censurá-lo em vários momentos por força do orgulho que provoca e além de não ser a via adequada para o alcance do conhecimento[xx].

O argumento de autoridade é definido por Perelman e Olbrechts-Tyteca como um modo de raciocínio retórico que “utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese”[xxi]. Olivier Reboul atribui um caráter axiológico ao argumento de autoridade ao esclarecer que este argumento “justifica uma afirmação no valor de seu autor: Aristoteles dixit, Aristóteles disse[xxii].

A utilização do argumento de autoridade[xxiii] possui um forte efeito suasório na comunidade acadêmica e leiga. Também conhecido como argumento magister dixit ou argumento de respeito, depreende-se possuir tal técnica argumentativa um potencial pragmático e dinamizador das decisões acerca dos institutos e da resolução de controvérsias casuísticas[xxiv].

Pedro Demo apresenta duas situações em que o recurso à autoridade se mostra justificadamente aplicável ao conhecimento científico: quando a autoridade se encontra na “posição de perito” e quando a autoridade goza de “prestígio”. O primeiro caso decorre da competência técnico-científica da autoridade que é chamada para resolver um problema que exige um saber especializado. Já a segunda situação decorre da posição ocupada por uma pessoa dentro de uma escala de valores em determinado sistema social[xxv].

Tais argumentos são dotados, nas palavras de Victor Gabriel Rodríguez, de um duplo efeito: a presunção de veracidade e a presunção de imparcialidade[xxvi].

A presunção de veracidade constitui atributo do argumento magister dixit que, iuris tantum, devido aos relevantes serviços prestados à Academia, bem assim, ao seu caráter e idoneidade atestados ao longo da construção de sua carreira, indica constituir, as afirmações acerca de um dado problema, fonte segura e confiável.

No tocante à presunção de imparcialidade, frise-se, complemento do primeiro atributo, pode-se dizer que este representa a lisura, a racionalidade e a busca da verdade, livre das amarras da emoção/paixão[xxvii], considerando, portanto, a possibilidade de um conhecimento neutro, incondicionado historicamente.

É exatamente este o entendimento acerca da modalidade argumentativa em comento, de Victor Gabriel Rodríguez: “O que se busca no (bom) argumento de autoridade é, principalmente, que ele seja reflexo de um pensamento confiável e científico.”[xxviii]

Nesse diapasão, interessa registrar uma breve estória:

Conta-se que o leão estava faminto e procurava caçar a zebra, mas não conseguia. A zebra embrenhava-se na mata, corria e corria; volta e meia, a caca, na fuga, invadia o rio, onde, com pernas mais longas, escapava do rei da floresta. Furioso, o felino, sob os conselhos sábios da leoa, propôs ao crocodilo uma união de esforços: o crocodilo e sua esposa espreitariam a zebra na água, enquanto o leão e a leoa a perseguiriam em terra. Não haveria escapatória. Com a união de esforços, foi realmente impossível, e a zebra sucumbiu à boca do crocodilo. Chegou o momento, então, de dividir a presa entre os quatro caçadores, e o leão anunciou: “Dividimos a zebra em duas metades. A primeira metade será dividida igualmente: um terço ao crocodilo, por ter matado a caça; outro terço à sua esposa, por ter feito a tocaia; o último, à leoa, por haver planejado tudo com perfeição… e a outra metade é minha, porque meu nome é Leão.” (Op. Cit., 2004, p. 117-118).

Ora, dessa estória subsume-se uma violência argumentativa patrocinada pelo argumento de autoridade. Tal violência, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, encerra um desprezo pela vontade da adesão do interlocutor, via persuasão racional, posto que, se locupleta da coerção, vale dizer, do temor pela dissidência[xxix].

Nesta senda, Stephen Jay Gould[xxx] e Mário Bunge[xxxi] rechaçam a idéia de ciência como panacéia para os problemas da humanidade. As “verdades científicas” reclamam por uma relativização, em especial no tocante às suas premissas, visto que estas podem conduzir a resultados obtusos. Nesse diapasão, é possível sim falar em verdade científica, desde que esteja sob o paradigma de uma ciência que não se eleve ao patamar de dogma, vale dizer, de irrefutabilidade, sob pena de incorrer, nas palavras de Bunge, numa pseudociência, e, nos dizeres de Gould, numa falsa medida.

Pseudociencia: un cuerpo de creencias y practicas cuyos cultivadores desean, ingenua o maliciosamente, dar como ciencia, aunque no comparte con esta ni el planteamiento, ni las técnicas, ni el cuerpo de conocimientos. Pseudociências aun influyentes son, por ejemplo, la de los zahories, la investigacion espiritista y el psicoanalisis[xxxii].

A objetividade científica pode ser descrita como a postura crítica do sujeito cognoscente diante do conhecimento científico, visando à refutabilidade do pensamento dominante e, por conseguinte, o progresso da ciência. A lógica das ciências sociais, para Popper[xxxiii], não pode incorrer num relativismo extremado/inconseqüente, mas necessariamente, numa postura de falseabilidade dos conceitos formulados, com vistas ao aprimoramento do cabedal informativo auferido.

A força de um dado conhecimento, portanto, residirá na resistência/permanência como critério aceito por uma comunidade, sendo este, basicamente, o sistema lógico-dedutivo popperiano que, em síntese, prega a adoção dos conceitos subsistentes ao falseamento. Desse modo, o argumento de autoridade, necessariamente, deverá passar por este crivo.

O conhecimento prudente para uma vida decente preconizado por Boaventura Santos[xxxiv] constitui a mola de superação da ciência normal, observada por Thomas Kuhn[xxxv], posto que, induz um conhecimento emancipatório, fulcral para o enfrentamento de tais paradigmas. Tal idéia não pode prescindir da problematização e conseqüente retirada do argumento de autoridade do pedestal quase intangível chancelado pelo modelo científico hegemônico.

A idéia de conhecimento prudente apresentada por Boaventura Santos induz uma epistemologia racional que, na esteira do pós-positivismo jurídico, atenta para a relativização do dogma, retirando dos centros oficiais hermenêuticos (igreja, poder judiciário, comunidade científica), a legitimidade exclusiva quanto à indicação do caminho reto. É dessa forma que o argumento de autoridade perde força e seu reinado absoluto.

Para Rodríguez (2004, p.121-137), a validade de um argumento de autoridade[xxxvi] exige o atendimento a seis pressupostos, quais sejam: 1) a questão do experto, 2) a questão da área, 3) a questão da validade da opinião, 4) a questão da confiabilidade, 5) a questão da consistência, e 6) a questão da prova. Tais questões, uma vez respondidas afirmativamente, retiram o argumento do campo da fraude intelectiva.

A questão do experto diz respeito às qualidades pessoais do pesquisador e ao respaldo da sua produção científica, vale dizer, à integridade e veracidade atestadas pela experiência do cientista.

Também a questão da área de atuação do experto é importante, posto que o seu grau de especialização oportuniza um potencial maior quanto à verificabilidade da tese.

É preciso, ainda, submeter o objeto ao crivo da questão da validade, que constitui a adequação casuística das inferências do aludido argumento, corrigindo-o relativamente às idiossincrasias, bem assim, às mudanças pelo transcurso do tempo.

A questão da confiabilidade diz respeito ao prestígio do pesquisador perante uma dada comunidade científica, devido à sua moral, seriedade e comprometimento com a produção de conhecimento.

No que tange à questão da consistência, esta diz respeito ao grau de coerência interna e externa da argumentação, vale dizer, à concatenação da idéia, bem como a existência de outras opiniões abalizadas que corroborem o afirmado.

A questão da prova aponta para uma necessidade de subsistência do argumento ante a aferição de sua veracidade, v.g., a perícia e o parecer[xxxvii]. Assim posicionou-se Victor Gabriel Rodriguez (2005, p.137):

O parecer é argumento de autoridade, na medida em que seu redator conhece a matéria sobre a qual se pronuncia, e esse conhecimento funciona como presunção de veracidade da tese para a qual aponta. Tem sido largamente utilizado no cotidiano jurídico em nosso país, por isso vale absolutamente como técnica de persuasão. Entretanto, necessário apontar para seus requisitos, como em todo argumento magister dixit[xxxviii].

Nesta esteira, Freire-Maia afirmou:

A metodologia cientifica é apenas uma maneira de analisar e interpretar a realidade. Essa maneira está marcada por um dogma – o dogma da insegurança (os produtos intelectuais da visão cientifica não oferecem garantia de certeza), intimamente ligado ao dogma da incredulidade (a fé que eles possam merecer está eivada de duvidas)[xxxix].

O condicionamento histórico-cultural do conhecimento, quando negligenciado, denota ingenuidade ou malícia, daqueles que fazem da presunção de veracidade do argumento científico uma profissão de fé, especialmente no âmbito das geistswissenchaften[xl], que, invariavelmente, são histórico-condicionadas[xli].

Ainda consoante tal pensamento, indicando os limites espaciais e temporais epistemológicos, leciona Umberto Eco:

Qualquer forma de pensar sempre é vista como irracional pelo modelo histórico de outra forma de pensar, que vê a si mesmo como racional. A lógica de Aristóteles não é a mesma que a de Hegel; Ratio, Ragione, Raison, Reason e Vernunft não significam a mesma coisa[xlii].

Desse modo, o magister dixit, representa um forte elemento persuasivo, não podendo, entretanto, jamais ser considerado absoluto, afim de que não incorra em dogmatismo obtuso[xliii].

Consoante Olivier Reboul, deve-se atentar para a não criação de sofismas “raciocínio cuja validade é apenas aparente e ganha a adesão por fazer crer em sua lógica”[xliv].

E continua o autor aduzindo que o raciocínio entimemático sofístico extrapola, na conclusão, os limites estabelecidos pelas premissas, conduzindo à uma idéia aparentemente adequada, porém desarrazoada, v.g: “-Todos os deputados de direita votaram esta lei; – Ora, Duran votou esta lei. – Logo…”. Percebe-se não ser possível inferir, necessariamente que o deputado Duran é de direita, o que, em acontecendo, configuraria um argumento sofístico, desprovido, portanto de respaldo, em que pese haja uma garantia (premissa) que valide a tese[xlv].

Este modo de raciocínio retórico sofreu fortes críticas em virtude de diversos saberes o terem utilizado de forma abusiva e peremptória, ou seja, como se as autoridades invocadas fossem infalíveis[xlvi].

E a virulência de tais críticas vai chegar ao ponto de Pedro Demo asseverar que “o apego exagerado à crendice na autoridade, o substituto moderno e elegante da justificação dogmática” poderia constituir “um dos pontos mais infantis da produção científica”, sendo que esta postura é amplificada pelas ciências humanas e sociais que estariam “repletas de monstros sagrados que estereotipam o trabalho científico preconceituosamente.”[xlvii]

Em seguida o mesmo autor vai amenizar o seu discurso, quando afirma que o apelo ao argumento de autoridade “não pode ser visto apenas como infantilismo científico”, em razão de ser uma condição normal da atividade científica que se pratica na sociedade, de modo que o próprio cientista se atribui autoridade. Contudo, faz-se necessário “limitar sua abrangência”[xlviii].

Em que pese as duas hipóteses em que o recurso à autoridade se mostra justificadamente aceitável, haveria duas situações em que o uso do argumento de autoridade se mostra inaceitável no contexto científico: é o caso do abuso de competência e do abuso de prestígio. O abuso de competência consiste no fato do perito se aproveitar de seu saber especializado combinado com a ignorância alheia, enganando este último. Já o abuso de prestígio ocorre quando “pessoas célebres” passam a opinar sobre todos os campos do saber independentemente de seu conhecimento sobre o tema, mas, em face de sua popularidade, exploram ao máximo desta condição[xlix].

 

3 APLICAÇÕES DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE AO DIREITO

Em que pese a retórica ter sua origem nos tribunais da Sicília grega quando Córax e seu discípulo Tísias criaram uma Techné Rhetoriké (arte oratória) visando servir como instrumento de defesa de causas para os litigantes envolvidos em conflitos judiciários[l], observa-se que o argumento de autoridade se consolidou como técnica de retórica jurídica com o direito romano, especialmente, por meio da jurisprudência, aqui entendida como os escritos dos jurisconsultos, “homens muito experientes na prática do direito”, a exemplo de Ulpiano, Papiniano e Gaio, que emitiam opiniões (responsa) muito utilizadas pelos operadores do direito da época, sendo autênticas fontes do direito na época clássica[li].

O argumento de autoridade fundado nos jurisconsultos era tão significativo no direito romano que alguns destes jurisconsultos foram declarados pelo próprio imperador romano como “autoridades”, como foi o caso de Otávio Augusto que lhes concedeu o benefício (beneficium) do “direito de resposta sob a autoridade do príncipe” (ius respondendi ex auctoritate principis). Entretanto, somente com o imperador Adriano é que as responsa dos jurisconsultos passaram a ser obrigatórias aos juízes[lii].

Com a queda do Império Romano do Ocidente, inaugura-se a fase do dominato na qual o direito romano permaneceria vigente nas fronteiras do Império Bizantino até a queda de Constantinopla[liii]. Neste momento, verifica-se a influência do argumento de autoridade na cultura jurídica romana no que se refere à sua relação com os jurisconsultos.

Esta influência foi tão grande que imperadores bizantinos chegaram a editar constituições conferindo força normativa para as opiniões dos jurisconsultos (Lei das Citações)[liv] e até mesmo quando tais imperadores resolveram codificar o direito, formando o Corpus Iuris Civilis, sendo que boa parte do material objeto da codificação foi a doutrina jurídica produzida por jurisconsultos como Gaio, Ulpiano, entre outros[lv]. F.C. Von Savigny comenta estes episódios bizantinos da seguinte forma:

Valentiniano III sometió á reglas la autoridad de los jurisconsultos ante los tribunales (§ 26), Y la legislación de Justiniano simplificó a ún más las fuentes del derecho, Dio fuerza de ley á una parte de la literatura científica, quitó toda autoridad á la otra parte más considerable, y abandonó y prohibió la formacion de ninguna obra nueva (§ 26)[lvi].

Esta breve incursão histórica mostra alguns exageros verificados na história do pensamento jurídico no que se refere à aplicação do argumento de autoridade pelos operadores do direito. Mas, este argumento não é negativo em si mesmo. Ele pode ser caracterizado como um instrumento de convencimento que se encontra consagrado pela tradição do direito, sendo amplamente usado pela retórica jurídica[lvii], tanto no âmbito profissional, quanto no acadêmico.

A aplicação do argumento de autoridade ao discurso jurídico visa oferecer um meio de legitimação e fundamentação para a argumentação jurídica, visto que o autor de uma “tese” (seja na condição de operador do direito em um litígio judicial, seja na condição de pesquisador do direito em um ambiente acadêmico), ao citar um determinado autor de renome, busca estabelecer um silogismo entre o fato objeto da tese, o pensamento do autor renomado e a sua conclusão, comprovando uma suposta veracidade da “tese jurídica”.

As origens do recurso ao argumento de autoridade no pensamento jurídico brasileiro se fundem com as origens do próprio ensino jurídico no país que reproduziu o modelo educacional da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)[lviii].

Na citada universidade predominava a tradição escolástica portuguesa, a qual baseava o seu ensino na ortodoxia e no isolamento de Portugal em relação aos avanços da ciência moderna, restringindo as “investigações” com alunos e professores se ocupando em disputationes escolásticas, citando como autoridades últimas, além da Bíblia, Aristóteles e Santo Tomás[lix].

Sobre o tradicional apego ao magister dixit pela escolástica portuguesa, José Murilo de Carvalho leciona que:

Seguramente, na tradição retórica portuguesa a abundante citação de autores era generalizada. Verney a identifica como um dos vícios que condena. Em suas palavras: “Este desejo de parecer erudito com a repetição de mil passos de autores tem alucinado infinita gente. Conheci um que não abria a boca que não repetisse um verso de Marcial, de Juvenal, etc.” Vimos como em Coimbra, durante o período jesuítico, havia uma rígida definição dos autores aceitos como autoridade: Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. A reforma pombalina não afetou esta característica do ensino. Apenas mudaram-se os autores. Nos estudos menores, as “Instruções para os professores de retórica”, por exemplo, indicam com precisão os autores a serem usados, incluindo antigos e modernos. O mesmo é feito para os professores de grego, latim e hebraico. Na reforma dos estudos maiores (Universidade de Coimbra), estava presente a mesma preocupação. Em filosofia racional, por exemplo, Aristóteles era substituído por Antônio Genovese. No direito, Bártolo devia ser substituído por Cujácio, cuja escola devia ser seguida “inviolável e uniformemente […] por todos os professores assim nas dissertações, e escritos, como nas lições públicas”[lx].

Esta tradição acabou por se perpetuar pela classe jurídica brasileira que incorporando estes paradigmas passou a construir o seu discurso do direito em uma série de argumentos de autoridade: o recurso à doutrina dos “baluartes” (Augusto Teixeira de Freitas, Ruy Barbosa, Pimenta Bueno, Visconde do Uruguai, Clóvis Bevilácqua, Pontes de Miranda, Nelson Hungria, Francisco Campos, Miguel Reale, etc.); a submissão inquestionável aos atos produzidos pelo Poder Legislativo, ao submeter-se à suposta vontade do legislador, podando as possibilidades hermenêuticas existentes (dogma da onipotência do legislador)[lxi] e ainda o apego extremado à jurisprudência dos tribunais, especialmente, aos julgados do Supremo Tribunal Federal, que confere ao precedente judicial a condição de mecanismo de estabilidade jurídica[lxii].

Diante disto, evidencia-se o que a cultura jurídica brasileira transferiu os ranços da cultura legal portuguesa, especialmente no que se refere ao (ab)uso retórico do argumento de autoridade somente substituindo os autores que imperavam como ícones lusitanos, por outros que assumiram o posto de “bezerros de ouro” tupiniquins.

Não é demasiado expor ainda a advertência de J. Murilo de Carvalho, segundo a qual, este fenômeno da “onipresente da citação de autores estrangeiros, e da concomitante importação de idéias”, não se traduzia um indicador de dependência intelectual, mas é algo mais complexo, fruto de uma tradição em que um autor se quisesse ser incluído no rol da elite intelectual do país deveria lançar mão do argumento de autoridade, o qual figuraria como um requisito indispensável, não significando, necessariamente, uma adesão automática a tais idéias[lxiii].

Discorrida a inserção do argumento de autoridade importa abordar as situações em que este modo de raciocínio retórico contribui epistemologicamente para o saber jurídico (o discurso do uso) ou assume a condição de obstáculo para o alcance deste conhecimento (o discurso do abuso).

 

 

3.1 Discurso do uso

Existem diversas aplicações do argumento de autoridade ao mundo do direito. Ele pode servir como: a) instrumento de fundamentação de decisões jurídicas em sentido lato (ou seja, desde as sentenças judiciais até os pareceres de assessorias jurídicas); b) meio de prova (nas situações em que se recorre ao perito técnico); c) ponto de partida para uma investigação jurídica (ex. estudar ontologia jurídica a partir da Teoria Egológica de Carlos Cossio).

Em todas estas situações é plenamente aceitável o uso do argumento de autoridade. O abuso dar-se-á a partir do momento em que o operador do direito, apropriado-se do abuso de competência ou do abuso de prestígio, passa a extrapolar a função de tais técnicas argumentativas.

 

3.2 Discurso do abuso

O abuso do argumento de autoridade no âmbito do direito se dá tanto sob a forma do abuso de competência, quanto nas situações de abuso de prestígio. Na primeira hipótese, o operador do direito utiliza-se como argumento ad verecundiam o fato dele se aproveitar da condição de “conhecedor do direito” para diante de um auditório leigo expor suas interpretações da norma jurídica como se fossem a exata expressão normativa e também quando expõe uma opinião por meio do uso da linguagem hermética do direito (o juridiquês) dificultando a assimilação do conhecimento pelos receptores não versados na linguagem técnica.

Já a segunda hipótese, que trata do abuso de prestígio, é uma das situações mais comuns na praxis jurídica no que se refere ao abuso do argumento de autoridade. O operador do direito abusa do prestígio quando ele: a) recorre exageradamente à autores do direito como se fossem infalíveis; b) utiliza-se de julgados isolados e minoritários defendendo que são expressão da jurisprudência dominante; c) não questionam normas jurídicas flagrantemente inconstitucionais, interpretando-as buscando a vontade do legislador; d) quando se encontra perante uma banca examinadora de um trabalho qualquer, cita membros da banca no trabalho somente com fins de adulação e encomiástica e não por causa das idéias expostas; e) mudança automática de posicionamento doutrinário em face de decisões do Supremo Tribunal Federal.

 

4 O ANARQUISMO METODOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND

Uma proposta interessante para fundamentar à crítica ao abuso do argumento de autoridade está contida na reprovação apresentada por Paul Feyerabend às metodologias tradicionais e, em contraponto, sua defesa ao intitulado “anarquismo metodológico”[lxiv].

O anarquismo, em uma abordagem política e filosófica, pode ser conceituado como “doutrina segundo a qual o indivíduo é a única realidade, que deve ser absolutamente livre e que qualquer restrição que lhe seja imposta é ilegítima[lxv]”. Não obstante, tal concepção permite presumir que o Estado, o Direito e mesmo regras metodológica pré-estabelecidas não seriam legitimadas do acordo com os pressupostos anárquicos.

Ainda, Abbagnano[lxvi] adiciona que o principal objetivo do anarquismo seria assegurar a justiça como valor atinente ao foro íntimo de cada indivíduo, e não poderia ser imposta ou forçada. Contudo, caberia a cada um a consciência da dignidade do outro como a sua própria, de modo a estruturar uma harmonia coletiva, conservando-se, precipuamente, a individualidade de seus membros.

Vale aqui apontar que a intenção de Feyerabend foi de utilizar a designação “anarquismo metodológico” como um amparo funcional para a filosofia da ciência e a epistemologia, e nada tem a ver com uma opção pela política anarquista em si. Anarquismo, deste modo, seria tão somente a terminologia que melhor se adequara a ilustração de seu trabalho e, por conseguinte, para denominar sua teoria. Posteriormente, o termo foi objeto de críticas e ponderações do próprio autor, inclusive[lxvii].

Entende-se, porém, que independente de críticas formuladas a expressão anarquismo metodológico, esta denominação ajusta-se harmoniosamente a sua proposta, sem prejudicar, em absoluto, sua acepção, senão veja-se a seguir.

O anarquismo metodológico consiste na opção por refutar padrões universais, tradições rígidas, regras estritas e toda espécie de limitação pré-moldada que seja atribuída aos métodos científicos, independente do êxito que tais métodos possam ter alcançado ao longo da história – o que implica, naturalmente, na rejeição de parte significativa da ciência moderna[lxviii].

Em contrapartida, defende-se o desenvolvimento científico livre, desprendido de leis, deveres ou limitações.

Assim Feyerabend propõe-se a advogar pelo o anarquista epistemológico, quem muito se assemelha ao dadaísta, posto que “’não apenas não tem programa [como é] contra todos os programas’, embora, por vezes, se mostre o mais exaltado defensor do status quo ou de seus opositores: ‘para ser um verdadeiro dadaísta há que ser também um antidadaísta’ ”[lxix].

Seria um equívoco interpretar que o anarquista epistemológico poderia ser equiparado ao anarquista político ou religioso – que se contrapõem às ideologias do Estado e das Instituições, no intuito de destruir a ordem estabelecida – vislumbrando o rompimento com que lhe é imposto para delinear livremente sua existência, iniciativas e escolhas.

Incorre igualmente em erro aquele que pretender igualá-lo ao cético, caracterizado pela sua afasia, abstendo-se por tantas vezes de pronunciar juízos próprios ou detendo-se apenas a classificação maniqueísta do que observa.

O anarquista epistemológico é absolutamente livre e mesmo inescrupuloso na exposição de suas opiniões. Ele não teme defender qualquer que seja o enunciado, até porque, em oposição ao anarquista político ou religioso, não tem o dever de manter-se fiel a princípios e regras pré-determinados, ou tão pouco a negação destes[lxx].

Não se pode afirmar que a defesa a mudança, ao novo e ao progresso seja uma proposta original. Decerto, porém, que parece muito mais simples mantê-la inalcançável, como um principio de eficácia programática, o qual não se espera efetividade por alguns longos, anos, tratando, assim, a mudança de paradigmas como um ideal inalcançável, ou pouco provável de acontecer. Carl Sagan posicionou-se sobre este tópico, apontando que:

Na minha opinião, há boas razões para questionar, falar claro, projetar novas instituições e novas maneiras de pensar. Sim, a civilidade é uma virtude e pode convencer um adversário surdo às súplicas filosóficas mais fervorosas. Sim, é absurdo tentar converter todos a uma nova maneira de pensar. Sim, poderíamos estar errados e nossos adversários certos. (Já aconteceu antes.) E sim, é raro que uma das partes numa discussão convença a outra. (Thomas Jefferson disse que nunca vira tal coisa acontecer, mas sua conclusão parece severa demais. Acontece na ciência o tempo todo.) Mas essas não são razões adequadas para fugir ao debate público. Pelas melhorias (…) pêlos desafios inquietantes a visões de mundo há muito tempo adotadas, a ciência e a tecnologia têm alterado dramaticamente as nossas vidas. Muitos de nós estamos suando para acompanhar o ritmo do progresso, às vezes compreendendo apenas lentamente as implicações dos novos desenvolvimentos[lxxi].

 

4.1 A contra-regra e a metodologia pluralista

Antes mesmo de se considerar as razões em que se fundamenta Feyerabend para defender o anarquismo metodológico, importa discorrer acerca das contra-regras apontadas pelo autor no intuito de contradizer as teorias científicas tradicionais asseguradas e/ou os resultados experimentais instituídos, pois são justamente estas contra-regras os elementos detectores da falibilidade metodológica que se deseja examinar.

A primeira das contra-regras impõe-se as teorias já aceitas e confirmadas. Ocorre que, na grande parte dos casos, para estabelecer-se uma nova regra, o cientista vale-se tão somente da “força de análise”, ou seja, não há preocupação em refutar as teorias já confirmadas que lhes servirão como objeto de estudo, exceto se houver razão concreta para questiona-lhes a credibilidade[lxxii]. O que seria, todavia, uma razão concreta que justifique o reexamine de uma teoria?

Feyerabend constata se os preceitos que compõem teorias ortodoxas consolidadas, deixam de ser violados pelos cientistas que os sucedem fica estagnado o progresso da ciência. Ora, por mais radicada na epistemologia que seja a norma metodológica, esta há, em alguma circunstância, de ser violada se almejamos o progresso da ciência. Ao cientista cabe adotar uma metodologia pluralista, que afirma que, ao cientista:

Compete-lhe comparar idéias antes com outras idéias do que com a ‘experiência’ e ele tentará antes aperfeiçoar que afastar as concepções que forem vencidas no confronto. Procedendo dessa maneira, manterá as teorias acerca do homem e do cosmos que se encontram no Gênese ou no Pimandro e as elaborará e utilizará a fim de avaliar o êxito da evolução e de outras concepções ‘ modernas’. Concluirá, talvez, que a teoria da evolução não é tão bem fundada quanto geralmente se admite e que deve ser complementada ou inteiramente substituída por uma aperfeiçoada versão do Gênese. O conhecimento, concebido segundo essas linhas, não é uma série de teorias coerentes, a convergir para uma doutrina ideal; não é um gradual aproximar-se da verdade. É, antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo incomensuráveis[lxxiii]) (…) [lxxiv].

Não obstante, a metodologia pluralista projeta-se justamente por ser a fonte metodológica através da qual se construíram diversas das teorias hoje aclamadas, ou seja: questionar, sem cautelas, tudo aquilo que é posto, mesmo quando pouco convém ou em nada aparenta acrescentar, contrastando idéias ao invés de acatá-las, não é algo que pode ser ignorado, sob pena de assassinar, lentamente, o progresso científico.

A segunda contra-regra observada impõe-se contra os fatos e resultados empíricos que embasam a ciência. Segundo Feyerabend, pouco é preciso para argumentar a este favor, pois não há sequer uma teoria relevante que se encontre harmonizada com todos os fatos que a contrapõem. Assim, o que realmente interessa indagar envolve dois pontos: (1) o que se deve fazer com as discrepâncias detectadas em resultados experimentais, mesmo quando estas sejam indiscutivelmente uma minoria; (2) como será possível examinar algo que, habitualmente, utiliza-se como pressuposto?

A resposta a primeira indagação é um dos pontos diferenciais de Feyerabend, pois defende que ao invés de tentar furtivamente desprezar ou diminuir o valor de resultados contradições, ampliando-as e discutindo-as exaustivamente, de forma que cada nova conclusão possa ser reinserida no objeto estudado, aperfeiçoando a pesquisa[lxxv].

Já no que tange a maneira de conduzir esta ampliação, tendo em vista a dificuldade inata de criticar preceitos presumidos verdadeiros, arraigados quase que instintivamente na estrutura dos pensamentos, há de se observar às seguintes ponderações:

Ocorre, a par disso, que o conteúdo de um conceito é também determinado pela maneira como ele se relaciona com a percepção. Entretanto, como descobrir essa maneira, sem cair em círculo vicioso? (…) Só há um meio de fugir ao círculo vicioso: consiste em usar medida externa de comparação, inclusive maneiras novas de relacionar conceitos e dados de percepção. Retirada do domínio do discurso natural e afastada de todos os princípios, hábitos e atitudes que constituem sua forma de vida, essa medida externa se afigurará, sem dúvida, estranha. Isso, entretanto, não é argumento contra sua utilização. Pelo contrário, a impressão de estranheza revela que as interpretações naturais estão operando e constitui um primeiro passo no sentido de que venham a ser descobertas[lxxvi].

Entende-se, pois, que é preciso estabelecer um novo sistema conceitual, um padrão externo de críticas, similar a um mundo imaginário, para nele introduzir percepções que não ocorreriam através de ordinárias observações durante a pesquisa, dado o círculo vicioso que se forma em torno no pesquisador.

 

4.2 O princípio do “tudo vale” e a incomensurabilidade

Após analisadas as limitações metodológicas e a relevância da contra-regra para a pesquisa científica, resta interligar, em reflexão conclusiva, a real proposta do anarquismo metodológico antes apresentado. Infere-se, a partir deste ponto, o importante princípio, único que pode ser utilizado e defendido em qualquer circunstância, segundo o qual: “tudo vale”. Neste sentido, manifesta-se Chalmers[lxxvii]:

Feyerabend argumenta, com sucesso, contra o método na extensão em que mostrou que não é aconselhável que as escolhas e decisões dos cientistas sejam restringidas por regras estabelecidas ou implícitas nas metodologias da ciência (…) Resumindo, se você quer fazer uma contribuição para a física, por exemplo, não é necessário que esteja familiarizado com as metodologias da ciência contemporânea, mas sim que esteja familiarizado com aspectos da física. Não será suficiente seguir somente os caprichos e inclinações de maneira desinformada. Na ciência não se dá o fato de que vale tudo num sentido sem limites.

Destarte, a proposta ora formulado não se resumi a mera apologia a anarquia política ou social, tão pouco é uma recusa a todos os métodos já declarados, ou negação genérica, visando promover algo inusitado e extraordinário. Observa-se aqui a rejeição ao absolutismo metodológico, a recusa a aceitar determinada metodologia como única correta e ideal, do modo que intentam fazer diversos dos cientistas tradicionais, sem a humildade necessária para detectar que toda e qualquer metodologia contém limitações e nenhuma delas será a melhor para todos os tipos de pesquisa – é preciso adequação, reflexão, experiências e integração. É preciso ousar. É preciso um pluralismo metodológico.

Ressalte-se que o “Contra o Método”, obra de Feyerabend especialmente discutida neste trabalho, causou indignação e polêmica no meio acadêmico. Não obstante, poucos anos após a primeira edição da citada obra, o autor publicou artigo no qual, valendo-se de destemperada ironia e elaborando analogia crítica à ciência tradicional, afirmou:

A situação não melhora pelo fato de assinalarmos a existência de revoluções. Primeiro, porque estamos lidando com a tese de que é a ciência normal que se caracteriza pela atividade de solução de enigmas. E, segundo, porque não há razão para acreditar que o crime organizado ficará para trás no domínio das principais dificuldades. De mais a mais, é a pressão derivada do número sempre crescente de anomalias que leva, primeiro a uma crise, depois a uma revolução; e quanto maior a pressão, tanto mais cedo ocorrerá a crise. Ora, pode-se esperar que a pressão exercida sobre os membros de uma gangue e seus “colegas profissionais” excede as pressões exercidas sobre o cientista — este último dificilmente terá de haver-se com a polícia. Para onde quer que olhasse — a distinção que desejamos traçar não existe. (…) Todo criminoso sabe que, além de obter êxito em sua profissão e ser popular entre os criminosos, seus semelhantes, ele deseja uma coisa: dinheiro. Também sabe que sua atividade criminosa normal lhe dará exatamente isso. Sabe que receberá mais dinheiro e subirá mais depressa na escada profissional quanto melhor solucionador de enigmas se revelar e quanto melhor se ajustar à comunidade criminosa. Sua finalidade é o dinheiro. Qual é a finalidade do cientista? E, tendo em vista essa finalidade, a ciência normal poderá conduzir a ela? Ou os cientistas (e os filósofos de Oxford) serão menos racionais do que os gatunos por “fazerem o que fazem” independentemente de qualquer finalidade?[lxxviii] (grifamos)

Esse é o cerne da filosofia de Feyerabend, posto que tudo é permitido para a alcance do conhecimento. Em ciência tudo pode. O espírito criativo do cientista/filósofo, amante do saber, aproxima-se dos gatunos supramencionados que, extremamente inventivos na arte delitiva, diferenciam-se dos primeiros tão só, pelo objeto almejado – o dinheiro.

 

5 CONCLUSÃO: FEYERABEND E A SUPERAÇÃO DO ABUSO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE NA CIÊNCIA DO DIREITO

Diante das prévias reflexões, pergunta-se, portanto, qual é, atualmente, a finalidade da ciência, assim como, tendo em vista as afirmações e críticas formuladas às instituições tradicionais (detentoras do poder e controladoras do conhecimento), além das diversas falhas cometidas, oriundas da manipulação e da repetição de conceitos pré-formulados, até que ponto o argumento de autoridade pode e deve ser utilizado, e em que momento este uso irá se caracterizar um abuso, prejudicial, especialmente, ao progresso científico.

Em resposta, tem-se que, apesar de todas as críticas, Feyerabend não desconhece a relevância social da autoridade, chegando a afirmar que, apesar de a autoridade teorética da ciência ser algo menor do que se supõe, aquela (autoridade social) “tornou-se, hoje, algo tão poderoso que a interferência política se faz necessária para assegurar desenvolvimento equilibrado.[lxxix]

Do mesmo modo, o direito não pode prescindir do argumento de autoridade, visto que, conforme já foi tratado antes, ele se serve de diversas aplicações seja como instrumento de fundamentação de decisões jurídicas em sentido lato, seja como meio de prova ou ainda ponto de partida para uma investigação jurídica.

Ainda assim, prossegue o autor, esclarecendo que o conhecimento científico não é detentor de autoridade superior a qualquer outra espécie, considerando seus propósitos tão relevantes quanto os de uma dada comunidade religiosa ou de uma tribo crentes num mito.[lxxx]

Do mesmo modo, o direito não pode se sub-rogar na condição de supraconhecimento ou cosmovisão cujo sacerdote seria o homo juridicus. O direito possui tanta autoridade quanto qualquer outro campo do saber, de modo que a interdisciplinariedade é uma das maiores tendências visando a ruptura desta proposta hegemônica que Feyerabend tanto combateu.

 

6 REFERENCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 21ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 15ª ed. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Ediouro, s/d.

______. Retórica das Paixões. Tradução de Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BACON, Francis. Novum Organon ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultura, 1997.

BUNGE, Mário. La investigación científica. Su estrategia y su filosofía. Tradução de Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1973.

______. La investigación científica. Su estrategia y su filosofía. 5ª ed. Tradução de Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1976.

CANDELAS, Maria Jesus Cansado. Recte et rite. Reflexiones sobre el derecho consuetudinario romano. Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, La Coruña, nº. 10, 2006.

CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi. Rio de Janeiro, nº 1, jan./dez. 2010.

CHALMERS, A.F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993.

DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de: Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

______. ______. Tradução de Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977

______. Consolando o especialista. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.

FONSECA, Ricardo Marcelo. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no brasil: uma análise preliminar (1854-1879). Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija, Madrid, nº. 8, 2005.

FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: fundamentos de hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4ª ed. Tradução de A. M. Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 5ª ed. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 7ª ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2003

LOCKE, John. An essay concerning human understanding and a treatise on the conduct of the understanding. Pittsburgh: C.H. Kay, 1847.

MOREIRA, Nelson Camatta. O dogma da onipotência do legislador e o mito da vontade da lei: a “vontade geral” como pressuposto fundante do paradigma da interpretação da lei. Estudos jurídicos, São Leopoldo, RS, nº. 39, v. 1, jan./jun. 2006.

NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O papel do discurso jurídico no direito pós-positivista: breve análise de decisões do Supremo Tribunal Federal. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2010 (Dissertação de Mestrado em Direito).

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. 1ª ed. 2ª tir. Tradução de: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Lógica Jurídica. 1ª ed. 3ª tir. Tradução de: Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______.; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PLATÃO. Górgias ou A Oratória. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.

POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

RICHTER, Hans. Dada-art and Anti-Art. Londres, 1965.

REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004

ROBLES, Gregório. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. Barueri, SP: Manole, 2005.

RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Argumentação jurídica: Técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

SALERNO, Marilia; ZEMUNER, Adiloar Franco. A importância do Direito Romano na formação do jurista brasileiro. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 27, n.2, jul./dez. 2006.

SAVIGNY, Friedrich Carl Von. Sistema del derecho romano actual. Tradução de J. Mesia e M. Poley. Madrid: F. Góngora y Companía, 1878 T. 1.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 13ª ed. São Paulo: Cortez, 2003

______. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

______. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004

______. A Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

TOULMIN, Stephen E. The uses the argument. Cambridge Universit Press, 2003.


[i] Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Assessora Jurídica da Função Cidade Mãe. Professora da Faculdade Apoio/Unifass. Email: lianaoliva@gmail.com.

[ii] Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-graduando em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito UFBA. Advogado. Ex-Professor substituto da Faculdade de Direito da UFBA.  email: thiagoufba@yahoo.com.br.

[iii] Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-graduando em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA. Advogado. Professor Universitário. email: tiagosfreitas@yahoo.com.br.

[iv] PLATÃO. Górgias ou A Oratória. Tradução de: Jaime Bruna. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973 p. 56.

[v] PLATÃO. Op. cit. p. 56

[vi] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 5ª ed. Tradução de: Artur M. Parreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 563 Segundo Werner Jaeger, o tema do discurso socrático reside na “vontade de chegar com outros homens a uma inteligência, que todos devem acatar, sobre um assunto que para todos encerra um valor infinito: o dos valores supremos da vida”.

[vii] PLATÃO. Op. cit. p. 61.

[viii] ROBLES, Gregório. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005 p. 1.

[ix] ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 15ª ed. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Ediouro, s/d. p. 35.

[x] LOCKE, John. An essay concerning human understanding and a treatise on the conduct of the understanding. Pittsburgh: C.H. Kay, 1847 p. 446.

[xi] LOCKE, John. Op. cit. p. 446.

[xii] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 p. 216-217.

[xiii] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 220.

[xiv] REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004 p. 189.

[xv] Ibidem, p. 181

[xvi] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 297.

[xvii] BACON, Francis. Novum Organon ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultura, 1997 p. 65-66.

[xviii] LOCKE, John. Op. cit. p. 446.

[xix] Ibidem, p. 446.

[xx] Ibidem, p. 446.

[xxi] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 348.

[xxii] REBOUL, Olivier. Op. cit. p. 177.

[xxiii] Exemplo de utilização do argumento de autoridade no Brasil Império, vide: CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, jan./dez. 2010. “Os conselheiros formavam o topo da elite política da época. Tratava-se de um grupo homogêneo de pessoas que não tinha diante de si um auditório diversificado e mal informado que fosse necessário impressionar e convencer pela exibição de erudição. No entanto, lá também, as falas eram marcadas por abundantes citações de autores estrangeiros, além de muitas expressões latinas. O mais curioso é que freqüentemente a mesma autoridade era usada para justificar posições divergentes. Podia acontecer também que a citação fosse feita para sancionar um determinado discurso que, no entanto, seria abandonado na hora do voto sobre questões práticas.”

[xxiv] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Argumentação jurídica: Técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins Fontes, 2004 p. 110 e ss.

[xxv] DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981  p. 40-41.

[xxvi] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Op. cit. p. 113.

[xxvii] ARISTÓTELES. Retórica das Paixões. Tradução de: Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2003 passim.

[xxviii] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Op. cit. p. 114.

[xxix] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 61.

[xxx] GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999. passim.

[xxxi] BUNGE, Mário. La investigación científica. Su estrategia y su filosofía. Tradução de: Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1973 passim.

[xxxii] Ibidem, p. 54.

[xxxiii] POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, passim.

[xxxiv] SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 13.ed. São Paulo: Cortez, 2003, passim. Idem, Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004, passim. Idem, A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004 passim. Idem, A Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, passim.

[xxxv] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003 262 p. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. Título original: The Structure of Scientific Revolutions. Data de publicação original: 1969, passim.

[xxxvi] Ibidem, p. 119. “A regra de validade do argumento de autoridade é esta. X (alguma pessoa ou organização que deve sabê-lo) disse que Y. Portanto, Y é verdade.

[xxxvii] Ibidem, p. 134 “O parecer é a opinião do experto, aplicada. Deve ser fundamentada e contar com provas, confiabilidade e consistência, como requisito de todos os argumentos de autoridade validos (…)”.

[xxxviii] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel.

[xxxix] FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 p. 171.

[xl] PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999. p.105 e ss.

[xli] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: fundamentos de hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 p. 405 e ss.

[xlii] ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005 p. 30.

[xliii] PALMER, Richard E. Op. cit. p. 248.

[xliv] REBOUL, Olivier. Op. cit. p. 100-103.

[xlv] TOULMIN, Stephen E. The uses the argument. Cambridge Universit Press, 2003 p.111-112.

[xlvi] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 348.

[xlvii] DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981 p. 29.

[xlviii] Ibidem, p. 30-31.

[xlix] Ibidem, p. 42-43.

[l] REBOUL, Olivier. Op. cit. p. 2.

[li] GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4ª ed. Tradução de: A. M. Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003 p. 90-91.

[lii] Ibidem, p. 90.

[liii] SALERNO, Marilia; ZEMUNER, Adiloar Franco. A importância do Direito Romano na formação do jurista brasileiro. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 27, n.2, jul./dez. 2006 p. 128.

[liv] CANDELAS, Maria Jesus Cansado. Recte et rite. Reflexiones sobre el derecho consuetudinario romano. Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, La Coruña, nº. 10, 2006 p. 207.

[lv] SAVIGNY, Friedrich Carl Von. Sistema del derecho romano actual. Tradução de: J. Mesia e M. Poley. Madrid: F. Góngora y Companía, 1878 T. 1 p. 92.

[lvi] Ibidem, p. 92.

[lvii] PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit. p. 4 Utiliza-se o conceito de Chaim Perelman que identifica a Retórica com a Teoria da Argumentação, de maneira que ambas teriam como objeto de estudo as “técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”. Nesse mesmo sentido, conferir: PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. 1ª ed. 3ª tir. Tradução de: Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 141 e PERELMAN, Chaim. Retóricas. 1ª ed. 2ª tir. Tradução de: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 57.

[lviii] FONSECA, Ricardo Marcelo. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no brasil: uma análise preliminar (1854-1879). Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija, Madrid, nº. 8, 2005 p. 102.

[lix] CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, jan./dez. 2010. p. 130.

[lx] CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. p. 142.

[lxi] MOREIRA, Nelson Camatta. O dogma da onipotência do legislador e o mito da vontade da lei: a “vontade geral” como pressuposto fundante do paradigma da interpretação da lei. Estudos jurídicos, São Leopoldo, RS, nº. 39, v. 1, jan./jun. 2006 p. 12.

[lxii] NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O papel do discurso jurídico no direito pós-positivista: breve análise de decisões do Supremo Tribunal Federal. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2010 (Dissertação de Mestrado em Direito). p. 79. Esta autora inclusive recorda que os ministros do STF se utilizam de argumentos de autoridade para fundamentar as suas decisões.

[lxiii] CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. p. 143.

[lxiv] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de: Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, passim.

[lxv] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de: Alfredo Bosi. 21ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 59.

[lxvi] FEYERABEND, Paul. Op. cit. p. 60.

[lxvii] FEYERABEND, Paul. Op. cit., p. 25-26 Em nota que integra a Introdução de sua obra, Paul Feyerabend comenta a sua escolha pelo termo ‘anarquismo’, justificando seu uso pela simples coerência de tal desígnio com o uso geral à época. Enfaticamente, expressa sua recusa a apoiar a prática anarquista desenvolvida, que, com raras exceções, segundo ele “pouco se preocupa com as vidas humanas e com a felicidade humana (salvo as vidas e a felicidade dos que pertencem a algum grupo especial); e encerra precisamente o tipo de seriedade e dedicação puritanas”. Em seguida, esclarece sua real preferência pelo termo “Dadaísmo”, ao expor sem negaças seu desejo de ser lembrado como um “dadaísta irreverente” no lugar de um “anarquista sério”, ao tempo que confere ao Dadaísmo valiosos atributos, ao citar que “um dadaísta não feriria um inseto já para não falar em um ser humano. Um dadaísta não se deixa absolutamente impressionar por qualquer tarefa séria e percebe o instante em que as pessoas se detêm a sorrir e assumem aquela atitude e aquelas expressões faciais indicadoras de que algo importante está para ser dito. Um dadaísta está convencido de que uma vida mais digna só será possível quando começarmos a considerar as coisas com leveza e quando afastarmos de nossa linguagem as expressões enraizadas, mas já apodrecidas, que nela se acumularam ao longo dos séculos (‘busca da verdade’; ‘defesa da justiça’; ‘preocupação apaixonada’; etc., etc.)”.

[lxviii] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de: Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977 p. 22-24.

[lxix] Op. cit., p. 293 Observe-se que em nota de esclarecimento (p.323), FEYERABEND remete suas citações acerca do dadaísmo à RICHTER, Hans. Dada-art and Anti-Art. Londres, 1965.

[lxx] Sobre a comparação entre o anarquista epistemológico, o político (religioso) e o cético, vide FEYERABEND, Paul. Op. cit., Cap. XVI.

[lxxi] SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 p. 265.

[lxxii] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977 p. 39.

[lxxiii] CHALMERS, A.F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993 p. 177-178 e 182 Desenvolvendo a idéia de incomensurabilidade, terminologia adotada tanto por Feyerabend quanto por Thomas Kuhn, tem-se que: “O conceito de incomensurabilidade de Feyerabend origina-se naquilo a que me referi no Capitulo III como a dependência que a observação tem da teoria. Os sentidos e interpretações dos conceitos e as proposições de observação que os empregam dependerão do contexto teórico em que ocorram. Em alguns casos, os princípios fundamentais de duas teorias rivais podem ser tão radicalmente diferentes que não é nem mesmo possível formular os conceitos básicos de uma teoria nos termos da outra, com a conseqüência de que as duas rivais não compartilham das proposições de observação. Nestes casos não é possível comparar logicamente as teorias rivais. Não será possível deduzir logicamente algumas das conseqüências de uma teoria dos princípios de sua rival para propósitos de comparação. As duas teorias serão incomensuráveis (…) Além do mais, a luz de sua tese sobre a incomensurabilidade, ele rejeita a idéia de que poderá existir um argumento decisivo a favor da ciência sobre outras formas de conhecimento não comensuráveis com ela. Caso se deva comparar a ciência com outras formas de conhecimento, será necessário investigar a natureza, objetivos e métodos da ciência e destas outras formas de conhecimento.”

[lxxiv] FEYERABEND, Paul. Op. cit. p. 40.

[lxxv] FEYERABEND, Paul. Consolando o especialista. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1979. p. 245-246 Sobre o assunto, Paul Feyerabend posiciona-se enfaticamente contra as ambigüidades das prescrições metodológicas: “Mais de um cientista social me assinalou que agora, afinal, aprendeu a transformar seu campo em “ciência — querendo dizer com isso, naturalmente, que aprendeu a aperfeiçoá-lo. De acordo com essa gente, a receita consiste em restringir a crítica, reduzir a um o número de teorias compreensivas e criar uma ciência normal que tenha por paradigma essa teoria Devem impedir-se os estudiosos de especular ao longo de linhas diferentes e os colegas mais irrequietos precisam ser induzidos a conformar-se e a ‘realizar trabalho sério’ ”..

[lxxvi] FEYERABEND, Paul. Op. cit. p.111-112.

[lxxvii] CHALMERS, A.F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993 p. 177.

[lxxviii] FEYERABEND, Paul. Consolando o especialista. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Editora Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1979. p. 247.

[lxxix] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de: Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977 p. 337.

[lxxx] FEYERABEND, Paul. Op. cit. p. 454.

Luciano de Oliveira Souza Tourinho[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução.  2 Institucionalização do medo: a seletividade criminal.  3 O labelling approach e o mito do favelado criminoso.  4 Considerações finais.  5 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O medo reflete um sentimento humano contra a força da racionalidade. Essa sensação, somada à insegurança social, constitui fator preponderante à dualidade negativa que conduz à estigmatização de determinadas coletividades. Nesse sentido, muitos canais de comunicação midiática exercem grande influência ao manipular dados estatísticos, ampliando, conforme seus interesses, as percepções da sociedade em relação aos fatores criminológicos.

Esses determinantes são elementos condutores ao etiquetamento social, quando os grupos alcançados de forma privilegiada pela distribuição de renda passam a considerar os moradores de favelas, verdadeiros guetos, com uma visão distorcida e equivocada da realidade, considerando-os como criminosos potenciais.

Nesse sentido, pode-se perceber um retorno crescente do determinismo, notadamente, com influência dos estudos cientificistas de Cesare Lombroso, incutindo na sociedade uma ideia de predeterminação ou predisposição ao crime.

Essa nova perspectiva, ao ser considerada como uma vertente de resgate do determinismo antigo, com incrementos próprios da sociedade atual, possui elementos estruturantes do cientificismo lombrosiano, a partir da consideração das características dos delinquentes como fatores determinantes à prática de crimes, alcançando como ponto de chegada o determinismo social. Associa-se tais desenvolvimentos para o nascimento do labelling aproach[ii], numa clara estigmatização de determinados grupos sociais, como ora se afirma.

O objetivo do presente estudo é demonstrar a relação do mito do favelado criminoso como consequência de um processo de rotulação teorizado pelo labelling approach, a partir de uma retomada da perspectiva cientificista lombrosiana, com efeitos deterministas biológicos e, consectariemente, sociais.

Para melhor compreensão do estudo que ora se apresenta, a abordagem será realizada em três momentos distintos, no entanto, interdependentes: numa primeira ocasião, discutir-se-á a institucionalização do medo como critério determinante a uma seletividade social, ao que se denominará de “clientela penal” em potencial. Será apresentada a relação entre o poder midiático e a crescente sensação de insegurança da sociedade, o que permitirá, por certo, a contextualização do segundo período. Aqui, o enfoque será sobre o determinismo científico com gênese lombrosiana, e sua relação com a teoria do etiquetamento social. Nesse sentido, uma incursão sobre os ensinos da Escola Positiva da Criminologia se fará presente, a fim de permitir um melhor entendimento acerca da influência nas esferas legislativa e judiciária do método científico transportado por Cesare Lombroso das ciências naturais para o campo do Direito.

As considerações finais serão construídas a partir da análise de toda a fundamentação teórica do texto, quando se possibilitará uma melhor percepção da correlação entre a teoria suscitada e o resultado consequencial com efeito negativo de mistificação de uma elaboração social de senso comum, e com relação evidente ao cientificismo adotado por Cesare Lombroso.

 

2 INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MEDO: A SELETIVIDADE CRIMINAL

A pós-modernidade é marcada pela sensação de temor que permeia as relações sociais. Esse sentimento decorre da violência e insegurança, valores negativos alicerçados nas estruturas arenosas construídas por interesses ilegítimos e de natureza egoística. A ação midiática, por excelência, é sujeito responsável pela alimentação e disseminação do medo, direcionando a sociedade, de forma manipuladora, ao planejamento mecanizado de suas atitudes, e conduzindo ao desenvolvimento de normas penais simbólicas, próprias de uma coletividade amedrontada pela criminalidade e violência urbana.

Os juízos paralelos da mídia eletrônica e da imprensa podem ser considerados como meios com grande poder influência, por vezes, conduzindo a condenações equivocadas. Nessa esteira de desenvolvimento cognitivo, Eugenio Raul Zaffaroni (2001, p. 23) ressalta que os meios de comunicação de massa são utilizados como instrumentos de excitação da indignação moral, com a utilização de uma publicidade reprodutora da violência. A partir dessa concepção, são criados estereótipos capazes de incutir na sociedade uma percepção distorcida de determinados grupos.

A criminalidade é abordada, por diversos meios de comunicação, sem qualquer responsabilidade, com informações estatísticas manipuladas, seja por desconsideração de determinados dados, seja pela alteração desonesta de tantos outros.[iii] Ao abordar a relação entre o crime e o medo social, Leonardo Sica (2002, p. 37) aduz que

[…] não é necessária estatística para afirmar que a maioria das sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da insegurança. O roubo com traço cada vez mais brutal, ‘seqüestros-relâmpagos’, chacinas, delinqüência juvenil, homicídios, a violência propagada em ‘cadeias nacional’, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares. Dados estatísticos e informações distorcidas ou mal entendidas sobre a ‘explosão da criminalidade’ criam um estado irrefletido de pânico, fundado em mitos e ‘fantasmas’.

Diante das informações distorcidas sobre a escalada da criminalidade, a vulnerabilidade é a sensação que impera nos diversos ambientes, produzindo essa sensação de  desespero e de psicose social, quando a sociedade se coloca num verdadeiro estado de guerra. A reprodução da violência se inicia no momento da estigmatização, o que, por certo, será abordado em momento posterior. Nesse sentido, a consideração da insegurança conduz à permissibilidade de utilização de mecanismos neutralização, ainda que numa espécie de prevenção, possibilitando a adoção de diversas medidas de natureza arbitrária.

O medo é sentimento natural do homem, que o afasta da racionalidade e cega-lhe o discernimento. Ainda assim, sua presença é absorvida como um verdadeiro ritual, sendo repetida no comportamento das coletividades. Como fator natural que é, possui um objeto determinado, mas, multiplicado e vivido socialmente, produzindo angústia, diante da qual o perigo se torna tanto mais temível quanto menos claramente identificado. Esse sentimento, sob a ótica da individualidade, caracteriza-se por um aspecto que só se revela com clareza em nível coletivo: o elo entre o medo e angústia de um lado, culmina na agressividade, de outro. Essa transição do medo e da angústia, no plano singular para o coletivo, resulta numa neurose que conduz às explosões violentas ou perseguições de grupos, com a vitimização coletiva e a demonização dos mais fracos (SICA, 2002, p. 37-45).

Observa-se, notadamente, a institucionalização da cultura do medo a partir da exploração da violência como dados manipuláveis. (BARRY, 2003) Nesse sentido, a sociedade passa a ser direcionada à ruptura da estabilidade e à dualidade divergencial, construindo um cenário onde contracenam a vítima, rica ou economicamente favorecida, e o criminoso, pobre e miserável, estigmatizado pelos olhares de medo e de acusação, numa determinação social que toma por fundamento elementos identificadores do determinismo biológico. Isso se explica na medida em que são associadas a essas características as diversas contextualizações e molduras sociais marginalizadas. Essa abordagem será retomada em seguida, quando se oportunizará um estudo específico sobre o cientificismo lombrosiano.

 

3 O LABELLING APPROACH E O MITO DO FAVELADO CRIMINOSO

A teoria do labelling approach ou etiquetamento social é recente na história da criminologia, firmando-se em meados dos anos sessenta. Seus fundamentos são pautados na rotulação de determinados indivíduos ou grupos sociais como criminosos potenciais (BARATTA, 1997). Dessa forma, não há que se falar em realidade ontológica, mas dos valores atribuídos objetivamente, levando-se em consideração as construções de conceitos sobre uma coletividade.

Em verdade, há uma seletividade histórica em função dos interesses de grupos dominantes, criando uma “clientela penal”, o que se reforçou ainda mais a partir do desenvolvimento dos estudos lombrosianos acerca do criminoso.

O criminólogo crítico Alessandro Baratta (1997, p. 63) ressaltou que o sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuídos, para constrangê-los a aceitar a moral do trabalho. No mesmo sentido, ensina Cezar Roberto Bitencourt (1999, p. 26) que a desintegração social facilita a manutenção da verticalidade da sociedade, impedindo a integração das classes baixas e concorrendo para a sua marginalização.

Aprofundando sua concepção, Alessandro Baratta (1997) assevera que o sistema penal é altamente seletivo, seja no que diz respeito à proteção dos direitos humanos, dos bens e interesses sociais, seja em relação ao processo de criminalização, seja no que tange ao recrutamento da clientela, o que fortifica a ilação de que o sistema punitivo é absolutamente inadequado para atuar de maneira útil e saudável na sociedade, conforme é sempre declarado no discurso oficial.

Discurso esse que conduz à ideia de que na favela se concentram os criminosos, conferindo aos ocupantes desses aglomerados populacionais a etiqueta ou rótulo depreciativo. Tais fatores servem como elementos causais de uma violência silenciosa, que atingem proporções descomunais. A vitimização das classes sociais que alcançam, em determinados momentos, a situação de miserabilidade, passa a ser visualizada como ameaça e origem da criminalidade, e a favela, como celeiro da criminalidade. Em posição crítica a essa situação, salienta Yves Pedrazzini (2006, p. 38):

Quando damos mais destaque à violência da urbanização que a violência urbana, questionamos a relação entre violência e cidade, assim como sua não-relação ou ruptura em certos casos urbanos. Ao lado de indivíduos violentos, existem cidadãos que trabalham, educam seus filhos, lutam pacientemente contra a máquina de moer gente.

Há uma generalização do estereótipo do favelado, numa sinonímia superficial, imputando-lhe um caráter criminoso, quando, contraditoriamente, é vítima da marginalização, uma das formas mais degradantes da violência. A pior consequência que pode surgir dessa rotulação é o ajustamento das condutas do estereotipado a esse papel, passando a ser absorvido pela criminalidade.

A visão determinista do etiquetamento conduz, inevitavelmente, a um dogma reducionista, causando estigmas que maculam as relações sociais, de modo a provocar uma metástase criminal.

Nesse sentido, retoma-se aquela concepção determinista lombrosiana, oportunidade em que se tenta levar ao âmbito do Direito uma concepção científica biológica, o que deixa claro, quando afirma que “a antropologia quer as cifras e não as descrições isoladas e gerais, sobretudo quando elas devem se aplicar à psiquiatria e à medicina legal”. (LOMBROSO, 2001)

Ao considerar um estudo acerca do cientificismo apresentado por Lombroso, Stephen Jay Gould (1991, p. 124) explicou que o mencionado cientista tentou identificar os elementos da criminalidade a partir de dados etnológicos, o que, por sua vez, acabou gerando uma ideia estigmatizante de determinados grupos. Assim, as características sociais de algumas pessoas foram suficientes para a criação de uma perspectiva determinista, o que se fez, diga-se, não apenas com a utilização dos caracteres naturais, que, àquela época, já fundamentava um determinação biológica para o crime, mas com um caminho de etiquetamento de coletividades:

Entre os estigmas de Lombroso também figurava um conjunto de traços sociais. Entre eles, deu especial destaque aos seguintes: 1) A gíria dos criminosos, uma linguagem própria com um elevado número de onomatopéias, à semelhança da fala das crianças e dos selvagens (…);2) A tatuagem, que reflete tanto a insensibilidade dos criminosos com relação à dor como seu gosto atávico pelos ornamentos. (GOULD, 1991, p. 130)

Retornando a essa concepção cientificista, Stephen Jay Gould (1991, p. 135-136) afirma que Cesare Lobroso reforçou o determinismo biológico, desconsiderando, no entanto, alguns fatores de natureza social, como educação e condições econômicas, pois tais instituições nada mais seriam do que simples reflexos da natureza humana construída por elementos naturais.

Apesar da origem biológica nesse cientificismo, os estudos lobrosianos conduziram a considerações criminógenas a partir de percepções visuais, com a observação de características externas presentes em determinados grupos.

Ao transpor o método científico dedicado às ciencias naturais para o estudo da criminalidade, Cesare Lombroso apontou para o determinismo biológico, elaborando suas conclusões a partir de características aparentes, como especificidades dos olhos, das orelhas, do nariz, da boca, do crânio, dentre outros elementos identificadore s de raça.

Tais ilações conduziram Cesare Lombroso ao status de um dos representantes da Escola Positiva do Direito Penal, fundada numa concepção científica. Aqui, o crime é percebido como desvio do padrão da normalidade, como uma verdadeira patologia. A fase determinista biológica desta Escola é percebida nos estudos de Lombroso, o que se intensificou posteriormente, quando do aparecimento de grupos racistas, perpetuando-se até os dias presentes, seja de forma mascarada, ou mesmo de maneira explítica. (SOUZA, 2001, p. 480)

Ao abordar, de forma crítica, a Escola Positiva do Direito Penal, João Paulo de Aguiar S. Souza (2001, p. 481-482) contextualiza o tema numa perspectiva histórica, informando o positivismo criminológico tentou estabelecer um novo paradigma para as ciências criminais, ao trazer para este microssistema o embasamento científico das ciências naturais. Mais informações são apresentadas nos estudos do mencionado autor, o que, destarte, fica esclarecido em suas palavras:

Inspirado nesta fundamentação metodológica, surge na Europa, também no século XIX, o positivismo criminológico, com a pretensão de fornecer a explicação para o fenômeno criminal, conforme o paradigma etiológico de matriz criminológica. Esta perspectiva analisa a criminalidade segundo uma relação de causa e efeito, pressupondo uma noção ontológica de crime, preexistente à definição legal e à atuação concreta dos meios de persecução penal, de forma a ignorar não apenas a função constitutiva do legislador, mas também todos os aspectos de seletividade da criminalização secundária. No caso da teoria sob enfoque, sob o pretexto da análise científica dos criminosos, através de uma ‘rigorosa metodologia’ argumento que permite a deslegitimação dos seus críticos -constrói-se a imagem do criminoso como um anormal, normalmente através da consagração de argumentos racistas, fomentando um discurso de limpeza e higiene, onde se visa erradicar o ‘inimigo’, mesmo que a custo de sua eliminação física. (SOUZA, 2001, p. 481)

Essa perspectiva gerou efeitos de diversas naturezas, principalmente nos meios decisórios estatais, o que se percebia quando da aplicação de penas para aqueles que fossem considerados criminosos. Se se tratava de um situação patológica, o criminoso deveria ser corrigido, utilizando-se, para tanto, punições indeterminadas, seja em sua natureza, seja em sua gradação.

Nesse sentido, Stephen Jay Gould (1991, p. 124) afirma que os estudos lombrosianos desenvolvidos, inclusive, pelos seguidores de Cesare Lombroso, pugnavam pela indeterminação da sentença, o que, de forma conclusiva, decorre da realidade biológica adotada como parâmetro identificador do personagem criminoso, inimigo da sociedade.

Para João Paulo de Aguiar S. Souza (2001, p. 482), a análise do fenômeno criminológico a partir de um paradigma epistemológico fundado na verificação dos aspectos físicos humanos constitui uma esteira de pensamento reducionista. Tais ideias possibilitam o caminhar da compreensão de inúmeras decisões que agregam valores deterministas na atualidade, não sendo incipiente afirmar que estão, bem verdade, impregnadas dos resquícios deterministas.

É nitente que a Escola Positivista, alicerçada nos argumentos científicos lombrosianos, acabou legitimando um sistema penal seletivo, ao que se nominou anteriormente como “clientela penal”. Numa tentativa de instruir a criminologia com elementos originários das ciências naturais, criou-se um cientificismo fundante de um sistema repressivo: “Desta forma, encontra-se lançadas as premissas da Escola Científica, encerrando a explicação da criminalidade na figura do ‘anormal’, para cuja gênese concorrem fatores biológicos, físicos e sociais.”  (SOUZA, 2001, p. 487-488)

Um processo de vitimização social pode ser observado nas elucidações de Stephen Jay Gould (1991, p. 146), quando assevera que essa estigmatização social que encontra sua gênese no deterministo científico lombrosiano serve como elemento propulsor de uma vitimização social, o que, deveras, poderá conduzir a situações reais de criminalização. Em outras palavras, apresenta-se as causas como efeitos a serem repelidos com a utilização de um microssistema punitivo:

As populações humanas apresentam uma grande variedade de comportamentos; o simples fato de alguns manifestarem certa conduta e outros não, não constitui prova alguma de que o cérebro dos primeiros padeça de alguma patologia específica. Devemos concentrar-nos no desenvolvimento de uma hipótese infundada quanto à violência de alguns — hipótese que segue a filosofia determinista de culpar a vítima — ou devemos tentar eliminar, antes de mais nada, a opressão que ergue guetos e mina o espírito de seus habitantes desempregados? (GOULD, 1991, p. 146)

Resta evidenciada a crítica de Stephen Jay Gould ao determinismo lombrosiano, afastando da criminologia a ótica cientificista de tais desenvolvimentos teóricos. A estigmatização de grupos que vivem em condições específicas de marginalização, com características identificadoras, pode ser concebida como resultado de uma aplicação incoerente do conhecimento científico no Direito.

As inferências de tal situação, como ora afirmado, produzem seus efeitos em dois sentidos ou esferas distintas, quais sejam: legislativa e judiciária. Dessa forma, o determinismo lança seus tentáculos nas funções do poder, numa clara tentativa de legitimar situações de exclusão social e, consectariamente, de estigmatização de grupos. Nesse sentido, revela João Paulo de Aguiar S. Souza (2001, p. 492) que,

[…] ao ignorar a função constitutiva do legislador, o positivismo criminológico fixa uma característica importante, pois evita a discussão sobre a legitimidade das leis incriminadoras. A conclusão é lógica: se o delito é natural, e o legislador, no máximo, faz apenas declará-lo, não há sentido em discutir o mérito das leis, pois seria contrariar a própria natureza das coisas. Tal concepção permite a consolidação da irracionalidade do sistema punitivo, pois as incriminações são aceitas sem qualquer tipo de questionamento, proporcionando a expansão da autoritariedade, em clara violação a direitos individuais assegurados pela Constituição.

Mais uma vez, apresenta-se como clara a influência do cientificismo lombrosiano na atualidade, o que se faz presente na atividade legislativa, com a criação de leis segregadoras, bem como quando da consideração no plano da concretude realizada pelo julgador, quando da aplicação daquele instrumento normativo.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência e a sensação de insegurança, conforme demonstração de Barry Glassner (2003) provocam alterações profundas nas relações sociais. Tais sentimentos são potencializados pela ação midiática, com o objetivo de alcançar os interesses da ordem do capital, causando, deveras, uma celeuma na sociedade. Nesse contexto estão inseridas as idéias rotulares equivocadas de marginalização, quando se considera criminoso o indivíduo, tomando como fator determinante a sua habitação em favela.

As causas do fenômeno criminoso crime são diversas, não podendo ser elevado à categoria de prioridade o determinismo social, como já afirmaram diversos teóricos apontados anteriormente. Dessa forma, é possível asseverar que a consideração do favelado como criminoso potencial é, no mínimo, equivocada, apresentando, na verdade, idéias preconceituosas e, sobretudo, estigmatizadoras.

A Escola Positivista, alicerçada nos fundamentos teóricos lombrosianos, caracterizou-se pela sua cientificidade determinista, inicialmente de natureza biológica e, mais tarde, com traços sociais, como bem se observa no cenário hodierno.

A apresentação do método científico ao Direito Penal trouxe consigo elementos que serviram como forma de legitimação da seletividade e do etiquetamento social. Ainda que sua gênese seja encontrada nas ciências naturais, o determinismo fincou raízes das ciências sociais e, ao fazê-lo na realidade jurídica, serviu, inclusive, como orientação da atividade legislativa, bem como na judicante.

A uma, em razão da elaboração de instrumentos normativos de caráter repressivo destinados a grupos específicos, o que, destarte, atende à lógica nascente no ideal liberal: leis estigmatizantes, criadoras de “rótulos sociais” e, claramente, segregadoras.

A duas, pela aplicabilidade de tais comandos pelo órgão julgador numa perspectiva enrijecida, quando da consideração de elementos deterministas, ainda que numa vertente indireta ou inconsciente, com a aplicação de penas mais severas ou a não oportunidade de obtenção de determinados benefícios legais em função da inserção do agente em grupos marginalizados.

5 REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999.

BARRY, Glassner. Cultura do medo. Brasília – DF: Francis. 2003.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991

HERRERO, César Herrero, Criminologia: Parte General y Especial, Madrid: Dykinson, 1997.

LOMBROSO, César. O homem delinqüente. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editor, 2001.

PEDRAZZINI, Yves. A violência das cidades. Tradução de Giselle Unti. Petrópolis: Vozes, 2006

SICA, Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

SOUZA, João Paulo de Aguiar S. O positivismo criminológico e a segregação urbana na percepção da criminalldade. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano III, N° 3, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.


[i] Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela Faculdade Independente do Nordeste. Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Independente do Nordeste. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Graduado em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste. Coordenador adjunto do Curso de Direito da Faculdade Guanambi. Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre a Criminalidade de Guanambi. Docente de Direito Penal e Prática Penal na Faculdade Guanambi. Docente de Direito Penal e Legislação Penal Especial da Faculdade Independente do Nordeste – FAINOR. Professor de Pós-graduação latu sensu da Faculdade Guanambi.

[ii] A teoria do labelling aproach surgiu nos Estados Unidos da América, na década de 60, sendo considerada como corrente criminológica que se aproxima à criminologia radical de natureza marxista. O delito e o delinquente aparecem como consectários de um processo incriminatório construído pelos “poderes dominantes e projetado, quase que exclusivamente, sobre as classes sociais desfavorecidas, a cujos membros se impõe, por interesses, o rótulo de delinquentes por força de critérios criminalizantes impostos, unilateralmente, pelos que exercem a capacidade de decisão. Isto tudo porque estes marginalizados não se submetem ao poder estabelecido, à sua cultura, aos seus interesses.” (HERRERO, 1999, p. 299) (Tradução de livre)

[iii] Nesse sentido, imperioso é observar que o levantamento de dados estatísticos indica um caminho legítimo para a construção e comprovação de determinadas teses. Todavia, deve-se ressaltar que o tratamento desses dados, por vezes, é realizado de forma a manipular a formação da opinião da sociedade, sem qualquer compromisso com a pesquisa. Nesse sentido, contribuição se tem na obra de Antonio Carlos Gil (2002, p. 101), ao informar que “a estatística por si só não possibilita a interpretação dos resultados. Isso exige o concurso de fundamentação teórica. Isso significa que o pesquisador deverá estar habilitado a proceder à vinculação entre os resultados obtidos empiricamente e as teorias que possibilitam a generalização dos resultados obtidos.”

A METODOLOGIA METAFÍSICA DO DIREITO

Publicado: novembro 25, 2014 em Artigo

Marcos Paulo Ribeiro[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Metodologia de pesquisa. 2.1 A pesquisa jurídica. 2.2 O bem jurídico. 2.2.1 O bem jurídico de interesse difuso. 3 A metafísica de Heidegger. 3.1 O nada. 3.2 O ente e o ser-aí. 3.3 Temor e angústia. 4 O direito suspenso no nada. 5 Conclusões. 6 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa científica, qualquer que seja a área do conhecimento, expõe o pesquisador a severos desafios, quer sejam de ordem logístico-temporal, quer sejam de estritamente de ordem técnica. Dentre eles (os desafios) destacam-se os imbróglios de ordem metodológica, que vão desde a adequação da linha de pesquisa a determinado grupo ou conflito de interesses entre orientador e orientandos, até a delimitação precisa de seu corpus ou corpora, se se tratar de conflitos entre grupos de pesquisadores.

Na pesquisa jurídica, em específico, asseveram-se conflitos presentes em outras ciências sociais, qual seja, a delimitação de sua atividade e de seus objetos de pesquisa. Constantemente (ainda hoje!) confrontados sob (e por sobre) o paradigma tradicional da pesquisa nas ciências naturais – onde se chega ao extremo de questionar o caráter científico  da pesquisa em ciência social – o pesquisador do Direito tem desafios adicionais interna corporis, uma vez que prestigiados círculos acadêmico-jurídicos, de modo acrônico e confortavelmente inerte, questionam a legitimidade da pesquisa de campo em Direito.

Esse confuso e complexo multiverso de (in)definições trazem à baila a perplexa necessidade do constante repensar a atividade de pesquisa jurídica, quer seja por seu questionamentos doutros ramos da ciência, quer seja por questionáveis incongruências apresentadas pela academia jurídica de linhagem mais tradicionalista e ortodoxa e, por que não, limitada e limitadora. Tais questionamentos e incongruências comumente direcionam-se ao cerne da pesquisa, qual seja, seu objeto. E quão mais bem definido estiver um objeto, mais robusta serão suas bases epistemológicas e principiológicas e, por conseguinte, mais desenvolto e consistente apresentar-se-á diante da beligerância (pretensamente) acadêmico-científica. Destarte, propõe-se trazer a baila o magistério filosófico de Martin Heidegger.

As concepções metafísicas de Heidegger, num misto de temor e angústia tipicamente heideggerianos, apresentam desconcertantes teoremas, provocações e, por que não, axiomas sobre o ser, sobre o nada e sobre o  ente. A partir desses pressupostos e bases filosóficas que o presente artigo busca, como objetivo inicial e certamente inacabado, (re)discutir a metodologia da pesquisa jurídica.

 

2 METODOLOGIA DE PESQUISA

Umberto Eco, em sua obra “Como se faz uma tese” (ECO, 2007), conceitua que a pesquisa deve, a um só tempo, debruçar-se sobre um objeto reconhecível e definido, buscar dizer coisas que não tenham sido anteriormente ditas do mesmo modo, ser útil aos outros e, por último e não menos importante, “deve fornecer os elementos para a confirmação e para a rejeição das hipóteses que apresenta e, portanto, deve fornecer os elementos para uma possível continuação pública. ” (ECO, 2007, p. 52-5).   Este é o paradigma, segundo autor, estabelecido e estabilizado para a promulgação do status de “científico” para determinada pesquisa sob a ótica tradicional das ciências naturais. Isto posto, será esta a abordagem exordial das considerações metodológicas do presente trabalho.

Metodologia de pesquisa assim seria toda a contínua ação ordenada e coordenada de atos, processos e procedimentos, quando da pesquisa de determinado objeto, cujo objetivo final é conferir concatenação lógica (por) entre todas as etapas da pesquisa, bem como revesti-la da cientificidade necessária para que seja, quando de sua publicação, ungida com o condão de científica. Seara de difícil manejo e que exige iniciação para o profícuo manejo de seu cabedal de instrumentos, a metodologia de pesquisa é disciplina de reflexão obrigatória para a concepção, desenvolvimento e maturação de qualquer tese (utilizando-se aqui o vernáculo em sentido lato).

Nesse diapasão, exsurge o exordial grilhão da problemática da pesquisa em ciências sociais: os objetos de pesquisa dessas ciências, em regra, não apresentam o caráter de exatidão que normalmente os objetos das ciências naturais trazem em seu bojo. Na persecução metodológica à cientificidade, se é questionado (ou questionável) a exatidão do objeto em si, toda a pesquisa dele decorrente tornar-se-á passível de questionamentos e indefinições, perdendo, a priori, sua cientificidade.

 

2.1 A pesquisa jurídica

Uma vez que o Direito encontra-se inserido na seara das ciências sociais, por conseguinte, a pesquisa jurídica encontra-se à mercê dos mesmos questionamentos paradigmáticos propulsionados pelo modelo tradicional de pesquisa calcado no método das ciências naturais. Dessa sorte, ao empreender uma pesquisa jurídica, deve o pesquisador revestir-se não apenas dos habituais cuidados de ordem estritamente técnica mas, também, de todo o arcabouço metodológico de que possa lançar mão, haja vista a (necessária) expectativa do meio acadêmico, que anseia em receber produtos calcados na cientificidade.

Doutra banda, o paradigma tradicional não apenas se mostra inadequado a certos vértices da pesquisa jurídica e, por conseguinte, social, como se mostra menos eficiente de per si para interagir e responder aos desafios da pós-contemporaneidade, da sociedade dos riscos, da sociedade da informação, enfim, dos tempos atuais, complexos até mesmo de serem precisa e unicamente definidos. Aponta isso, com solidez e desenvoltura únicas, o magistério de Boaventura Santos, quando diz:

Quando, ao procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto, olhamos para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos que nos precederam- dede o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos, até ao próprio século XIX – não são maios que uma pré-história longínqua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX, […] Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar (SANTOS, 2006, p.13-4).

Assim, muito mais do que se preocupar com a legitimidade científica de seu produto, o pesquisador jurídico deve, também, despertar para a consciência de que o paradigma tradicional é, nada obstante toda a precursão ancilar, extremamente útil e proveitosa que foi no curso da construção dos pilares do pensamento científico ocidental, insuficiente para interagir com o mundo social, o mundo humano, o mundo da complexidade.

Assim, ao realizar uma pesquisa, define-se e persegue-se um objeto, alvo de construta e metodologicamente prudente problematização que, ao final da jornada pretendida pelo pesquisador, frutificará, com cientificidade, conclusões e/ou questionamentos úteis, passíveis de serem continuados e destinados ao bem comum. Nesse sentido, a pesquisa em Direito tem um objeto por excelência, posto que é cerne de grande parte das reflexões, problematizações e incertezas: o bem jurídico.

 

 2.2 O bem jurídico

Em síntese apertada, bem jurídico é toda coisa que possa ser objeto do Direito. Logo, todo objeto jurídico ou do Direito que possa ser objeto de pesquisa jurídica, em princípio, tratar-se-á de um bem jurídico.  Tratar do bem jurídico é tratar, em cadência semântico-lógica, do objeto de estudo da pesquisa em Direito. Logo, se o primeiro desafio é tornar sólido – ou mesmo fazer percebido e entendido como sólido –  o objeto de pesquisa, deve o cientista jurídico engajar seus esforços na consistência da delimitação/delineação do(s) bem(s) jurídico(s) que serão problematizados em sua pesquisa. Ilustra muito bem esse ponto o Prof. Gianpaolo Smanio, quando afirma que

O Direito é um objeto cultural, criado pelo homem e dotado de um sentido de conteúdo valorativo. […] A ciência do Direito é uma ciência histórico-cultural que tem por objeto a experiência social, enquanto estão normativamente, desenvolve-se em função de fatos e valores para a realização da convivência humana portanto, o direito é dinâmico e não estático, configurando uma sistema aberto e não fechado. Assim, a dificuldade da conceituação do bem jurídico deve ser vista não como uma impossibilidade, mas como uma decorrência da própria natureza do Direito. (SMANIO, 2000, p. 92)

Nesse sentido, Smanio reforça o entendimento de que, se nas ciências sociais, como gênero, a dificuldade de delimitação (através do paradigma tradicional, pelo menos) de seu objeto de pesquisa é tarefa hercúlea, na pesquisa jurídica tal dificuldade não só é percebida como uma constante apenas, mas como uma constante intrínseca e essencial ao próprio pensamento jurídico, ao prórpio dizer o Direito.

Nos tempos atuais, em que a percepção da complexidade das relações sociais exige, ab initio, a interação com o modus pensandi do cientista social, que aprende como limite a não ter limites, haja vista que a lógica de seu pensamento não se esgota em “zeros e uns” informáticos, e sim se direciona ao espírito humano, incessantemente renovável numa relação autopoiética que lhe é peculiar, certos bens jurídicos demonstram essa renovação e esses desafios, quer seja na medida em que são marcos de renovação axiológica e científica, quer seja pela peculiar complexidade (dentro de um cosmos já complexo) de sua compreensão situacional.

Todo bem jurídico, direta ou indiretamente, resulta no delineamento de um ou mais direitos. Assim, o bem “vida” provoca o “direito à vida”. O bem “intimidade” resulta no “direito ao sigilo”. E como o direito é termômetro da vida em sociedade, tão mais complexas sejam as relações sociais, mais complexas serão as percepções dos bens jurídicos e, por conseguinte, as relações e conflitos entre direitos. Ao direito à vida opõe-se, em certas situações, o direito à legítima defesa. Salva-se a vida eliminando-se outra vida. Nesse iter social, certas soluções de convivência geram problemas de convivência, que demandam novas soluções que resultaram, invariavelmente, em novos problemas.

Assim, em apenso às dificuldades peculiares na definição do bem (objeto) jurídico, surge problemática adicional, que é a da titularidade dos bens jurídicos. Porquanto trate essencialmente de relações sociais, entender o objeto restará incompleto sem o entendimento dos sujeitos envolvidos, ou seja: quem detêm esse objeto, quem com ele interage, quem dele necessita, em que medida necessita, etc. Isto porque parte da complexidade das relações sociais não se limita apenas nos objetos, mas nas relações entre eles e seus sujeitos, atuais ou mesmo potenciais.

Nesse sentido, estabelecem-se, inicialmente, três parâmetros de titularidade de direitos: individual, coletiva ou difusa. Destaque-se que os parâmetros de titularidade foram percebidos pela ciência de modo gradual e ordenado, na justa medida em que as relações sociais demandaram novas percepções, pela crescente complexidade das necessidades e dos conflitos. Para o alcance das finalidades inicialmente pretendidas pelo presente trabalho, será elencado o paradigma dos bens jurídicos de interesse difuso como mediador do diálogo entre pesquisa, direito e metafísica.

 

2.2.1 O bem jurídico de interesse difuso

A linha conceitual que define as margens entre os bens individuais, coletivos e difusos é sempre tênue e, por vezes, doutrinariamente promíscua. Assim, a boa doutrina de Bobbio indica que

Os direitos da nova geração, como foram chamados, que vieram depois daqueles em que se encontraram as três correntes de idéias do nosso tempo, nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do aumento do progresso tecnológico. (BOBBIO, 2004 p.209)

Para consolidar o norte conceitual acerca dos bens de interesse difuso, o bom magistério de Grinover arremata, quando diz que :

O outro grupo de interesses metaindividuais, o dos interesses difusos propriamente ditos, compreende interesses que não encontram apoio em uma relação-base bem definida, reduzindo-se o vínculo entre as pessoas a fatores conjunturais ou extremamente genéricos, a dados de fato frequentemente acidentais e mutáveis: habitar a mesma região, consumir o mesmo produto, viver sob determinadas condições sócio-econômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc. Trata-se de interesses espalhados e informais à tutela de necessidades, também coletivas, sinteticamente referidas à qualidade de vida. E essas necessidades e esses interesses, de massa, sofrem constantes investidas, frequentemente também de massas, contrapondo grupo versus grupo em conflitos que se coletivizam em ambos os pólos. (GRINOVER, 1984, p.30-1)

Assim, se o debate acerca de bens (objetos) jurídicos é acirrado em sua essência, percebe-se que, em determinadas situações, o aumento da complexidade das relações sociais, na medida em que são provocadoras e resultantes de  expectativas, conflitos e necessidades, eleva também a dificuldade sobre a delimitação dos próprios objetos. Por prudência, e até mesmo cautela, foram expostas duas trilhas doutrinárias convergentes acerca dos bens de interesse difusos que, apesar de não colidirem de modo imediato, já demonstram alguns pontos, que serão tomadas a partir de agora como conclusões preliminares, a saber:

[…] à medida que são mais complexas as relações sociais circundantes dos objetos, menso seguras e sólidas tendem a ser as definições das relações-base entre os bens envolvidos;

[…] quão menos sólidas são essas relações-base, mais difícil será obter definições diretas dos bens/objetos;

[…] interessante contraponto com relação à lógica tradicional do conceito de ciência, mais uma vez demonstrando a viragem do novo paradigma (Boaventura, 2004), uma vez que é o avanço tecnológico – oriundo dos processamentos e disparates do mundo das ciências exatas – que termina por oferecer complexas tramas de relações sociais, gerando conflitos que a própria exatidão dos números e da tecnologia têm que se socorrer da compreensão das ciências sociais para apresentar novos silogismos.

Dessa sorte, o cientista jurídico deve valer-se doutros suportes  filosóficos para sua fundamentação teórica e, por conseguinte, cientificidade, não se preocupando necessariamente em atender de início ao paradigma tradicional de pensamento e ciência; deve, antes de tudo, ter a consciência da capacidade ilimitada do alcance do pensamento social pois, o mesmo espírito humano que cria e recria as relações, valores e impressões acerca do mundo, acirrando a complexidade das demandas e expectativas com relação ao direito é o mesmo espírito capaz de propor as perguntas e por vezes alcançar as respostas. Não é necessário ao cientista jurídico ocupar-se do atendimento ao velho paradigma. É imprescindível a consciência de que ele (o velho paradigma) pode ser superado.

 

3 A METAFÍSICA DE HEIDEGGER

Um dos maiores filósofos do século XX, Martin Heidegger, traz para sua época a metafísica grega, reorganizando conceitos e propondo definições que estabeleceram, a um só tempo, diálogo e atualização entre o pensamento grego clássico e a filosofia contemporânea ocidental.  Sempre preocupado com a delimitação do objeto de estudo, Heidegger estabelecia como pressuposto a qualquer relação cognitiva cognição buscar antes conhecer/entender a coisa que conhecerá e a coisa que será conhecida, como ilustra

Considerada sob o ponto de vista do são entendimento humano, é a filosofia nas palavras de Hegel, o ‘mundo às avessas’. É por isso que a peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterização prévia. (HEIDEGGER,1973, p.233)

Assim, em continuidade a esse intrépido escorço conceitual sobre parte da filosofia heideggeriana, três foram as notas distintivas apartadas para este trabalho: o nada, o ente e o ser-aí e o temor e a angústia. A perplexidade e inquietação próprias são igualmente essenciais no pesquisador do direito, posto que é o inconformismo o motivador da superação.

 

 3.1 O nada

O nada para Heidegger é o nada nadificante, a negação do ser, a negação do ente. O nada é onde está suspenso o ente. O ente, assim, é a negação do nada. Perceber o nada é, por exclusão, delinear o ente. A ciência, em sua trilha tradicional, preconiza que tudo deve ser pesquisado em torno do ente e nada mais. Do nada, em princípio, nada se quer saber. A tendência natural da negação da lógica rasa, conforme dito supra, é limitada e limitadora pois, na medida em que o ente é algo suspenso no nada, e preciso é saber tudo sobre o ente, como se pode negar todos os questionamentos acerca do nada, uma vez que ele (o nada) é, em última análise, o grande revelador do ente? Por cautela, as palavras de Heidegger:

[…] é a essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente, nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa compensar com a destruição e a negação. O próprio nada nadifica. (HEIDEGGER,1973, p.238)

 

3.2 O ente e o ser-aí

No mesmo propósito conceitual, vem à baila dois conceitos essenciais, em complemento ao nada: o  ente  e o ser-aí. Trazendo em síntese apertada – e arriscada – a diferenciação entre ente ser-aí, resta o entendimento de que ente é o ser, a coisa, o objeto enquanto apenas ser, e o ser-aí  seria o objeto, o ser, a coisa situada em seu espaço, ciente de sua suspensão no nada e agente de suas mudanças e direcionamentos – ciente mas não necessariamente consciente. O ente pode ser entendido como objeto em estado puro, passivo, como o bem jurídico, e o ser-aí humano como o sujeito de direitos, provocador de interações, demandas e relações sociais mas, ao mesmo tempo, por ter a mesma essência suspensa no mesmo nada, também é ente/objeto/bem. Dois pensamentos de Heidegger para este título:

O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada. (HEIDEGGER,1973, p.239)

Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na pública superfície do ser-aí.[…] O que testemunha, de modo mais convincente, a constante e difundida, ainda que dissimulada, revelação do nada em nosso ser-aí, que a negação? […]Como poderia a negação também produzir por si o ‘não’ se ela somente pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? (HEIDEGGER,1973, p.239)

Assim, na pretensão de fusão de horizontes do presente artigo, tome-se por exemplo o homem vivo que, a um só tempo, é sujeito de direitos (o ser-aí) e bem jurídico (ente) enquanto também representa a vida a ser protegida, tutelada.

 

3.3 Temor e Angústia

Dois conceitos das concepções metafísicas heideggerianas que finalizam a pretensão conceitual do presente artigo são o temor e a angústia. O temor é um estado de pressão espiritual que aprisiona o ser-aí, na medida em que somente se teme algo conhecido, algo que se sabe. O  temor é uma cautela, um limite, uma fuga, e por isso um limitador do espírito.

Já a angústia, por sua vez, é a sensação de vazio, de incerteza, a expectativa de algo que está por vir, mas não se sabe quando, nem se sabe se. A angústia, ao contrário do temor, tende a libertar o espírito, já que na busca do desconhecido, vem a superação.

Assim, traçando o paralelo com o dilema do pesquisador jurídico, pode-se dizer que o temor é aparente quando o cientista do direito limita-se – e permite-se ser limitado – por uma paradigma linear e insuficiente do modelo tradicional de cientificidade, expresso inclusive interna corporis, ou seja, dentro da própria academia. É o temor da tese não aceita, da dissertação ou pesquisa não robustamente comprovada, nas bases empíricas tão mesquinhamente guarnecidas pelas ciências naturais, alçadas à condição de bastiões balizadores da verdade. É o chão firme do positivismo puro, da ciência que caminha pé-ante-pé; e da cientificidade.

Já a angústia é a viragem de Boaventura, é o mal-estar e a inquietação do cientista, na (in)certeza de que existe solução e/ou perspectiva alternativa para o problema  e que,  por isso mesmo, algo que não está definido ou percebido, em princípio, chegará como resposta ao problema. É muitas das vezes símile a um salto em um princípio: o que para muitos (subjugados ao temor) seria o lançar-se direto à morte, para outros é o início do voo nunca antes realizado.

De modo muito mais claro explica Heidegger:

“Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somo – refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que, em última análise,  não sou ‘eu’ ou não és ‘tu’ que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. (HEIDEGGER,1973, p.237)

 

4 O DIREITO SUSPENSO NO NADA

Tal qual o ente está suspenso no nada, e a partir do segundo se delimita e define o primeiro, também está o direito suspenso no nada, que são as relações sociais. As relações sociais possuem a mesma essência do direito, mas comumente são colocadas a par da pesquisa, tendo o direito todo o foco, quando o objeto (no caso, o ente, o bem jurídico ou o ser-aí, o sujeito do (de) direito) é afirmado pela negação de seu nada, onde está suspenso.

Tome-se por exemplo a percepção dos bens de interesse difuso. É claro que enquanto ente já existiam muito antes de serem estudados, mas somente tornaram-se ser-aí quando foram delimitados pelas provocações e percepções do seu nada, qual seja, as relações sociais provocantes e demandantes. Destaque-se que dificilmente se define um bem como de interesse difuso a partir de si próprio; parte-se dos seus conflitos (não são comuns aos dos bem individuais), à sua relação de domínio e titularidade (que também não são comuns às dos bens individuais). Repetindo o enxerto supra do magistério de Grinover, “Trata-se de interesses espalhados e informais à tutela de necessidades, também coletivas, sinteticamente referidas à qualidade de vida.”, ou seja, sinteticamente é a qualidade de vida o nada  no qual o s bens de interesse difuso está suspenso.

Assim, denomina-se aqui como metodologia metafísica do direito a abordagem que, a um só tempo, rompa a relação de temor  com o paradigma tradicional e não despreze o nada no qual está suspenso o direito, posto que é essencial para a delimitação de seus objetos e, por conseguinte, da sua pretendida cientificidade.

 

5 CONCLUSÕES

  1.  1.  Um dos grandes limitadores do pensamento científico das ciências sociais e, por conseguinte, da ciência do direito, é a subjugação ao paradigma de cientificidade das ciências naturais;
  2.  2.  Para o cientista do direito, tão necessária quanto à consciência de que o paradigma tradicional é insuficiente para trilhar a complexa rede das relações sociais é a consciência de que a abordagem da cientificidade peculiar das ciências sociais interage de modo muito mais efetivo com a realidade da complexidade contemporânea da pós-modernidade ou sociedade dos riscos;
  3.  3.  Os bens jurídicos de interesse difuso são exemplo da percepção de bem jurídico a partir das relações que, a um só tempo, lhe demandam e provocam, prova da complexidade do objeto de estudo das ciências sociais;
  4.  4.  Os fundamentos metafísicos de Heidegger, em especial os conceitos de nada, ente, ser-aí, temor e angústia são essenciais para a percepção filosófica plena da viragem do paradigma proposto por Boaventura Santos, na medida em demonstram o alcance, o limite, a superação e a compreensão das problemáticas jurídicas;
  5.  5.  O direito está suspenso no nada, que são as relações sociais
  6.  6.  O temor faz refém o cientista, que teme o não alcance da cientificidade, ao passo que a angústia liberta, na medida em que provocado pelo desconhecido, o cientista promove o salto do conhecimento quando, no caso do direito, percebe o direito que já existe na sociedade, mas não está escrito nos livros da academia e, por conseguinte, não é lido pelos (re)produtores da ciência.

 

6 REFERÊNCIAS

BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 13ª ed. Tradução de Ana Falcão Bastos e Luis Leitão.  Lisboa: Editorial Presença, 2007

GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos in GRINOVER,  Ada Pellegrini (coord.) A tutela dos interesses difusos. Série Estudos Jurídicos, n. 1, São Paulo: Max Limonad, 1984.

HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica?. Tradução de Ernildo Stein. In: Os Pensadores, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. A essência do fundamento. Lisboa: Edições 70, ?.

______. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo,finitude, solidão. (tradução de Marco Antônio Casanova). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências . 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos. São Paulo: Atlas, 2000.

STRATHERN, Paul. Heidegger em 90 minutos. Tradução de Maria Luiza X. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.


[i] Aluno especial do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. MBA Executivo em Gestão de Operações e Serviços Bancários. Especialista em Direito Penal e Crime Organizado. Educador Corporativo nas áreas de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e Gestão de Valores. Analista de Segurança e Inteligência Financeira. Bancário. E-mail:marcvspr@gmail.com

Alessandra Matos Portella

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Criminologia positivista x criminologia crítica. 3 A fenomenologia da percepção como método de apreensão da realidade. 4 O auxílio da fenomenologia da percepção para o estudo da criminologia crítica. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO
A fenomenologia da percepção é um método de investigação científica que busca apreender, por meio da intuição imediata, e descrever fenômenos que estão sendo investigados.
Exige para isso que o investigador se despoje de conceitos anteriores, de valores impregnados em sua consciência, e mantenha uma atitude aberta para as possibilidades que serão desveladas segundo a natureza das coisas. Há, em realidade, uma troca mútua entre o sujeito e o objeto, na medida em que ambos lançam-se um ao outro, na perspectiva de construção do conhecimento.
A essência das coisas é apreendida quando ocorre esta interação entre o sujeito transcendental e objeto pertencente ao mundo vivente, mas, para isto, a consciência precisa estar liberta de constituições objetivadas de elementos externos. Pois, segundo Merleau-Ponty (1999, p. 55).
[…] em uma consciência que constitui tudo, ou, antes, que possui eternamente a estrutura inteligível de todos os seus objetos, assim como na consciência empirista que não constitui nada, a atenção permanece um poder abstrato, ineficaz, porque ali ela não tem nada para fazer.
A importância da atenção para a fenomenologia da percepção é ímpar, pois é por meio dela que se consegue ou não captar a essencialidade das coisas. Para que ocorra o desvelar da descoberta é preciso que a atenção não esteja direcionada, uma vez que “a consciência só tem como obstáculo o caos, que não é nada” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 55).
Eis a importância deste método filosófico para o estudo da criminologia crítica, pois por esta não está comprometida com valores socialmente postos, por estar despojada de influências legitimadas externamente, pode debruçar-se sobre o objeto investigado e refletir livremente acerca do mesmo, de modo que a verdade se lance no mundo vivido e, de forma irrefutável, se apresente para todos aqueles que o desejem conhecer.

2 CRIMINOLÓGICA POSITIVISTA X CRIMINOLOGIA CRÍTICA
A ciência criminológica, assim como as demais ciências sociais, é fruto do século XIX, quando Auguste Comte revela a ciência positivista para o mundo, quebrando o paradigma da exclusividade das ciências naturais.
Tem por objeto de estudo o crime, o criminoso, a vítima e do controle social, que são apreendidos empiricamente pelo investigador. Molina e Gomes (2008, p. 34) afirmam que
[…] a criminologia adquiriu autonomia e status de ciência quando o positivismo generalizou o emprego do método empírico, isto é, quando a análise, observação e indução, substituíram a especulação e o silogismo, superando o método abstrato, formal e dedutivo do mundo clássico.
A escola positivista da criminologia, ao estudar o crime e o criminoso, acabou por cometer inúmeros impropérios em seus postulados, a exemplo da teoria lombrosiana, seguida por Ferri, Garófalo e outros.
Lombroso, médico italiano, acreditava que “os criminosos são tipos atávicos, do ponto de vista da evolução, que perduram entre nós. […] Seu atavismo é tanto físico quanto mental” (GOULD, s/d, p. 123)
O crime para a escola positivista existia de per si, era um ser ôntico, natural e o criminoso era alguém patológico, anormal, que se diferenciava biologicamente dos demais membros da sociedade, por isso, “para Lombroso, o homem era predeterminado biologicamente a cometer atos delituosos, pressionados por fenômeno de ordem endógena ou exógena” (SANTOS, 2006, p. 32).
A criminalidade era construída segundo Baratta (1999. p. 29 apud SANTOS 2006, p. 33) por
[…] pretensa possibilidade de individualizar ‘sinais’ antropológicos da criminalidade e de observar os indivíduos assim ‘assinalados’ em zonas rigidamente circunscritas dentro do âmbito do universo social (as instituições totais, ou seja, o cárcere e o manicômio judiciário).
A hegemonia desta pseudociência perdurou até a década de 20 do século passado, quando estudos sociológicos americanos demonstraram sua insuficiência.
Adotando um olhar macrossociológico para a compreensão do crime e do criminoso, surgiu a teoria do labbeling approach ou teoria do etiquetamento social, que afirmava ser o crime “constituído pelo resultado das interações sociais que definem uma determinada conduta como ilícita, e de uma seleção, que define o autor como delinqüente” (SANTOS, 2006, p. 48).
As conseqüências advindas desta distribuição do crime e seleção do criminoso acabam por produzir a
[…] assimilação das características do rótulo pelo rotulado, expectativa social de comportamento do rotulado conforme as características do rótulo, perpetuação do comportamento criminoso mediante formações de carreiras criminosas e criação de subculturas criminais através da aproximação recíproca de indivíduos estigmatizados (SANTOS, 2008, p. 20).
A teoria do etiquetamento social utilizou-se de método diferente da escola que a antecedeu. Foi constituída “pelas correntes sociológicas do interacionismo simbólico, fenomenologia, etnometodologia e pela criminologia do conflito” (BARATTA, 1999, p. 87 apud SANTOS, 2006, p. 47).
Santos (2008, p. 18-19) ao abordar o objeto de estudo da teoria do etiquetamento social afirma que “compreende a constituição das regras sociais e as práticas de aplicação dessas regras (por quem, contra quem, quais as conseqüências etc.), dentro da concepção fenomenológica”.
Desta forma, conseguiu romper com o discurso falacioso da escola positivista e demonstrar que o crime, bem como o criminoso, é construção de uma realidade imposta pelo poderio econômico do sistema produtivo capitalista, que tem por função criar instrumentos legitimadores das desigualdades sócio-econômicas visando à manutenção do status quo burguês.
Ademais, a teoria do labbeling approach
[…] inseriu, no campo de estudo, a forma como atuam as agência de controle formal (desde o legislador até a penitenciária) e informal (família, escola) na produção e reprodução da criminalidade (SANTOS, 2006, p. 48-49).
Estes estudos foram intensificados ainda mais a partir da década 60 do século XX, momento de eclosão de movimentos sociais.
Na Europa e nos EUA, a partir da década de 60, as teorias radicais germinam nas lutas políticas por direitos civis, no caso dos ativistas negros americanos, nos movimentos contra a guerra, generalizados durante o genocídio no Vietnã, no movimento estudantil, em 1968, nas revoltas em prisões e nas lutas de libertação anti-imperialistas dos povos e nações do Terceiro Mundo (SANTOS, 2008).
Surge, a partir de então, a criminologia crítica como teoria norteadora do estudo do crime e de suas variantes, tendo por pressuposto metodológico o materialismo histórico, uma vez que entra em uma relação dialética com o seu objeto.

3 A FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO COMO MÉTODO DE APREENSÃO DA REALIDADE
Antes de compreender o método fenomenológico, faz-se necessário fazer uma breve incursão nos métodos cartesiano, apresentado por Descartes, e o empírico, tendo Bacon por representante, uma vez que estes o antecederam no tempo e àquele os contrapõem, por entender que
[…] um e outro tomam por objeto de análise o mundo objetivo, que não o primeiro nem segundo o tempo nem segundo seu sentido; um e outro são incapazes de exprimir a maneira particular pela qual a consciência perceptiva constitui seu objeto. Ambos guardam distância a respeito da percepção, em lugar de aderir a ela (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 53).
O intelectualismo propõe dividir uma dada “realidade” em várias partes a serem dissecadas, analisadas e compreendidas metodicamente para, em seguida, juntá-las buscando compreender o todo, seguindo rigorosamente um método lógico. Nas palavras de Descartes (2006, p. 10):
[…] todo o método consiste na ordem e na disposição dos objetos para os quais é necessário dirigir a penetração da mente, a fim de descobrirmos alguma verdade. E observá-lo-emos fielmente, se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras a proposições mais simples e se, em seguida, a partir da intuição das mais simples de todas, tentarmos elevar-nos pelos mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras.
Já o empirismo
[…] consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis (BACON, s/d, p. 4 )
Tais métodos partem de um mundo já objetivado, não questionando. Buscam estudá-lo a partir de um conjunto de técnicas que supostamente seriam capazes de apreendê-lo, em busca da verdade.
Em ambos os métodos a atenção já está interessada, não podendo dispersar-se do objeto estudado. Merleau-Ponty (1999, p. 56) afirma que “o empirismo não vê que precisamos saber o que procuramos, sem que não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos”.
Por partirem, antecipadamente, de um determinado objeto, a atenção já está comprometida, acabando por destruir as reais possibilidades de encontro com a verdade. Isto porque o sujeito impregnado de valores, crenças não está aberto às novas possibilidades, que surgem espontaneamente em meio às investigações.
A fenomenologia da percepção parte do pressuposto que
[…] o mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6).
Por isso é que a realidade a ser encontrada está sempre em estado de latência, fazendo parte do mundo vivente, sendo lançado para o mundo vivido a partir da percepção do sujeito, sendo esta conseqüência de sua atenção desinteressada.
Talvez seja este o antagonismo mais significativo existente entre o método fenomenológico dos demais supra analisados, pois
[…] é preciso desviar laboriosamente o olhar dos dados naturais de que não se cessa de ter consciência, e que, portanto, estão por assim dizer entrelaçados àqueles novos dados que se intenta alcançar, e assim é sempre iminente o risco de confundir uns com os outros (HUSSERL, 2002, p. 144).
A percepção responsável pela apreensão da realidade pode se manifestar apenas quando liberta de sentidos plenos e determinados. Merleau-Ponty (1999, p. 26) afirma que
[…] construímos, pela ótica e pela geometria, o fragmento do mundo cuja imagem pode formar-se a cada momento em nossa retina. Tudo aquilo que está fora desse perímetro, não se refletindo em nenhuma superfície sensível, não age sobre nossa visão mais do que a luz dos nossos olhos fechados.
Assim, é preciso ir além e transpor as fronteiras do mundo posto, de forma que a visão se amplie numa perspectiva libertadora. Abrindo-se os olhos, antes cerrados, se inicia o processo de construção do conhecimento e encontro da verdade. Apenas transcendendo se acha a essência das coisas.
Esta é a mais marcante diferença entre a fenomenologia da percepção de outros métodos investigativos, pois antes mesmo de ser um método de investigação científica, é um método em si mesma, na medida em que traz “à apreensão do olhar o campo de coisas da consciência transcendental pura” (HUSSERL, 2002, p. 144).

4 O AUXÍLIO DA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO PARA O ESTUDO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA
A criminologia crítica, como já definida, teve por mérito demonstrar a insuficiência argumentativa da criminologia positivista, revelando ser o crime um comportamento desviante típico da classe subalterna, e o criminoso alguém que age conforme o esperado pela classe dominante.
Na definição de condutas criminosas entram em jogo, indubitavelmente, interesses econômicos, marcando definitivamente àqueles que caem nas malhas do sistema.
Por isso, se pode afirmar que o crime se constitui nas relações sociais segundo uma lógica seletiva e perversa, sendo distribuído de modo desigual entre as pessoas que, na condição de sujeitos, deveriam ser tratadas com igualdade.
Tal descoberta, porém, só pôde ser feita no momento em que se modificou o método de estudo do crime e do criminoso, quando se passou a estudá-los não a partir de uma realidade posta e inquestionável, analisada empiricamente, mas a partir de percepções advindas da teoria do labbeling approach.
A partir da redução fenomenológica apreendeu-se o crime como um fenômeno social construído a partir da lógica capitalista de produção. Por ser “uma ciência no âmbito da mera intuição imediata, uma ciência eidética puramente “descritiva”” (HUSSERL, 2002, p. 146), se conseguiu alcançar a real acepção do crime e do criminoso, sendo este constituído segundo sua condição de pertença numa dada classe social.
Merton, desenvolvendo a obra clássica de Durkheim demonstrou, por meio da redução fenomenológica, que “a desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes” (BARATTA, 2002, p. 63).
Para chegar a esta conclusão, ele inseriu em sua teoria três conceitos essenciais. Inicialmente definiu como cultura um conjunto de valores postos por um grupo social; definiu estrutura social como membros da sociedade que estão inseridas no conjunto das relações sociais, mesmo de modo diferente e, por fim, definiu anomia como uma crise na estrutura cultural, decorrente, em parte, pelas possibilidades sociais estruturadas de agir conforme as metas postas pela cultura e, por outra, pela divergência entre as normas e os valores sociais (BARATTA, 2002, p. 63).
Descobriu-se que a estrutura social não possibilita a todos os seus membros, de forma igual, a ter acesso aos valores eleitos como legítimos e bons, ou seja, a circulação desses valores ocorre desigualmente na sociedade, o que leva, segundo Merton, a dois tipos de respostas individuais e opostas entre si: a conformista e a desviante.
Estas respostas têm influência direta da posição sócio-econômica do sujeito, aumentando ou diminuindo a possibilidade de tornar-se ou não um criminoso. Os indivíduos desviantes acabam por formar grupos no interior da estrutura social criando, assim, subculturas tidas como criminais, com valores e regras específicas.
O sistema penal típico da estrutura social volta-se, quase que exclusivamente, para estes grupos representativos de subculturas. Todo o seu aparato policial, judiciário, penitenciário trabalha incessantemente buscando alcançá-los, desbaratá-los e puni-los, segundo os valores da cultura dominante.
A confirmação desta verdade se dá a partir dos estudos realizados por Sutherland que insere o conceito de cifras negras na realidade criminal. Estas correspondem aos delitos existentes que não são alcançados pelo sistema penal, não sendo representados nas estatísticas oficiais, dando, assim, uma falsa idéia da distribuição da criminalidade.
O que se quer dizer com isso é, basicamente, que a quantidade de crimes cometidos por pessoas de status social elevado, com poderio econômico e politicamente influente são desconhecidos pelos agentes representativos do controle social, não sendo, por óbvio, punidos. Ao revés, os crimes de rua, típicos de classes econômico-sociais vulneráveis são super-representados nas estatísticas oficiais do controle social.
Sendo baseadas sobre a criminalidade identificada e perseguida, as estatísticas criminais, nas quais a criminalidade de colarinho branco é representada de modo enormemente inferior à sua calculável “cifra negra”, distorceram até agora as teorias da criminalidade, sugerindo um quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais (BARATTA, 2002, p. 102).
Percebe-se que “a criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria, […] mas, ao contrário, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade (BARATTA, 2002, p. 103). A punição é que se distribui desigualmente, segundo a lógica da posição de classe do autor.
Apenas com o auxílio da fenomenologia da percepção é que se pôde apreender a essência do objeto criminológico, descrevendo-o com rigor científico e apresentando-o a todos aqueles que desejam conhecê-lo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criminologia crítica, de modo arrebatador, desmistificou por inteiro a tese sustentada pela criminologia tradicional, essencialmente racista, seletiva e desigual. Revelou que inexistem fatores biológicos, antropológicos que justifiquem a causa da criminalidade, sepultando de vez o paradigma da escola positivista, calcada em estudos empíricos da realidade natural.
A partir de estudos fenomenológicos realizados revelou-se que o crime e o criminoso são, em realidade, produto de uma escolha de uma estrutura econômico-social dominante, espraiando-se para o âmbito de sua superestrutura. Por meio da redução fenomenológica se pôde apreender que grande parte do desvio ocorre por conta das impossibilidades reais de igualdade na distribuição material de acesso às metas culturais postas pela estrutura social minoritária.
A conseqüência disso é o surgimento de uma pluralidade de subculturas no interior da estrutura social formal, com valores e regras específicas destoantes daquelas postas por um grupo social dominante. Desta forma, o crime fica adstrito às classes sociais subalternas e super-representado nas estatísticas oficiais do controle formal. O criminoso, por sua vez, é etiquetado definitivamente como tal, agindo segundo as expectativas sociais.
A estigmatização do criminoso produz e reproduz a criminalidade, levando à construção de carreiras criminosas no interior da estrutura social. Movem-se, assim, as agências formais de controle representadas pela polícia, judiciário e cárcere no intuito de dar uma resposta simbólica aos problemas criados pelas próprias instâncias sociais de poder.

6 REFERÊNCIAS
BACON, Francis. Novum Organum. Minas Gerais: VirtualBooks, s/d.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002
DESCARTES, René. Regras para a Direção do Espírito. Lisboa: Edições 70, 1989
GOULD, Stephen Jay. A Falsa Medida do Homem. Martins Fontes, s/d.
HUSSERL, Edmund. Idéias para uma Fenomenologia Pura. São Paulo: Idéias & Letras, 2002
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999
MOLINA; GOMES. Criminologia. 6ª ed. ref. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008
SANTOS, Ana Caroline Elaine dos. A Criminalidade de Colarinho Branco como Expressão da Desigualdade no Direito Penal Brasileiro à Luz da Criminologia. Itajaí: 2006, 142 p.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3ª ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008

___________________________________
NOTAS
1 Mestranda em Direito (UFBA). Mestra em Ciência da Informação (UFBA – 2001). Especialista em
Contabilidade Gerencial (UFBA – 1998). Graduada em Direito (FABAC – 2010). Graduada em Ciências
Contábeis (FUNDAÇÃO VISCONDE DE CAIRU – 1996)