UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE A TEORIA DA EVOLUÇÃO CIENTÍFICA DE POPPER, A TEORIA EVOLUCIONSTA DE DARWIN, E UMA REFLEXÃO SOBRE O DIREITO À VIDA DOS DEMAIS SERES VIVOS

Publicado: novembro 5, 2013 em Artigo


Marta de Oliveira Torres[i]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A teoria da evolução da ciência e teoria das lógicas dedutivas de Popper. 3 O evolucionismo de Darwin e a seleção natural. 4 A possibilidade de invalidação da teoria evolucionista de Darwin. 5 A necessidade da quebra do paradigma antropocêntrico no direito. 6 Conclusão. 7 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

A teoria evolucionista de Darwin, utilizada pelos mais diversos ramos da ciência, embora tenha o mérito de dar sustentação a uma ideologia de independência do conhecimento científico perante a religião, trouxe enraizada consigo a concepção do ser humano como a mais evoluída espécie de ser vivo no universo, bem como a constante e necessária luta de cada ser pela sobrevivência num mundo cujas espécies vivem em constante disputa diante da seleção natural.

Entretanto, embora tal teoria (como as demais teorias científicas) não se traduza como uma verdade absoluta, e por isso não poderia ser apresentada como algo inconteste, é utilizada como concepção ideológica antropocêntrica que pensa os direitos fundamentais sob a ótica exclusiva do ser humano.

O criacionismo – teoria religiosa que se fundamenta no livro Gêneses, da Bíblia, para demonstrar a origem do universo –  tampouco pode ser considerada uma explicação plausível, posto que, além de desprovida de análises científicas, também não se afasta da interpretação que o universo gira em torno do homem. Faz-se necessário que a ciência, na esteira de Galileu, prossiga suas investigações para demonstrar que nem o sol gira em torno da Terra, nem toda a natureza foi criada para a exploração inconsequente do ser humano.

As teoria darwinista é uma premissa utilizada por alguns para justificar a aplicação antropocêntrica do direito. Entretanto, para a reflexão do direito à vida, é preciso a priori descartar sistematicamente todas as prenoções, tal como sugerido por Durkheim (2001). Nesse sentido, Bacon já advertia que, para o avanço das ciências, seria vão esperar pela superposição do novo sobre o velho, fazendo-se necessária uma “restauração da empresa a partir do âmago de suas fundações, se não se quiser girar perpetuamente em círculos, com magro e quase desprezível progresso” (1997, p. 38).

No presente artigo, será abordado um problema puramente teórico: demonstrar a possibilidade de notáveis exceções à regra da teoria evolucionista de Darwin de acordo com a teoria da validade das deduções lógicas. Discutirá, ainda, a concepção de evolução científica de Popper e a ideologia antropocentrista dominante no Direito. Tentará demonstrar que a invalidade das premissas do evolucionismo pode implicar numa mudança de paradigma e na reflexão sobre o direito à vida dos demais seres vivos.

 

2 A TEORIA DA EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA E TEORIA DAS LÓGICAS DEDUTIVAS DE POPPER

Um dos filósofos mais influentes do século XX, Karl Popper destacou-se pela defesa de seu método, denominado lógico-dedutivo, bem como pela defesa da relatividade das teorias científicas. Pregava que a teoria científica não seria eterna ou imutável, mas sempre conjectural e provisória. O autor analisava a evolução e progresso na ciência sob uma abordagem biológica, considerando a ciência como instrumento usado pela espécie humana para se adaptar ao ambiente.

Conforme leciona o autor, a observação de um dado que conflite com nossas expectativas (conscientes ou inconscientes) faz surgir um problema que passa a ser o ponto de partida de uma análise científica (POPPER, 2004). Um problema puramente teórico, ou um problema de ciência pura, significa a busca por uma explicação, a explicação de um fato ou de um fenômeno ou de uma regularidade destacada, ou ainda de uma notável exceção à regra.

O método da ciência consiste na experimentação de possíveis soluções a esse problema, num desenvolvimento crítico consciente do método de “ensaio e erro”. A tentativa de solução é formada por uma teoria, um sistema dedutivo, a qual relaciona o problema a outros fatos, em uma dedução lógica, até chegar à conclusão. O conteúdo explicativo de uma teoria é um “conceito puramente lógico”, e conclui que um enunciado pode representar uma melhor aproximação da verdade do que outro enunciado, quando, por exemplo, um enunciado tiver consequências lógicas “mais” verdadeiras e “menos” falsas do que outro (POPPER, 2004).

Acredita que “não existe nenhuma ciência puramente observacional; existem somente ciências nas quais teorizamos (mais ou menos consciente e criticamente)” (POPPER, 2004, p. 30), e sustenta que as hipóteses experimentais podem ser colocadas à prova e eliminadas criticamente pela discussão racional: “embora não possamos justificar nossas teorias racionalmente e não possamos, nem mesmo, provar que são prováveis, podemos criticá-las racionalmente. E podemos, constantemente, distingui-las de teorias piores” (POPPER, 2004, p. 34).

Karl Popper apresenta em suas décima-sexta e décima-sétima teses a “lógica dedutiva” como a “teoria da validade das deduções lógicas” ou “da relação de conseqüência lógica”.

Trazendo noções de lógica, afirma o autor:

Uma condição necessária e decisiva para a validade de uma conseqüência lógica é a seguinte: se as premissas de uma dedução válida são verdadeiras, então a conclusão deve também ser verdadeira. Isto também pode ser expresso como se segue. A lógica dedutiva é a teoria da transmissão de verdade, das premissas à conclusão. […]

Este resultado trivial porém decisivamente importante pode também ser expresso da seguinte maneira: a lógica dedutiva é não só a teoria da transmissão da verdade das premissas à conclusão, mas é, também, ao mesmo tempo, a teoria da retransmissão da falsidade da conclusão até, ao menos, uma das premissas (POPPER, 2004, p. 26).

Desta forma, segundo sua “teoria da validade das deduções lógicas ou da relação da conseqüência lógica”, se uma das premissas é falsa, as premissas seguintes que desta tiraram seu fundamento também serão. E se uma das premissas que compõem a teoria é falsa, a conclusão da teoria também será falsa.

Sua maior contribuição foi sua ênfase na possibilidade de refutação das teorias científicas, as quais fazem várias previsões que poderiam ser refutadas ou invalidadas pela submissão a testes. A cada novo experimento concordante com as previsões, a teoria sobrevive e aumenta a confiança nela. No entanto, a constatação de uma nova observação discordante, impele ao abandono ou modificação da teoria. Essa seria o “falseacionismo”, que se contrapõe ao “verificacionismo” (consistente em erigir como base aquilo que se observa; a partir dos “fatos” observados, por indução, chega-se a formulações gerais na forma de leis).

Para explicar sua teoria sobre o progresso na ciência, Karl Popper baseou-se na teoria da evolução darwinista: comparando as teorias à órgãos sensitivos, estes incorporam teorias adaptáveis, e essas teorias são o resultado da seleção natural. Sugere que o progresso da ciência ocorre utilizando o “método de experimentação e eliminação do erro”: as instruções mal adaptadas acabariam sendo eliminadas pela “seleção natural”, que é uma espécie de “realimentação negativa”: a ciência, pela eliminação do erro anterior, iria progressivamente evoluir (POPPER, 2004).

Karl Popper acreditava que a ciência, como um instrumento especial de aprendizagem do ser humano para se adaptar ao meio ambiente. Considera que em todos os três níveis (o genético, o comportamental e o científico) estaríamos operando com estruturas herdadas que são passadas adiante pela instrução, seja através do código genético ou através da tradição. Desta maneira, acredita que em todos os três níveis iriam surgir novas estruturas e instruções, estas decorrentes de mudanças processuais vindas de dentro da própria estrutura, evolutivamente, em razão da seleção natural e o método de experimentação e eliminação do erro.

Tudo isto é parte da abordagem crítica à ciência, em oposição à abordagem indutiva; ou parte da abordagem darwiniana ou eliminatória ou seletiva, em oposição à abordagem lamarckiana, que trabalha com a idéia de “instrução de fora” ou do ambiente, enquanto a abordagem crítica ou seletiva só permite “instruções de dentro” — do interior da própria estrutura (POPPER, 2004, p. 60).

Sustenta que “o progresso na ciência pode ser avaliado racionalmente” (POPPER, 2004, p. 68), porque a nova teoria, revolucionária ao derrotar a teoria antecessora, após ser submetida a testes, passará a dar uma explicação melhor ao problema, mas preservando o sucesso de suas antecessoras.

Sobre a evolução, Karl Popper entende que a descoberta de fatos novos ou novos efeitos não se dá através da cópia ou por indução, da observação, ou por qualquer outro método de instrução pelo ambiente. E para chegar a tal conclusão, o autor indica a utilização do método de experimentação e eliminação do erro.

Nesse ponto, importante lembrar a advertência dada por Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, acerca da teoria científica, sendo esta somente um modelo de universo, ou de uma parte restrita dele, e um conjunto de regras que relacionam quantidades no modelo com as observações feitas. A teoria científica “existe apenas em nossas mentes e não tem qualquer outra realidade (o que quer que isto possa significar)” (MLODINOW, e HAWKING, 2005, p. 23).

Referidos autores consideram que uma teoria pode ser considerada válida se conseguir descrever com exatidão uma grande classe de observações, tomando por base um modelo que contenha somente poucos elementos arbitrários. Deve, ainda, fazer previsões bem definidas sobre os resultados de observações futuras (MLODNOW, e HAWKING, 2005, p. 23).

Analisando a teoria de Karl Popper sobre a evolução da ciência, é manifesta a influência da concepção da seleção natural e evolucionismo, utilizada como fundamento para sua afirmação de que a ciência, tal como os seres vivos, estaria em processo de evolução. Contudo, se a teoria evolucionista de Darwin estiver errada, aplicando-se a teoria da lógica dedutiva, a teoria da evolução da ciência de Popper, porque fundamentada naquela primeira premissa errada, estará também falseada.

 

3 O EVOLUCIONISMO DE DARWIN E A SELEÇÃO NATURAL

Darwin introduziu no mundo científico em 1859 sua contribuição teórica, que consiste nas seguintes premissas:

1) que os organismos evoluem continuamente (o que poderíamos chamar de teoria da evolução em si); 2) que diferentes tipos de organismo descendem de um ancestral comum (a teoria da origem comum); 3) que as espécies se multiplicam ao longo do tempo (a teoria da multiplicação das espécies ou especiação); 4) que a evolução se dá por meio de mudanças graduais nas populações (a teoria do gradualismo); 5) que o mecanismo da evolução é a competição entre grandes números de indivíduos por recursos limitados, o que leva a diferenças em sobrevivência e reprodução (a teoria da seleção natural) (MAYR, 2008 p. 241).

Declaradamente influenciado pelas teses naturalistas de sua época, dentre eles pensadores tais como seu próprio avô, também de nome Darwin, bem como Goethe, Geoffroy Saint-Hilaire e Lamark, Darwin acreditava que todas as espécies de seres vivos decorriam de uma origem comum, embora discordasse dos naturalistas na fundamentação dessa teoria. Por não acreditar que as modificações se davam por causas exteriores, Darwin buscou uma explicação plausível para as mudanças encontradas nas diversas espécies de seres vivos – já que partiriam todas da mesma origem, mas a razão das modificações entre as espécies carecia de uma demonstração científica.

Darwin, ao refletir sobre as afinidades mútuas dos seres organizados, as suas relações embriológicas, a sua distribuição geográfica, a sua sucessão geológica e outros factos análogos, concluiu que as espécies não foram criadas independentemente umas das outras, mas que descenderam, como variedades, de outras espécies. Porém, considerando que a conclusão era insatisfatória, já que os naturalistas continuamente referiam-se a condições externas, tais como clima, comida etc, como a única possível causa para variação, entendia que seria “ilógico atribuir a meras causas externas a estrutura, por exemplo, do picanço (pica-pau), no qual as patas, a cauda, o bico e a língua estão admiravelmente adaptadas para ir agarrar os insetos debaixo da casca das árvores” (DARWIN, 2004, p. 11).

Entendeu que quando há o desenvolvimento de um modo extraordinário de uma parte numa espécie qualquer, comparativamente ao que é a mesma parte nas outras espécies do mesmo gênero, pode-se concluir que esta parte sofreu enormes modificações, desde a época em que as diferentes espécies se desligaram do antepassado comum deste gênero. Afirma que esse período deve ser remoto em um grau extremo, porque é muito raro que as espécies persistam durante mais que um período geológico (DARWIN, 2004).

Decerto, a teoria evolucionista de Darwin consiste que as espécies de um mesmo grupo descendem de um ancestral comum, cujas características comuns foram transmitidas por hereditariedade; que as partes que variaram recentemente teriam mais tendência de continuar se manifestando nas gerações seguintes do que as partes que não variavam ao longo do tempo; que a espécie, segundo o lapso de tempo decorrido, teria cumulado as variações e se adaptado a diversos fins, e que a seleção natural tem dominado mais ou menos completamente sua tendência à regressão e a novas variações (DARWIN, 2004).

Darwin inaugura uma nova ideologia: a idéia de que o homem é, no atual estágio, a espécie mais evoluída de todos os seres vivos, que a origem do universo não decorre de uma origem divina, mas de um ponto comum que evoluiu ao longo de milhares de anos, e que todas as espécies vivem em constante conflito entre si e com as demais espécies na luta pela sobrevivência, para resistir à seleção da própria natureza. Ao afirmar que essa luta constante é “natural”, além de desprender a origem do universo de um ponto divino, a teoria de Darwin também incapacitou o ser humano de modificar essa luta ou substituí-la por uma harmonia, afinal, nem todos sobreviveriam, isso faz parte da natureza, e não se pode lutar contra a natureza das coisas.

We will now discuss in a little more detail the struggle for existence. In my future work, this subject shall be treated, as it well deservers, at much greater length. […]. Nothing is easier than to admit in words the truth of the universal struggle for life, or more difficult – at least I have found it so – than constantly to bear this conclusion in mind. Yet unless it be thoroughly engrained in the mind, I am convinced that the whole economy of nature, with every fact on distribution, rarity, abundance, extinction, and variation, will be dimly seen or quite misunderstood. We behold the face of nature bright with gladness, we often see superabundance of food; we do not see, or we forget, that the birds which are idly singing round us mostly live on insects or seeds, and are thus constantly destroying life; or we forget how largely these songsters, or their eggs, or their nestlings, are destroyed by birds and beasts of prey; we do not always bear in mind, that though food may be now superabundant, it is not so at all seasons of each recurring year (DARWIN, 2004, p. 74).[ii]

A teoria evolucionista de Darwin (surgida numa época em que a Inglaterra estava no auge da Revolução Industrial, com todo seu poderio econômico) foi tomada como premissa verdadeira pela ciência moderna, é tamanha ao ponto de ser o sustentáculo da concepção de mundo pela biologia desde então. Mark Ridley explica que “a bela, simples e fácil de entender ideia de evolução pela seleção natural pode ser cientificamente testada em todas as áreas” (RIDLEY, 2004, p. 4). Considera uma das mais poderosas ideias de todas as áreas da ciência, além de ser a “única teoria que pode seriamente clamar a unificação da biologia”, teoria esta “capaz de dar sentidos a fatos que ocorrem num mundo invisível uma gota de água da chuva, nos encantos coloridos de um jardim botânico ou em manadas tonitruantes de grandes animais” (RIDLEY, 2004, p. 4). E cita a célebre frase de Theodosius Dobzhansky, um dos mais eminentes biologistas evolucionistas do século vinte, que diz que “nada em biologia faz sentido senão pela luz da evolução” (RIDLEY, 2004, p. 4).

No entanto, o episódio que se seguiu à publicação de “Origem das Espécies” ilustra bem os vários outros que marcaram o caráter nitidamente ideológico da aceitação da teoria: a batalha da filosofia materialista, baseada na epistemologia cartesiana versus religião. Um ano depois da publicação de seu livro, Darwin ganhou um de seus mais fervorosos defensores, Thomas Henry Huxley. Na reunião da Associação Britânica para o Progresso da Ciência, realizada em Oxford no ano de 1860, travou um intenso debate com o bispo de Oxford, Samuuel Wilbeforce, quando este, ironizando Huxley, perguntou-lhe se era parente de um macaco por parte de pai ou parte de mãe. Este replicou:

Afirmei… que um homem não tem por que se envergonhar de ter um macaco por avô. Se há um ancestral que eu me envergonharia de relembrar, esse seria um homem, um homem de intelecto incansável e versátil que, não contente com um equívoco sucesso em sua própria esfera de atividade, se lança a questões científicas das quais não tem nenhum conhecimento real e as obscurece mediante uma retórica sem sentido, distraindo a atenção dos ouvintes da questão verdadeira em discussão, por meio de eloquentes digressões e habilidosos apelos ao preconceito religioso (HOWARD, 2003, p. 19).

Na sua autobiografia privada que escreveu para a família, Darwin não pode se furtar de registrar sua mudança de um ortodoxo convencional na juventude, a um agnóstico cético. Concluiu não entender como o cristianismo poderia ser correto, “pois, caso ele o seja, a linguagem pura e simples do texto parece mostrar que homens que não creem, o que incluiria meu Pai, meu Irmão e quase todos os meus melhores amigos, serão eternamente punidos. E essa é uma doutrina amaldiçoada” (apud HOWARD, 2003, p. 21).

Da origem da discussão, pode-se entender o que aconteceu até então. A “guerra entre a ciência e a tecnologia”, manchete de jornais da época, chegou às cortes norte-americanas. Em 1923, Oklahoma aprovou uma lei oferecendo livros gratuitamente para as escolas, desde que nem os livros nem os professores mencionassem a evolução. Em 1925, um professor se apresentou voluntariamente para ser preso porque teria violado uma lei que proibia o ensino de qualquer teoria que negasse “a história da Divina Criação do homem” (o célebre “Caso Scopes”). Embora o professor tenha sido condenado, em 1964, a Suprema Corte declarou inconstitucionais os estatutos antievolucionistas em vigência nos estados do sul dos Estados Unidos.

Aí então os criacionistas desenvolvem a “creation-science” (uma “adaptação” do criacionismo para sobreviver nas escolas públicas americanas!), que busca comprovar cientificamente a existência de Deus. Arkansas e Lousiana, além de comitês de educação de outros Estados, adotaram o argumento dos “dois modelos”, e em 1981 editaram leis para a para regulamentação do ensino do criacionismo e evolucionismo. Outro caso (McLean vs. Arkansas) foi parar nos tribunais; julgado em 1981, contou com testemunhas como o paleontólogo Stephen Jay Gould, o biólogo e geneticista Francisco Ayala e o filósofo Michael Ruse, entre outros. Na sentença, o juiz federal William Overton conclui que o conceito de ciência era inaplicável à autodenominada “creation-science”, uma vez que não era aceita pela comunidade científica. E considerou, para tanto, as seguintes características da ciência: 1) é voltada para as leis naturais; 2) deve ser explicativa em relação às leis naturais; 3) é testável no mundo empírico; 4) suas conclusões são provisórias, isto é, não constituem necessariamente a palavra final; e 5) é falsificável. Decide, então, que era inconstitucional a lei do Arkansas, por violar a separação constitucional entre Estado e religião.

Na década de 1990, surge então um novo movimento criacionista, o “Criacionismo de Planejamento Inteligente” (Intelligent Design), que tenta combater o movimento evolucionista sob o argumento de seu dogmatismo, de retirar as explicações dos fenômenos naturais de Deus e se apoiar em uma metafísica materialista.

E o debate entre criacionistas versus evolucionistas progride, “adaptando-se” aos novos argumentos. Até quem se abstém de manifestar sua religião para defender os argumentos científicos não se exime de críticas. Michael Behe, por exemplo, quando um outro biólogo não-evolucionista, Dickerson, afirmou que não deve oferecer explicação sobrenatural como explicação de um evento natural, foi por aquele rechaçado; Michael Behe investe na necessidade de manifestação da postura religiosa do pesquisador (“não há razão para pensar que os 90% da população, em geral, que nele [em Deus] acreditam, sejam muito diferentes no caso de cientistas” (BEHE, 1997, p. 241). Informa que “é relevante para nossa análise desse argumento dizer que Dickerson é membro da American Scientific Affiliation, de modo que ele acredita em Deus. Ele não tem razão a priori para pensar que nada existe além da natureza, mas acha que não constitui boa ciência oferecer o sobrenatural como explicação de um evento natural” (BEHE, 1997, p. 241).

Michael Behe (1997), que por sua vez se auto intitula católico-romano, deixa claro que sua teoria bioquímica (a qual “modestamente” compara às descobertas de Newton e Einstein) demonstra a existência de um “planejamento inteligente”, de Deus. O autor denuncia a intolerância dos darwinistas fervorosos, em especial Richard Dawkins, por ter escrito que todos os que negam a evolução são ignorantes, estúpidos ou insanos, acrescentando que Darwin tornou possível ao homem ser um ateu intelectualmente realizado. Também aponta a coerção de Daniel Dennett, ao comparar os crentes religiosos a animais selvagens, que precisam ser enjaulados e ser impedidos de informar mal seus filhos sobre a verdade da evolução, que para ele é tão evidente.

Rémy Chauvin reconhece que todos que atacam o darwinismo são acusados de criacionistas (o que para ele não procede, pois o criacionismo também não explica coisa alguma, opinião compartilhada no presente artigo). E desabafa: “evoquei atrás o espanto que tomou conta de mim quando testemunhei, pela primeira vez na minha vida, o desvio darwinista para a violência nas conversas, e mesmo para a injúria” (CHAUVIN, 1997, p. 14). O autor apresenta os comuns argumentos utilizados pelos darwinistas: que quem combate a teoria “não podem estar de boa fé, ou então não leram toda a bibliografia sobre o assunto; se o fizeram e continuam a não estar convencidos, é porque ela não era suficientemente completa; se o fosse, rapidamente se transformariam em darwinistas…!” (CHAUVIN, 1997, P. 59). Narra que, em uma de suas palestras, um dos conferencistas comparou aqueles que não acreditavam excessivamente no darwinismo com os defensores da terra plana pelos quais Hitler se interessara.

O biólogo de Sorbonne conta que, quando seu amigo pretendeu falar com Dawkins sobre evolução, este fez uma pergunta: “acredita em Deus?”, sendo a resposta afirmativa, virou as costas. Seu amigo, então, questiona a esposa de Dawkins: “Minha senhora, o seu marido deve ter um grande temor a Deus!” “De modo algum”, respondeu a esposa. “Deus é que deve ter um grande temor ao meu marido”. Entendeu, deste modo, em torno de que girava a controvérsia.

Outrossim, o próprio Popper é utilizado ora a favor de criacionistas (quando afirma, em sua Autobiografia Intelectual de 1974, que a teoria evolucionista é metafísica, porque insuscetível de ser refutada por prova, embora tenha dito em outra passagem que a seleção natural é que não seja refutável), ora a favor dos evolucionistas (em 1980, teria se retratado em “Natural Selection and the Emergence of Mind”, afirmando que, ao invés de irrefutável, a seleção natural seria testável, embora haja exceções à regra, tal como em tantas teorias biológicas; e considerando, a aleatoriedade das características das variações da seleção natural, a ocorrência de exceção não seria a regra).

 

4 A possibilidade de invalidação da teoria evolucionista de Darwin

Há vários cientistas que questionam as premissas da teoria de Darwin. Pela limitação dos conhecimentos em biologia (já que a área de conhecimento é jurídica), traremos nesse tópico alguns autores e discussões citados pelo biólogo francês Rémy Chauvin (1997). A resistência da difusão e reconhecimento dessas ponderações talvez se dê mais pelos argumentos acima expostos (da “guerra” entre ciência e religião) do que pelo seu embasamento científico. Ou, simplesmente, porque toma-las como certas seria o mesmo que substituir toda a teoria da seleção natural de Darwin pela simples frase do também inglês, Sheakespeare: There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your philosophy (Hamlet Act 1, scene 5). Por outro lado, Rémy Chauvin (1997) comunga da opinião que, embora não se tenha nada de substituição ao darwinismo, isto não significa que a teoria não esteja comprometida.

O biólogo de Sorbonne combate os argumentos dos principais defensores do darwinismo, sob o entendimento de que o assunto vem sendo tratado como uma crença: ou se acredita em Darwin e na ciência, ou em Deus, não deixando os adeptos de uma ou outra corrente uma terceira opção, a de que ambas são fundadas em premissas equivocadas (a qual é aderida no presente trabalho). Entende que as mutações existem na natureza, mas mudar não significa evoluir, e a descrição das modificações das espécies não comprovam, por si, a teoria evolucionista. “Aquilo que é chocante é a pretensão ingênua de escamotear o problema, atribuindo à seleção natural todos os poderes que eram atribuídos, não menos ingenuamente, à Providência” (CHAUVIN, 1997, p. 268).

Há afirmações interessantes dos darwinistas sobre o progresso: “Deixou de haver mistério porque o mistério foi resolvido” (Dawkins, 1986, apud Chauvin, p. 243), ou “o aspecto de um animal, a sua fisiologia e o seu comportamento são, podemos afirma-lo, perfeitamente adaptados… porque, se o fossem menos, teriam sido substituídos por caracteres superiores por meio de mutações, no decurso dos milênios” (Alock, apud Chauvin, 1997, p. 244).

Percebe-se que a teoria da seleção natural implica a ideia de aperfeiçoamento. Por outro lado, os não-evolucionistas questionam: “Por que não há-de uma ameba ser tão perfeita, no seu funcionamento, como um  homem? (Wesson). Não tenho qualquer dificuldade em concordar com ele” (CHAUVIN, 1997, p. 244).

Dawkins, biólogo, entende que nada conta verdadeiramente a não ser o gene, do qual todos os organismos não são mais do que o suporte efêmero. Diante da angústia e egoísmo da vida, os genes seriam transmitidos sem detrimento de alguém ou alguma coisa, desprovido de sentimentos. Para Rémy Chauvin (1997), além de simplificar algo que a filosofia têm por demais complexa, Dawkins não reconhece o comportamento animal, supondo que todos estão em plena angústia, e despreza a verdade de que o Universo não é atroz nem perfeito, é as duas coisas ao mesmo tempo.

Rémy Chauvin esclarece que o filósofo Dennett traz em suas explicações o fato de que, dependendo a consciência de estruturas físicas complexas e de grandes moléculas mais pesadas que o hidrogênio e o hélio, uma vez que nós existimos, o Universo tem de conter esses elementos. Entretanto, Rémy Chauvin entende que dessa premissa se retira o inverso: a consciência só existe porque essas moléculas existem na matéria. Para Dennett, um processo algorítimico inicial é sem espírito e sem objetivo, que adquire gradualmente sentido e inteligência à medida que vai se desenvolvendo, sendo a consciência uma construção à qual a matéria chega a complicar-se. Porém, embora diga que a “máquina” atende a uma regularidade de complexo de normas, nega serem estas “leis” (como se ao negar seu título retirasse a exatidão da similitude) (CHAUVIN, 2007).

Ressaltando mais uma vez que a raiz da oposição dos darwinistas é teológica, Rémy Chauvin contrapõe o argumento de Dennett, baseado nos conceitos trazidos pela física quântica, ciência que deve ser revisitada pelos biólogos, segundo ele. Afinal, a noção física de espaço, tempo e finalidade, com os estudos da física quântica, foram profundamente modificados. Não se concebe mais o tempo em uma ideia linear de passado, que caiu no nada, presente, que “existe”, e futuro, que ainda não é, tampouco com uma separação entre o objeto e o observador, fruto do dualismo cartesiano. Segundo físicos como Archidiacono, Capra, Fantappié, Wel, Beauregard, a noção de existência depende de causas passadas e finalidades futuras, bem como a compreensão do objeto depende das condições do observador. A consequência para a biologia é que, se os seres vivos colocados no passado, presente e futuro estão ligados entre si e pertencem a uma estrutura espaço-temporal estática e unitária, a passagem dos seres pela era paleozoica à mesozoica não pode ser vista como um fenômeno estritamente determinista (darwiniano).

Há algumas discussões interessantes sobre partes do corpo humanos tidas como “evoluídas”. Dentre elas, a interpretação que é dada a existência de cérebro. Nesse ponto, elucidador comentário:

O cérebro de alguns animais parece ser muito mais desenvolvido do que aquilo que são as suas necessidades. Por que razão tem o gorila o cérebro tão grande, se leva uma vida quase inactiva (sic) nas florestas, onde os alimentos são abundantes e ele não tem inimigos? Por que razão tinham os primeiros representantes do género Homo um cérebro bem mais desenvolvido do que o dos macacos actuais, se o modo de vida de ambos, de caçadores-recolectores (sic), era exactamente (sic) o mesmo? E por que razão tem o elefante, de quem não conhecem inimigos, um cérebro tão grande e instintos tão desenvolvidos? Por que razão tem o golfinho, que vive uma vida idêntica à da foca, um cérebro tão grande e instintos tão espantosos? Não se percebe como pode este órgão, com uma tão grande dimensão, contribuir para o êxito da reprodução, como pretendiam os darwinistas. Em particular, por que razão se encontram os macacos, os gorilas, os orangotangos, e mesmo os chimpanzés, e sobretudo o macaco africano (Pan paniscus) em vias de extinção? Esta aventura do cérebro só aproveitou os homens (CHAUVIN, 1997, p. 82).

A seleção natural é baseada em três generalizações: 1) os membros individuais de toda espécie variam, de alguma maneira, uns com relação aos outros, em múltiplas características, tanto de cunho estrutural como da ordem do comportamento; 2) a variação individual recebe algum grau de hereditariedade; 3) os organismos se multiplicam numa taxa que excede a capacidade do ambiente de mantê-los vivos, o que tem como consequência inevitável o fato de que muitos têm de morrer (HOWARD, 2003).

Os darwinistas remetem-se ao conceito de “adaptação”, tida como um problema posto pela natureza e a uma solução que lhe é trazida pelo organismo, quando um organismo faz mutações necessárias para sobreviver e se reproduzir. O evolucionista Dunbar a define nos seguintes termos: 1) existem variantes de determinados caracteres, 2) alguns deles podem ser herdados; 3) algumas variantes estão melhor adaptadas que outras; 4) estas variantes melhor adaptadas contribuem mais para o conjunto dos genes das gerações futuras (o que chama de “fitness) (CHAUVIN, 1997).

Entretanto, Remy Chauvin chama a atenção ao fato de que esses conceitos falham justamente na explicação da forma pela qual a adaptação faz crescer a “fitness”. Acrescenta que não é possível distinguir os caracteres “adaptados” ao ambiente daqueles que o não são, ou que o são menos, já que, no exemplo de um cavalo, a explicação para sua aptidão para a corrida não pode ser, por exemplo, o seu sistema nervoso e o seu sistema respiratório, já que, se ele ruminasse como o boi, talvez como este não desenvolvesse sua capacidade. Conclui-se que o cavalo corre depressa porque é um cavalo e não um boi, simplesmente. A seleção natural não explica a ‘origem’ das novas variações, mas apenas a sua extensão ulterior. E cita Dobzhansky (CHAUVIN, 1997, P. 70):

Trata-se de um princípio mensurável, mas, na prática, é extremamente difícil medi-lo. Ainda não foram encontrados métodos satisfatórios de medição, especialmente no que diz respeito à adaptação das populações; é por isso que são por vezes colocadas questões singulares, mesmo pelos biólogos: em que sentido pode a humanidade dizer que está melhor adaptada do que as moscas, as algas ou uma bactéria? … (sic) Não se pode responder a estas questões com precisão, e esta dificuldade atesta o estado pouco satisfatório da nossa compreensão do fenômeno da adaptação e do seu papel na evolução.

Rémy Chauvin continua a corroborar o pensamento de Slobodkin, o qual afirma que nenhuma medida única pode ser considerada um indicador válido do sucesso evolutivo, até porque geralmente as circunstâncias do ambiente também se modificam, não sendo possível verificar se um gene apresenta vantagem seletiva comparativamente à situação anterior (porque esta não mais subsiste). Nesse sentido, cita exemplos de espécies raras que duraram mais tempo que outras abundantes, e entende que, como a extinção de populações ou indivíduos não está relacionada à raridade, e os períodos que se produz uma extinção maciça são também períodos com taxas elevadas de alteração genética, não há uma correlação entre o sucesso evolutivo e a abundância ou taxa de reprodução. Essa observação contradiz a teoria da evolução em si e teoria do gradualismo de Darwin (premissas 1 e 3 na classificação de Mayr, acima citada).

Ainda sobre adaptação, é comum o argumento de que a seleção natural é conservadora quando o meio, ao qual a composição genética esteja adaptada, permanece constante ao longo do tempo; entretanto, se um dos fatores que a condicionaram se modifica, a seleção passa a agir sobre os diversos equilíbrios gênicos da população, de modo a torna-los de acordo com as novas condições ambientes, em um comportamento então inovador (DELSOL, apud CHAUVIN, 1997, p. 60). Neste ponto, Rémy Chauvin esclarece que é impossível medir a adaptação ao meio, já que seria um círculo vicioso dizer que para viver num meio, é necessário estar adaptado a ele, e se se vive nesse meio, é porque está aí adaptado.

“O darwinismo postula a sobrevivência do mais apto. Ora, o mais apto é aquele que sobrevive. Portanto, o darwinismo postula a sobrevivência daquele que sobrevive, o que é uma tautologia” (CHAUVIN, 1997, p. 55). A “adaptação” não é uma “explicação” de como seu deu a construção evolutiva ao longo de milênios, mas somente uma “descrição” do que está se estudando. A ideia de progresso, não é uma sequencia, já que, diante da enormidade da criatividade da vida, age de forma imprevisível e “não depende forçosamente da adaptação”. A evolução segue o seu caminho independentemente das exigências imediatas do meio e mesmo das necessidades imediatas do organismo” (CHAUVIN, 1997, p. 87).

Referido autor traz alguns exemplos clássicos de biólogos evolucionistas, elencando-os como “absurdos divertidos”: o que explicaria o fato de um morcego necessitar de orelhas externas extremamente desenvolvidas e as andorinhas não as ter, embora ambos tenham desenvolvida detecção acústica? Se justifica que a fêmea de uma ave-lira prefira um macho que negligencie a ninhada porque, deste modo, ele evita chamar a atenção dos predadores? Ou uma preguiça, que desce da árvore para enterrar seus excrementos (embora corra risco face a outros predadores, em decorrência de seus lentos movimentos), seria justificativa que isso fertilizaria a árvore, seus alimentos serão mais ricos e assim terá mais descendentes do que aquela preguiça que deixa cair os excrementos ao acaso? (CHAUVIN, 1997).

Outra questão que salta aos olhos é a existência de órgãos que não há utilidade encontrada, que os darwinistas trazem como exemplo a cauda dos picões, que, embora sem aparente característica para adaptação (mas dispende energia para mantê-la), permitiria a eles, enquanto trepam, apoiarem-se no tronco da árvore (desconsiderando o fato de que muitas aves trepadoras não possuem estas penas e trepam com a mesma agilidade). Em geral, a teoria da seleção natural é usada também para permitir a subsistência de órgãos inúteis ou prejudiciais (como o rabo do pavão, hastes dos veados, ou o apêndice do homem), porque deve-se tomar a totalidade do ser. Ou, pelo contrário, dizer que as características inúteis foram eliminadas porque os animais tendem permanentemente para maior perfeição ou economia. Mesmo que as conclusões sejam conflitantes entre si, as pesquisas são trazidas para comprovar a evolução, sob o argumento de que, no primeiro caso, os organismos vivos encerram uma maquinaria extraordinária, na qual o órgão supostamente inútil deve ter tido alguma utilidade; enquanto para a segunda constatação, traz exemplos de como as espécies evoluíram porque aquela característica tida por inútil não se manifestou em uma outra espécie similar. Interessante é observar que, segundo a teoria evolucionista, a mesma explicação serve para tudo: se o órgão desaparece, foi decorrente da evolução, e se não desaparece, também é por causa da evolução. Ninguém demonstra, contudo, o exato momento da seleção natural. A biologia trouxe uma gama de dados sobre a natureza, porém “o mecanismo da evolução continua a ser igualmente obscuro para nós” (CHAUVIN, 1997, p. 101). Os órgãos inúteis também contradizem a teoria do gradualismo.

Embora a genética das populações tragam algumas investigações importantes, o autor considera “extravagante” tomar experiências que duraram no máximo alguns meses para concluir sobre a imensidade dos tempos biológicos. E “de todas as loucuras que uma imaginação desprovida de razão levou os darwinistas a debitar, a sociobiologia é certamente a mais espantosa” (CHAUVIN, 1997, p. 113). Segundo o autor, a única teoria devidamente bem demonstrada é a “seleção da parentela”. Afinal, para a medição do comportamento animal, também a sociobiologia se depara com inúmeros problemas, dentre os quais o fato de que o animal em liberdade não se comporta de modo algum como um animal em laboratório. Há o que chamam de “efeitos de grupo” em todas as espécies em cativeiro, que perturbam a fecundação. E no que diz respeito às técnicas de observação da Natureza, as variantes fisiológicas nem sempre são exatamente avaliadas. No investimento parental (no qual se tenta provar que os pais investem mais num sexo dos filhotes que outros), por exemplo, já se chegou à conclusão que é impossível afirmar que a relação entre os sexos nos mamíferos é adaptativa, já que os dados são demasiadamente reduzidos, enquanto a diferença entre as espécies demasiadamente grandes.

Entre os paleontológicos, o que prevalece é o entendimento de que é a estase, e não a alteração gradual, o estado habitual das espécies. Darwin defendia que as transições eram graduais e a Natureza não dá saltos (natura non facit saltum): ela apenas pode agir, dizia ele, por gradações imperceptíveis. O fundo do pensamento darwinista é que “mudança é igual a progresso”. Só que os paleontologistas apontam para extinções não uniformes ao longo do tempo, mas em breves períodos, e que se estendem à escala mundial.

De acordo com Raup e Sepkovski, quatro ou cinco grandes extinções situam-se claramente acima da média: a grande extinção do permiano, que talvez tenha eliminado mais de 90 por cento das espécies marinhas que viviam em águas pouco profundas, há 225 milhões de anos; deu-se em seguida o desmoronamento do cretáceo, que suprimiu os últimos dinossauros, bem como diversos animais marinhos, há 65 milhões de anos; as outras três extinções são bem conhecidas dos paleontologistas, mas impressionaram menos os espíritos; duas delas ocorreram antes do permiano, no ordoviciano e no devoniano, e a terceira no trias (entre o permiano e o cretáceo) (CHAUVIN, 1997, p. 200).

Não há explicações para essas extinções, já que podem ter sido não por uma inferioridade genética, mas pura e simplesmente um acidente maciço, uma vez que não atingem todos os animais (no pleistoceno houve extinção em massa de mamíferos, mas nada aconteceu aos animais marinhos). As extinções em massa assinaladas em diferentes períodos geológicos afetaram grupos sem relação uns com os outros, que viviam em habitats diferentes, o que de modo algum evidencia que essas espécies não estavam adaptadas ao seu meio. Deste modo, percebe-se a crítica dos paleontologistas ao gradualismo proposto por Darwin, diante da raridade das formas de transições fósseis, sendo incompreendido o aparecimento e desaparecimento das espécies, geralmente muito bruscos. Essa hipótese estaria a falsear a teoria da evolução em si, a teoria do gradualismo e a teoria da seleção natural (já que não seria a competição entre os grandes números de indivíduos por recursos limitados que levaria uma espécie a se extinguir).

Os embriologistas criticam o darwinismo porque, ao insistir unicamente nos genes e no DNA, esquecem que são fatores essenciais, mas não únicos, da evolução do embrião, pois não consideram o organismo. Seria o mesmo que ligar um traço de comportamento a um caráter único, o que não pode ser admitido pela genética moderna, já que é todo o genoma que está envolvido. Seguido a vários exemplos, conclui Rémy Chauvin que, ao adotar os genes, o darwinismo ignora o organismo como um todo; por ter ignorado a embriologia, o darwinismo se confronta com problemas inultrapassáveis, como as homologias, especialmente as das patas anteriores e posteriores.

Por fim, um dos exemplos trazidos mais interessantes para contrapor a teoria sobre a transmissão dos caracteres adquiridos, cita a experiência com aves feita por Eberhard Gwinner. Uma espécie de aves, toutineiras da Áustria, migra em linha reta para as Dornelas, depois fazendo movimento oblíquo para o Egito. O mesmo acontecia com a espécie de toutineiras da Alemanha, que hiberna para Marrocos, depois em linha reta para Gibraltar. As aves congéneres colocadas em uma gaiola, movimentavam-se na mesma época para a mesma direção, como se tivessem um mapa interno e um relógio. Ambas as espécies evitavam a travessia do Mediterrâneo, pois não conseguiriam atravessar em uma única etapa. Ao cruzar as duas raças de toutineiras, os híbridos colocavam-se, nos momentos das migrações, na linha divisória intermediária entre as duas direções, o que significa que, se fossem deixados em liberdade, seguiriam uma direção que os levaria a atravessar o Mediterrâneo (e fatalmente morreriam). O mais incrível da experimentação desenvolvida foi observar que, quando as toutineiras selvagens da Alemanha deixaram de migrar para o Marrocos, tendo passado a fazê-lo para a Grã-Bretanha, as toutineiras criadas em cativeiro (sem contato com as pares livres) também mudam seu movimento na direção da Inglaterra, e não para Marrocos! Com essa observação, põe-se em cheque a teoria da transmissão hereditária de uma experiência adquirida.

Está solidamente ancorada no subconsciente dos darwinistas a noção de ‘progresso’ evolutivo. “Contudo, a única noção objetiva que podemos retirar da observação da evolução é a noção de mudança ou, se se quiser, de complicação crescente. (…) Aquilo que escapa aos darwinistas é que essa complicação crescente, que é incontestável, “não é necessária” (CHAUVIN, 1997, p. 241). Cita as bactérias, que são menos complicadas que os homem, porém atravessaram milhares de milhões de anos sem sofrer grandes adaptações. Essa análise estaria a contrapor a teoria do gradualismo, e a teoria da evolução em si (itens 1 e 3 da classificação de Mayr, supra mencionada).

Darwin teria dito que, de acordo com sua teoria, as formas mais recentes têm de ser superiores às mais antigas, porque cada nova espécie nasce em consequência da vantagem que possui sobre as formas precedentes na luta pela vida. A única prova desta vantagem, segundo Rémy Chauvin, é que as formas novas destroem as antigas, fato que foi por vezes observado, entretanto, não é a regra geral, já que, não menos frequentemente, as formas antigas persistem perfeitamente ao lado das novas. “Os darwinistas que citam sempre o primeiro membro da alternativa, esquecem-se sistematicamente do segundo (CHAUVIN, 1997, p. 242, grifos originais).

A teoria de Darwin prevaleceu aceita porque supostamente baseada em premissas falseáveis (mesmo considerando que nem Popper é uniforme na sua opinião sobre ser ela metafísica ou refutável empiricamente). Embora ninguém tenha demonstrado empiricamente como se deu a origem da vida (a origem comum de todos os seres, a qual fora se tornando mais complexa, e as espécies se desenvolvendo ao acaso), o evolucionismo é então ensinado como uma verdade nas escolas, enquanto o criacionismo é tido como anticientífico. Talvez se fosse ensinado às crianças que não existem verdades absolutas quanto à origem das espécies (aliás, tudo é relativo na Natureza), pudesse a lacuna ser suprida por algo que, de tão óbvio, somente com o olhar livre de vícios de uma criança pudesse ser enxergado.

Mister se faz alertar que negar a teoria evolucionista de Darwin não significa admitir que as teorias que ele teria contrariado estariam corretas, tais como a teoria cristã de criação do mundo. Afastar a teoria darwiniana da evolução das espécies e substituí-la pela concepção religiosa também não modifica o ângulo de visão de mundo, já que, conforme ressalta Heron José de Santana Godilho (2004), o cristianismo, herdeiro de ideias aristotélicas e estoicas, continuaria a excluir os animais de qualquer consideração moral, utilizando-os em rituais desportivos ou religiosos, de modo que várias espécies foram extintas da Europa. No mesmo sentido, Édis Milaré e José de Ávila Aguiar Coimbra (2004) destacam que a tradição judaico-cristã reforça a posição de suposta supremacia absoluta e incontestável do ser humano, como o versículo 28 do capítulo 2º do Gênesis (‘crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra, e subjugai, e dominai’); a passagem, interpretada fora do contexto do gênero literário em que foi vasada a Bíblia, reforça a base do comportamento despótico do ser humano sobre os demais seres, na prepotência da parte que se sobrepõe ao todo.

O problema é que dar como inválida a teoria de Darwin não seria suficiente. Como bem observa Thomas Kuhm (2006, p. 95), embora a emergência de novas teorias seja geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal, o meio científico, para dar como inválida uma teoria, necessita de uma teoria nova para colocar em seu lugar. “Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua”  (KUHM, 2006, p. 108).

Mas o ideal não seria justamente o contrário, primeiro assumir a possibilidade de uma teoria estar errada, questioná-la, para ajudar a atenção a buscar o mais diverso tipo de resposta, na tentativa de libertá-lo o mais possível das amarras, e então direcionar o olhar a enxergar outros tipos de teorias?

 

5 a necessidade da quebra do paradigma ANTROPOCÊNTRICO NO DIREITO

Não foi só no ramo das ciências naturais que a teoria evolucionista encontrou solo fecundo, aliás, pode-se dizer que foi exatamente na sua aplicação ao comportamento humano que a teoria mais foi explorada, decorrente do paradigma científico que dominava a época. Como ressalta Alcântara Nogueira, “no século XIX não houve doutrina científica que mais colocasse o saber humano em movimento do que a chamada teoria da evolução” (NOGUEIRA, 1980, p. 63).

Na análise do conceito ideológico do Direito na Escola do Recife, fazendo as ressalvas das profundas divergências daquela Escola, Alcântara Nogueira esclarece que, enquanto Tobias Barreto tenha se ajustado mais sob o manto de um monismo filosófico, Clóvis Beviláqua foi sectário do evolucionismo, e tal como Jhering, incorporou as ideias de coação e luta pela existência, chegando até a criar uma teoria da evolução do Direito. Tobias Barreto, no entanto, chegou a incorporar os conceitos de herança e adaptação, mesmo que divergindo do “hiperdarwinismo” de alguns que tentavam descobrir instituições e organizações jurídicas até nas colmeias. Silvio Romero incorpora a teoria darwinista, e conforme assinala, entendeu a “seleção natural levada para o domínio da vida social” (NOGUEIRA, 1980, p. 124).

Sobre a evolução do ser humano, interessante trazer mais umas palavras do aclamado Darwin:

O homem tendo que sofrer os mesmos males físicos dos outros animais, não tem nenhum direito à imunidade contra os que são a consequência da luta pela existência. Se não tivesse sido submetido à seleção natural, não teria certamente nunca se elevado ao grau humano. Quando vemos, em diversas partes do globo, imensas superfícies de terreno mais férteis, povoados por alguns selvagens errantes, mas que seriam capazes de receber e alimentar numerosos casais prósperos, se poderia arguir que a luta pela existência não foi bastante severa para empurrar o homem para a frente e elevá-lo ao seu nível mais elevado. A julgar pelo que sabemos do homem e dos animais inferiores, sempre houve bastante variabilidade nas suas faculdades intelectuais e morais para que a seleção tivesse determinado o seu aperfeiçoamento contínuo. Esta progressão reclama certamente o concurso simultâneo de numerosas circunstâncias favoráveis; mas pode-se duvidar que mesmo neste caso, elas tivessem sido suficientes sem a condição de uma muito rápida multiplicação e do excessivo rigor da luta pela existência que lhe é a consequência lógica” (DARWIN, 1933, p. 163-164, grifos acrescidos).

Embora Darwin se refira que o contínuo aperfeiçoamento e  impulso da “seleção natural” finalmente tornou o homem superior aos “animais inferiores”, Darwin é utilizado pelos defensores dos animais, cuja interpretação da teoria evolucionista destaca que, como todos os seres vivos derivam de um ancestral comum, a variação seria simplesmente de grau. Como Tagore Trajano de Almeida Silva (2012) ressalta, a teoria é especialmente utilizada na defesa dos demais primatas, os quais fariam parte do mesmo grupo classificatório que os humanos. A teoria também foi utilizada na impetração de um habeas corpus em favor de um Chimpanzé, no caso Suiça v Zoológico de Salvador (GORDILHO, 2008), e vem sendo amplamente utilizada nas publicações desenvolvidas pelo Nonhuman Rights Project, sob a liderança de Steve Wise (2000).

Por outro lado, a teoria de Darwin também serve de fundamento para a aplicação dos direitos fundamentais centrados unicamente na pessoa humana:

As leis naturais exprimem, assim, antes possibilidades do que determinismos necessários. Em todos os níveis, da cosmologia à vida social, passando pela geologia e a biologia, o caráter evolutivo afirma-se sempre mais claramente. Ou seja, a ordem do universo só pode ser mantida por meio de um processo incessante de auto-organização, com a permanente adaptação ao meio ambiente. […] Por outro lado, no quadro do evolucionismo, observou-se que, diferentemente das outras espécies vivas, a humanidade não evolui apenas no plano biológico, mas também no plano cultural; e que, graças a essa dimensão cultural, já se abriu ao ser humano a possibilidade de interferir sobre a evolução biológica de todas as espécies vivas, inclusive a sua. (COMPARATO, 2010, p. 42).

Quando passa a discorrer sobre a importância do evolucionismo para fundamentar a teoria de direitos fundamentais aplicada unicamente aos seres humanos, Fábio Konder Comparato indica que o conceito de pessoa humana é de maior importância para a teoria jurídica em geral e para o sistema de direitos humanos em particular. Afinal, “tudo gira, assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste, afinal, a dignidade humana?” (COMPARATO, 2010, p. 13).

Entretanto, como explica Hans Jonas, a vida, na doutrina da evolução, aparece como uma conquista própria, na qual o seu equipamento estrutural que lhe permite viver é resultado de um dinamismo contínuo. A vida passou a ser uma “aventura sem um plano nem um fim predeterminado” (JONAS, 2004, p.56). Como consequência da evolução, tem-se o efeito colateral da eliminação da essência imutável. Nas interações entre ambiente e organismo, o fato de a espécie não ser fixa, associado ao princípio do ambiente, faz com que o sujeito da vida seja despojado de determinações originárias e permanentes, enquanto o papel do ambiente, com suas exigências e critérios de seleção, passa a ter importância máxima. A autoconservação é o mínimo que resta da essência originária da vida; não existe pensamento na ameba, ou na coluna vertebral, nem no polegar oponível: cada uma das coisas foi produzida no seu tempo, sem previsão, em um espaço da situação vital em transformação (JONAS, 2004).

A necessidade passa a ser a soma global na interação de partes separadas, as quais não realizam um fim especial na realidade; existe uma concordância das “causas” sem que exista qualquer “razão” para que o sistema seja assim como é. É o lema: “necessidade mais contingência”, que pode se aplicar em todos os aspectos da vida (JONAS, 2004, p. 59). Também se considera na teoria evolucionista o conceito de “perfeição”, ao ordenar as classes das espécies em uma escala na qual foram postuladas determinadas medidas de perfeição; cada estrutura representa uma “experiência no drama da adaptação”, aberta a revisões imprevisíveis, de modo que a outra espécie pode ser considerada uma realização mais perfeita do modelo original. Como nenhum fim intervém no mecanismo da seleção, a escolha do material que lhe é oferecido obedece a critérios mecânicos, mas que favorecem o “progresso” em determinadas direções, e o “favorecem” por eliminação, reprimindo formas não adaptadas (JONAS, 2004).

Desta feita, a teoria evolucionista de Darwin serviu de pano de fundo ideológico para que os seres humanos passassem a se utilizar dos recursos naturais de maneira desenfreada; afinal, se somos a espécie evoluída, todas as espécies subalternas deveriam ser utilizadas como meio para que supríssemos nossas necessidades.

Embora Heron José de Santana Gordilho acredite que a teoria da evolução tenha destruído a doutrina tradicional aristotélica da imutabilidade (ou fixidez) das espécies vivas – já que comprovaria que as diferenças entre os homens e os animais seriam apenas de grau e não de categoria, e por isso o homem não ocuparia local privilegiado na ordem de criação–, referido autor, ao refletir sobre as raízes do “especismo” e as barreiras espirituais entre as espécies, reconhece que

A própria teoria da evolução tem sido usada para justificar a visão tradicional de que os homens são superiores aos animais não-humanos, já que o mecanismo da evolução-sobrevivência dos mais aptos nos leva a conclusão de que o abate de animais para alimentação e outros propósitos decorre do cumprimento do seu papel na cadeia evolucionária. Assim, sendo a evolução um progressivo processo de seleção natural das espécies menos aptas para espécies mais aptas, apenas o homem, localizado no topo da escala dos seres, teria um status moral e jurídico especial (2004, p. 89-91).

De fato, a teoria da evolução das espécies, uma vez suprimida, deixaria então a lacuna para os biólogos responderem: de onde surgiu a vida e como ocorreram as mutações que fizeram toda a natureza ter essa complexidade e diversidade inesgotável é uma teoria que só pode ser dada por pesquisadores que tenham esse foco, que devem continuar com os experimentos científicos para buscar tal resultado. Nesse ponto, ouso acrescentar algo da observação de Thomas Kuhm: para que a ciência progrida, para que o pensamento realmente seja livre para criar, faz-se necessário o reconhecimento da crise pela ciência e descartar as teorias que não mais se sustentam antes mesmo que outras sejam colocadas em seu lugar.

Entretanto, na ausência de uma teoria que implique na diferenciação das espécies em graus de evolução (e enquanto os biólogos continuam sua “guerra de ciência e religião”), sugestionamos então repisar as concepções antropocêntricas que consideram o homem como “centro” e distante dos demais seres, e revisitar as posições racionalistas que partem do pressuposto que a razão é atributo exclusivo do homem e se constitui na finalidade última de todas as coisas.[iii]

Por certo, a influência da teoria evolucionista no Direito decorre do predomínio absolutista das ciências naturais e seu estatuto epistemológico-metodológico sobre todo o saber. Considerando este um dos efeitos do cartesianismo, Marcelo Pelizzoli (2007) observa que as ciências humanas passam a ser rebocadas pelas ciências naturais, “como se essas tivessem chegado ao âmago do real tão sonhado pela metafísica, mas pela via da matéria, do laboratório” (PELIZZOLI, 2007, p. 140).

Segundo o autor, também decorre da aplicação do método cartesiano, dentre outros fatores: a instituição do método como fundamental para a validação da teoria, contando mais do que o próprio resultado na vida prática; o reducionismo, ênfase na abordagem de elementos isolados, e fragmentação do saber e das disciplinas; a perda da dimensão da complexidade e da interdependência de fatores, com a substituição de uma visão sistêmica e sintética pela analítica; a concepção do “saber como poder: poder se liga ao empoderamento de um ego cogito ligado a um ego conquiro (eu conquisto, eu venço); a crítica e perda da tradição, do que não foi conquistado como saber não metódico; a perda da dimensão orgânica e viva da natureza (incluindo o homem e seu corpo), desligado de uma operação ecossistêmica e interdependente; a objetificação das relações homem-natureza e então homem-homem, com o predomínio da racionalidade dominadora sobre o “frio universo material” (PELIZZOLI, 2007) [iv].

A noção de “cientificismo, explicação totalitária de tudo o que é investigado através de leis da natureza cientificamente instituídas, dá respaldo ao positivismo, “como visão geral de dominação do mundo como fatos objetivos em evolução, a serem inventariados e à disposição da manipulação objetificadora” (PELIZZOLI, 2007, p. 142). Aliada a tal contexto, vem a noção de progresso material ilimitado, contrário às visões de progresso espiritual e humano adaptativo, bem como outras visões de mundo de diversas culturas.

Por certo, retomemos a teoria da evolução de Popper: não seria a filosofia responsável por traçar reflexões éticas sobre o suposto progresso da ciência (aliando-as a avaliação de suas consequências e utilização dos conhecimentos acumulados), ao invés de incorporar a teoria da evolução de Darwin para ilustrar a premissa da contínua superioridade científica? O Direito, na mesma linha da filosofia, não deveria retornar a questionar suas premissas sob o ponto de vista da ética, buscando uma visão sistêmica do conhecimento, ao invés de incorporar como verdades ideologias (e valores) dominantes nas ciências naturais, cuja refutação não pode ser dada por um jurista?

Como observa Klaus Bosselmann (2010), há uma crescente preocupação relativa à característica antropocêntrica inerente aos direitos humanos ambientais, segundo a qual a humanidade é compreendida em uma posição de superioridade e importância acima e à parte de outros membros da comunidade moral, cujas necessidades de sustentar o uso continuado de recursos é que determina o estado do meio ambiente, e não as necessidades de outras espécies. Essa corrente entende que as abordagens antropocêntricas perpetuam os valores e atitudes que se encontram na raiz da degradação ambiental, além de privar o meio ambiente de proteção direta e abrangente, reconhecendo seus valores intrínsecos. O autor admite que, embora em curto prazo as abordagens de um paradigma dos direitos humanos seria válido para a proteção das necessidades humanas de integridade ambiental, em longo prazo poderia ser vista como uma contradição em si mesma, e conclui ser melhor opção o desenvolvimento de todos os direitos humanos de uma maneira que demonstre que a humanidade é parte integrante da biosfera, que a natureza tem um valor intrínseco e que a humanidade tem obrigações para com a natureza.

Observando que a necessidade de uma quebra do paradigma contratualista racionalista de exclusão dos animais da esfera de consideração moral humana evidenciam um momento de crise, tal como atribuído por Kuhm, Tagore Trajano de Almeida Silva destaca as propostas de uma revolução científica traçada por Peter Singer, para quem a crueldade contra os animais estaria a ferir o fundamento ideal de justiça, e propõe conferir a estes um status moral privilegiado, e Tom Regan, que reivindica a abolição total do uso de animais pela ciência, indústria e caça, em razão do valor inerente que todos os animais possuem por serem detentores de uma vida (SILVA, 2011). Defendendo os animais como sujeitos de direito, capazes de reivindicar em juízo sua dignidade, conclui: “Cabe a nós, operadores do Direito, a tarefa de aprimorar e reinventar este Direito que se demonstra falho, assim como desenvolver alternativas para a vida de todos os seres na Terra” (SILVA, 2012, p. 204).

Marcelo Pelizzolli (2007), por sua vez, destaca a emergência do paradigma da ciência, desta feita ecológico (oikos e logos, a “racionalidade e sentido da casa”, no amplo e interdependente sentido do termo, envolvendo vizinhança, polis e o planeta, começando igualmente na mente humana). O paradigma ecológico é pensado em uma nova e ampla hipótese, transcendendo os interesses imediatos de nossa geração, em um diálogo mais profundo e interdisciplinar de um projeto civilizacional humanizador e ecológico.

Assim, verifica-se imperiosa e urgente a necessidade de que seja analisada a ótica antropocêntrica que leva à aplicação dos direitos fundamentais focados exclusivamente na pessoa humana e passe a refletir sobre o direito à vida dos demais seres vivos, considerando sua condição de seres com vida, simplesmente.

Afinal, os valores da liberdade e igualdade são considerados por Norberto Bobbio (2004) um ideal a perseguir, um valor, um dever ser. Esse sistema de valores decorre na aceitação pelo consenso em um dado período histórico, e que continua a se modificar conforme mudam os valores tidos por aquela sociedade.  Como o elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, Bobbio previa que, no futuro, poderiam emergir novas pretensões que no seu momento histórico nem sequer poderia imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. Avançando a essa previsão de Norberto Bobbio, visualizamos o dia em que toda a biosfera será considerada, e que os direitos fundamentais incorporarão a noção de que o mundo não gira em torno do homem, mas é parte de um ecossistema.

 

6 CONCLUSÃO

A teoria da validade das deduções lógicas de Karl Popper preconiza que numa teoria, a falsidade de uma premissa se transmitiria até a conclusão, e da mesma forma o sentido inverso. Afirma, baseado na teoria da evolução, que a ciência incorpora o acerto e, utilizando o método da experimentação e eliminação do erro, a ciência evoluiria.

Entretanto, conforme vimos, há notáveis exceções nas premissas da teoria da evolução de Darwin (teoria da evolução em si, teoria da origem comum, teoria da especiação, teoria do gradualismo, e a teoria da seleção natural); reconhecer que há exceções à regra, segundo a teoria das lógicas dedutivas, contaminaria a validade da conclusão.

Importante observar que dizer simplesmente que as espécies que existem sobreviveram à seleção da natureza não é a teoria darwinista. Isso é uma simples constatação. A teoria científica é a “explicação” de uma constatação, o conjunto de regras que relacionam as observações à conclusão.

A ideia trazida por Darwin em Origem das espécies, incorporada como premissa ideológica da aplicação antropocêntrica dos direitos fundamentais,  é de um egoísmo tão latente, e de uma presunção tão comumente antropocêntrica, que foi facilmente acatada pelo capitalista burguês, e tida como uma verdade para a ciência até então. Eis uma pragmática conclusão da teoria evolucionista de Darwin: se o homem é o ser mais evoluído, superior hierarquicamente a todas as espécies, e que, pela inteligência que lhe é peculiar, tem a capacidade de modificar o ambiente para adaptá-lo, logo o ser humano pode modificar o ambiente da maneira que  melhor entender, para sua “evolução”, para o progresso. Só os defensores dos animais tentam fugir dessa interpretação silogística, numa visão romântica da teoria darwinista. A fuga de teorias antropocêntricas, retomando o pensamento ético, no entanto, talvez seja o caminho mais sólido, embora mais complexo e espinhoso.

Porém, acredito que esse artigo tenha sido claro o suficiente para demonstrar que não se propõe discutir temas religiosos. Há refutações concretas à teoria de Darwin que serviriam para invalidá-la, sob o argumento científico. A “origem” das espécies ainda não foi encontrada. Ao invés de se discutir nos tribunais se deveriam ensinar nas escolas o evolucionismo ou criacionismo, deveriam se preocupar em ensinar a tolerância diante das diferentes percepções da realidade; quem sabe assim poderíamos finalmente encontrar algum progresso, não somente nas ciências, mas na convivência entre os seres.

Juntamente à teoria da evolução, as teorias cujas premissas naquela se sustentam perderiam a validade, tal como a concepção de “evolução da ciência” de Popper. Afinal, a ideia de “progresso natural” não estaria a fugir da própria lógica da vida? Se estamos em constante evolução (tomando esse termo pelo sentido corriqueiro, de passagem para estágio superior), a própria noção de morte como ápice do processo vital não seria também um contrassenso?

Destarte, porque fundamentada numa concepção evolucionista que fora refutada, as concepções jurídicas antropocêntricas que nelas se embasam também não se sustentam, razão pela qual entendemos que se faz necessária a adoção de um novo paradigma, partindo para uma visão ecocêntrica, substituindo as concepções influenciadas por teorias equivocadas, extirpando-as do nosso ordenamento jurídico.

A reflexão sobre a proteção dos direitos à vida dos seres vivos serve para ilustrar um dos efeitos do afastamento de uma teoria ideológica fundamental se dá no meio científico como um todo, inclusive no campo jurídico. A remoção da premissa da teoria da evolução das espécies poderia influenciar toda a nossa concepção antropocêntrica. Porque, se a teoria da evolução não é uma verdade absoluta, uma conclusão possível que podemos tirar disso tudo é que os seres vivos, todos, merecem respeito igualmente, sem evolucionismos.

 

7 REFERÊNCIAS

 

BACON, Francis. Novum Organum: Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. Tradução de José reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultura, 1997.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 2004.

BOSSELMANN, Klaus. Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 73 -109.

CHAUVIN, Remy. O Darwinismo ou o Fim de um Mito. Tradução Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

COIMBRA, José de Ávila Aguiar; MILARÉ, Édis. Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental, nº 36, ano 9, São Paulo, p. 9-41, outubro-dezembro de 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

DARWIN, Charles. The origin of species. Londres: Collector’s Library, 2004.

_____. A descendência do homem e a seleção sexual. Rio de Janeiro: Editora Marisa, 1933.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução Pietro Nasseti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.

HARMAN, Willis W; SAHTOURIS, Elisabet. Biologia revisada. Tradução: Henrique Amat Régo Monteiro. São Paulo: Editora cultrix, 2007.

GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Revista de Direito Ambiental, nº 36, ano 9, São Paulo, p. 85-109, outubro-dezembro de 2004.

______. Darwin e a evolução jurídica: Habeas corpus para Chimpanzés. XVII. Congresso Nacional do CONPEDI. Brasília. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008.

______. Espírito animal e o fundamento moral do especismo. In GORDILHO, Heron José Santana, Luciano Rocha. (coord.). Revista Brasileira de Direito Animal. v. 1, n. 1, (jan/dez. 2006). Salvador: Instituto de Abolicionismo Animal, 2006. p. 37-65.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9 ed – São Paulo, 2006.

JONAS, Hans. O princípio vida. Petrópolis: Vozes, 2004.

MAYER, Ernst. Isto é biologia: a ciência do mundo vivido. Tradução Claudio Angelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

MLODINOW, Leonard; HAWKING, Stephen. Uma nova história do tempo. Tradução de Vera de Paula Assis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

NOGUEIRA, Alcântara. Conceito ideológico do direito na escola do Recife. Fortaleza: Bando do Nordeste do Brasil, 1980.

PELIZZOLLI, Marcelo. Bioética como novo paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petropolis: Vozes, 2007.

PESSOA. FERNANDO. Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1993.

POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. 1902. Traduzido por Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho, Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,  2004.

RIDLEY, Mark. Evolution. 3ª ed., Malden: 2004. Blackwell Publishing, 2004.

SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e os Paradigmas de Thomas Kuhn: Reforma ou Revolução Científica na Teoria do Direito? Disponível em: <http://metodologiaufba.wordpress.com/2011/06/22/direito-animal-e-os-paradigmas-de-thomas-kuhn-reforma-ou-revolucao-cientifica-na-teoria-do-direito/>. Acesso em 10.07.2011

______. Animais em juízo. Direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Salvador: Editora Evolução: 2012.

SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2006.

WISE, Steve. Drawing the line: Science and the case for animal rights. Cambridge and Massachussets: Perseu Books, 2000.


[i] Aluna do curso de Mestrado da Universidade Federal da Bahia em Relações sociais e novos direito. Contato: martinhatorres@hotmail.com, martatorres@defensoria.ba.gov.br

[ii] Tradução proposta: Nós vamos agora discorrer um pouco mais detalhadamente a luta pela existência. No meu futuro trabalho, esse assunto será tratado, tal como ele merece, em uma maior profundidade.[…] Nada é mais fácil que admitir em palavras a verdade da luta universal pela vida, ou mais dificilmente – ao menos eu tenho percebido isso – o quanto constantemente essa conclusão aparece em minha mente.  Ao menos que isso esteja completamente enraizado na mente, eu estou convencido que toda a economia da natureza, devido à distribuição, raridade, abundância, extinção e variação será mal visto ou mal compreendido. Nós olhamos para a natureza com olhar de prosperidade e beleza, nós geralmente vemos superabundância de comida; nós não vemos, ou nós esquecemos, que os pássaros que cantam ociosamente ao nosso redor sobrevive majoritariamente de insetos ou sementes, e estão por isso constantemente destruindo a vida; ou nós esquecemos como largamente esses cantores, ou seus ovos, ou sua sujeira, são destruídos por pássaros e feras com presas; nós nem sempre lembramos que apesar de comida ser agora abundante, não o mesmo que acontece em todas as estações do ano. (DARWIN, 2004, p. 67-68)

[iii] Como a análise do fundamento moral para a crença na superioridade do ser humano diante dos demais seres vivos remonta à noção de espírito, passando pela filosofia grega e tradição religiosa judaico-cristã, além do racionalismo mecanicista de Descartes e Bacon e da concepção antropocêntrica da racionalidade de Kant, diante da limitação deste artigo remetemos à leitura de “Espírito animal e o fundamento moral do especismo” (SANTANA, 2006. p. 37-65).

[iv] Nesse sentido, remetemos à reflexão poética de Fernando Pessoa: Dizes-me: tu és mais alguma coisa Que uma pedra ou uma planta. Dizes-me: sentes, pensas e sabes Que pensas e sentes. Então as pedras escrevem versos? Então as plantas têm idéias sobre o mundo? Sim: há diferença. Mas não é a diferença que encontras; Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: Só me obriga a ser consciente. Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter cor? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente. Sei que a pedra é real, e que a planta existe. Sei isto porque elas existem. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. Sei que sou real também. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. Não sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas não digo isso: digo da pedra: ‘é uma pedra’, Digo da planta: ‘é uma planta’, Digo de mim: ‘sou eu’. E não digo mais nada. Que mais há a dizer? (PESSOA, 1993, p. 81-83).

Deixe um comentário