Arquivo de agosto, 2014

Manoel Gonçalves e Talita Romeu

1. INTRODUÇÃO.

Este trabalho propõe uma análise da evolução do conceito de entidade familiar, sob a perspectiva da evolução científica, trazida por Thomas Khun, em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas. Nesta, o autor trabalha com o paradigma dominante e a sua superação, implicando na revolução, na forma de resolver os problemas que o paradigma vigente no momento, não consegue mais.

Analisasse a evolução do que o Estado, reconhecia como entidade familiar e as rupturas que sofreram, no perpassar dos tempos. Vai-se do casamento, como a única forma de enlaçamento entre as pessoas, de sexo diferentes, e a qual, tinha sobre si o manto protetor do Estado, passando pela legitimação e previsão das Uniões Estáveis, pela Constituição Federal de 1998, até os dias de hoje, por meio do reconhecimento, feito Poder Judiciário, às uniões entre homoafetivos, por uma questão de justiça, devido a discrepância entre ordenamento jurídico e realidade social. Com isto, alterou-se o paradigma dominante, estabelecendo-se um nova, bem como, um novo momento da ciência: a normal.

Com o referencial teórico na obra supra, trabalharemos com a noção de paradigmas e sua superação, através da revolução científica, apresentando, posteriormente, análise da evolução do conceito de entidade familiar e, ao final, apresentando a conclusão.

2. A NOÇÃO DE PARADIGMA DOMINANTE E O SURGIMENTO DAS TEORIAS CIENTÍFICAS.

Com base nas ideias apresentadas por Thomas Kuhn, na obra A estrutura das revoluções científicas, pode-se afirmar que, em determinadas circunstâncias, uma comunidade científica, diante de lacunas e de questões dificilmente solucionáveis, sob a perspectiva do paradigma adotado, passa a buscar novos horizontes, utilizando diferentes métodos e formulando problemas de maneira diversa. Em síntese, trata-se da superação de paradigmas, que implica uma revolução no modo de resolver as questões com que se depara a comunidade científica.

Nesse contexto, o autor introduz a noção de paradigma dominante, que se revela como “um conjunto de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na observação” . Os membros da comunidade científica aprendem e desenvolvem suas atividades pautados nas premissas extraídas do paradigma adotado em sua época, produzindo o que Thomas Kuhn denomina de ciência normal. Contudo, ressalva que é possível verificar, mesmo sob esta atmosfera de normalidade, “uma área de penumbra ocupada por realizações cujo status ainda está em dúvida, mas habitualmente o núcleo dos problemas resolvidos e das técnicas será claro”

O surgimento de novas teorias científicas somente é viabilizado devido ao abandono e à substituição de crenças e procedimentos consagrados pelo paradigma, até então, dominante. Esclarece o autor que tal acontecimento está associado a descobertas realizadas pela ciência normal, a partir das quais os cientistas tornam-se aptos a explicar um número maior de fenômenos ou a aprofundar-se no estudo dos fenômenos já conhecidos .

A rigor, ciência normal não tem por objetivo realizar descobertas e produzir novas teorias, já que a comunidade científica praticamente se resigna aos métodos e aos conceitos ditados pelo paradigma dominante. Todavia, a consciência de anomalias – ou melhor, lacunas e incongruências na compreensão do objeto de estudo – desempenha um papel importante na emergência de novos tipos de fenômenos e, mais profundamente, de mudanças na própria teoria científica aceita, em dado momento histórico .

Ocorre que a crise do paradigma dominante impulsiona a comunidade científica a repensar os dogmas vigentes, reformulando problemas e buscando métodos novos para vencer as anomalias, ou melhor, os fracassos até então tolerados, na tentativa de manutenção da ciência normal: “nem os problemas nem os quebra-cabeças cedem ao primeiro ataque” .

Thomas Kuhn pontua que a solução para tais questões, geralmente, é de algum modo antecipada durante o período de normalidade, porém ignorada justamente porque a ciência não se encontra em crise .

A crise se apresenta, portanto, como um elemento catalisador do surgimento de novas teorias. Em geral, não há interesse e disposição da comunidade científica em substituir os instrumentos que, à luz do paradigma dominante, mostram-se eficazes para resolver os problemas por ele propostos . Por um lado, a aparente segurança na utilização destes instrumentos, proporciona o aprofundamento das teorias desenvolvidas naquele contexto pela comunidade científica; por outro, resiste-se com veemência aos sinais de fracasso dos mesmos instrumentos, para manter incólume o paradigma dominante.

Embora seja possível aplicar mais de uma construção teórica a um mesmo conjunto de dados, a multiplicidade de alternativas somente se verifica no período pré-paradigmático e, pontualmente, durante a evolução científica . Após os estágios inicias de desenvolvimento da ciência, estabelecido o paradigma dominante, tornam-se raros os esforços para formulação e solução de problemas além dos seus contornos, os quais apenas serão transpostos nos momentos de crise.

Segundo observa Thomas Kuhn, os cientistas chegam ao ponto de perder a crença em sua teoria e de cogitar caminhos alternativos, porém só abandonarão o paradigma em crise quando puderem substituí-lo por um novo paradigma dominante . É desse modo que eles respondem às anomalias e, consequentemente, às crises das teorias científicas: “decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua” .

A ciência normal entra em crise quando os problemas propostos são considerados como contra-exemplos do paradigma dominante. O período de normalidade científica, evidentemente, não assiste à ampla e completa solução de todas as questões formuladas, deparando-se com os chamados quebra-cabeças da ciência normal, ainda contornáveis sob a perspectiva do paradigma dominante. Uma visão mais crítica de tais quebra-cabeças, que os descortina e os transforma em contra-exemplos, instaura o estado de crise e prepara o cenário para o surgimento de uma nova teoria científica .

É certo que a ciência normal não cede facilmente às anomalias encontradas, empenha-se na aproximação da teoria à realidade fática, objetivando adequar o paradigma dominante antes de rejeitá-lo e de substituí-lo por outro. A comunidade científica costuma seguir a direção mais simples e menos traumática, evita grandes rupturas por meio da tentativa de conformação da teoria científica às novas demandas. Para Thomas Kuhn, “essa atividade pode ser vista como um teste ou uma busca de confirmação ou falsificação” .

O início da crise ocorre quando o paradigma dominante se torna obscuro, insuficiente para direcionar a atividade científica, incapaz de orientar a colocação e resolução de problemas. Como consequência das tentativas de manutenção da teoria então vigente, busca-se preservar o paradigma dominante por meio do “relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal” (até que se transcendam os limites impostos por esse paradigma, substituindo-o por outro).

Esse período de instabilidade científica corresponde ao que Thomas Kuhn denominou ciência extraordinária: busca-se preservar a qualquer custo o paradigma dominante, ao tempo em que outras possibilidades começam a ser cogitadas. Quando o paradigma dominante cede às anomalias e aos efeitos da crise, substituindo-se por outro, ocorre o surgimento de novas teorias, que inaugura mais uma fase de normalidade para a comunidade científica. Nesse aspecto, cita-se importante passagem da obra utilizada como premissa teórica deste trabalho:

Confrontados com anomalias ou crises, os cientistas tomam uma atitude diferente com relação aos paradigmas existentes. Com isso, a natureza de suas pesquisas transforma-se de forma correspondente. A proliferação de articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos, são sintomas de uma transição da pesquisa normal para a extraordinária. A noção de ciência normal depende mais da existência desses fatores do que da existência de revoluções.

Finalmente, destaca-se que os períodos de crise – ciência extraordinária – podem proporcionar diferentes resultados: (i) a emergência de um novo candidato a paradigma dominante e a consequente dificuldade para que ele seja aceito pela comunidade científica; (ii) a emergência de um novo paradigma, ainda que embrionariamente, antes mesmo que a crise esteja bem desenvolvida ou que tenha sido reconhecida de modo explícito pelos cientistas; (iii) a emergência de um novo paradigma passado muito tempo desde a primeira consciência do fracasso do paradigma até então dominante, hipótese em que se apresentam mais visíveis as características da ciência extraordinária .

3. A EVOLUÇÃO CIENTÍFICA COMO RESULTADO DA SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS NA TEORIA DE THOMAS KUHN.

A partir das premissas expostas no tópico anterior, Thomas Kuhn introduz o conceito de revolução científica, definindo-o como “episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior” . Esclarece que, os paradigmas em competição, representam modos incompatíveis de vida comunitária, razão pela qual a escolha por um deles já não pode estar baseada simplesmente nos parâmetros utilizados pela ciência normal, porquanto se tornaram questionáveis juntamente com paradigma dominante em função da crise .

A partir do momento em que as anomalias verificadas não podem ser solvidas pelos paradigmas existentes – apesar de todos os esforços de conformação da teoria científica –, torna-se inevitável a adoção de novos paradigmas . Emergem, então, num movimento mais de ruptura que de cumulação, as novas teorias científicas, que mais uma vez instauram a atmosfera de normalidade até que seus paradigmas fracassem e sejam substituídos por outros. Eis o ciclo de evolução – ou melhor, de revolução – científica exposto na obra de Thomas Kuhn.

As revoluções científicas, no sentido explicitado pelo autor, proporcionam não apenas o surgimento de teorias novas, mas também a mudança na própria concepção de mundo dos cientistas. Ao adotar um paradigma diferente, modificam-se os métodos, os instrumentos e a perspectiva da comunidade científica, que passa a propor seus questionamentos em novas direções. Antes disso, durante o período de ciência extraordinária, já se evidenciam mudanças, considerando que o aparato científico existente é redescoberto ao examinar os mesmos objetos sob pontos de vista originais .

O desenvolvimento da ciência normal, diante da estabilidade garantida pelos paradigmas dominantes, não corresponderá a verdadeiro progresso científico. Como já mencionado, em geral, não haverá interesse e disposição para a problematização de novas questões pelos cientistas, tampouco será fácil convencê-los a adotar outra perspectiva teórica em relação aos problemas já solucionados à luz do paradigma dominante. Será preciso que fatores externos, sobretudo a incongruência entre a teoria e a realidade fática, impulsione a busca por um novo ponto de vista . Literalmente, “[…] o progresso parece óbvio e assegurado somente durante aqueles períodos em que predomina a ciência normal. Durante tais períodos, contudo, a comunidade científica está impossibilitada de conceber os frutos de seu trabalho de outra maneira” .

Todavia, ainda que se verifique o surgimento de um novo candidato a paradigma dominante, não será fácil sua consagração pela comunidade científica, que deverá estar convencida do fracasso dos instrumentos existentes para a solução dos problemas postos. Será preciso convencer os cientistas de que o novo paradigma é a única forma de resolver um problema extraordinário, não assimilado pelo paradigma então dominante. Além disso, para a sua aceitação, o novo paradigma deverá preservar, ao menos parcialmente, a capacidade de resolução de problemas alcançada com base nos paradigmas anteriores .

Caracteriza-se a evolução científica, por fim, como um processo de desenvolvimento marcado por sucessivos estágios, separados por períodos de ruptura, de modo que a superação de paradigmas viabiliza a articulação e especialização do conhecimento. Segundo conclui Thomas Kuhn, “o resultado final de uma sequência de tais seleções revolucionárias, separadas por períodos de pesquisa normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno” .

4. IDEIA DE KUHN APLICADA À QUESTÃO DA EVOLUÇÃO DE ENTIDADE FAMILIAR.

Nas Constituições pretéritas à promulgada em 05 de outubro de 1988, a entidade familiar protegida pelo Estado, era aquela formada pelo casamento. Em algumas, a exemplo das de, 1934 e 1937, trazia que este, deveria ser indissolúvel. A sociedade teve sempre como família legítima, apenas àquela derivada do casamento. Qualquer forma variante de união, que divergisse desta, não receberia a proteção estatal. Esta, em termos de família, era o paradigma dominante da época.

De acordo com Paulo Nader:

“O Código Civil de 1916 foi concebido e elaborado em uma quadra histórica dominada pelo sentimento religioso, que situava o matrimônio como sacramento. Para a moral social, família era sinônimo de casamento. Natural que o Código, refletindo o pensamento predominante, centralizasse os institutos de Direito de Família na figura do casamento. Este, para o Código, era a espinha dorsal e constituía verdadeiro dogma. Dentro desta perspectiva, as construções jurídicas visavam a fortalecer o instituto do casamento, não contemplando as uniões extramatrimoniais. Estas eram absolutamente marginalizadas. Admiti-las seria relativizar a importância do casamento, dando aberturas para sedimentação de fórmulas alternativas de vida em comum” (2008, p.468).

Devido ao dinamismo social, a partir da segunda metade do século XX, o modelo de família vem sofrendo alterações.

O movimento e as ideias feministas, trouxeram mudança estrutural na imagem da figura feminina e a mulher passou a valorizar-se enquanto pessoa, saindo da condição de objeto subserviente a outorga matrimonial do marido. Mulher e homem, passaram, dentro do casamento, a terem direitos iguais. Propagaram-se as ideias de direito à autodeterminação sexual, intimidade, individualidade, privacidade e o afeto, passou a ser o objetivo precípuo para enlaçar-se a outrem. Formas diversas de união entre as pessoas surgiram.

Mudam-se as concepções e, a partir de agora, as anomalias surgidas, passam a questionar o paradigma então vigente na comunidade científica, pois este, não apresenta mais, as respostas que comumente dava. Há, assim, a alteração do modelo de família descrito acima, ou seja, apenas aquela oriunda do casamento, fazendo-se necessário, então, buscar a legitimidade pelo Estado, no intuito de que este, estendesse seu braço protetor às novas formas de união, classificando-as também como entidade familiar e, assim, igualando, à novas formas alternativas de união, os direitos que eram dispensados aos casados.

A Constituição Federal de 1988, então, em seu artigo 226, passa, além da família monoparental, a prever a união estável. Legitima-se agora uma nova ordem! O paradigma de ser o casamento, a única forma de entidade familiar é superado, englobando a ele, mais duas formas: a união estável e a família monoparental, passando este novo paradigma, a ser o centro da nova ciência normal estipulada.

Sérgio Gischkow Pereira aduz “a mudança foi profunda, muito profunda. Não é fácil assimilá-la desde logo, condicionados que estamos por séculos e séculos de cultivo da irrealidade e da hipocrisia neste ramo do Direito e por categoria diversas de pensamento” (p.237).

Conquista alcançada!

Conforme Gizelda Maria Saclon Seixas Santos, o §3º, do artigo 226:

“Este preceito constitucional revolucionou a Direito de Família, Arnold Wald, citado por Álvaro Villaça Azevedo, diz que ‘a grande aspiração do direito moderno foi libertar o homem de todas as limitações, responsabilizando-o simultaneamente por todos os seus atos”. Acrescenta, ainda, que ‘a comunhão e a unidade na família não mais têm como base um imperativo legal mas sim a vontade contínua dos seus membros, a colaboração consciente do marido, da mulher e dos filhos para alcançar um finalidade comum’. E mais: ‘nenhuma lei pode criar ou manter um afeto e uma compreensão que não existem. O direito hodierno quer manter a família graças à liberdade e à adesão diária e contínua de cada um dos seus membros, querendo substituir a subordinação, baseada na autoridade imposta, pela comunhão de vida voluntária e construtiva” (1996, p.58).

Apesar de a união estável passar a ser legitimada e legalizada apenas com a Constituição Federal de 1988, quando os integrantes de uniões informais, ou seja, as extramatrimoniais, batiam às portas do Poder Judiciário, buscando proteção, mesmo que não previsto em lei, este, dava guarida às pretensões dos mesmos. Independente de ausência legislativa, o Judiciário, não as deixava desamparadas.

Gizelda Maria Scalon Seixas Santos faz análise de que:

“os tribunais acompanharam a evolução social não permitindo que a família de fato ficasse desamparada. Neste terreno, como em muitos outros, não podemos desprezar a experiência do passado. Mesmo porque, como diz Parizatto, ‘a nova Constituição não trouxe mudança substancial na questão, porquanto apenas reconheceu status jurídico àquilo que era produto de construção jurisprudencial’. É que, nossos tribunais, diante das situações fáticas que lhes eram apresentadas, criaram precedentes que não podem ser ignorados” .(1996, p. 60-61)

Apesar de a Constituição Federal de 1988, ter se adequado aos anseios sociais daquele momento, ela não foi uma adequação completa. Conforme consta em Ata Circunstanciada da Assembléia Nacional, para futura promulgação da Constituição Federal de 1988, o constituinte Gastone Righi, ao ser questionado pelo então presidente da Sessão, se haveria mais alguma emenda para ser aprovada, respondeu que sim, seguindo seu discurso abaixo:

“O SR CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: – Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art 225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher, como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ Tem-se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação inclusive de grupos gays através do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão, no show do Fantástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto augusto, autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido , e pede que se coloque no §3º dois artigos: ‘Para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembléia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto constitucional, recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda” (Suplemento B, p. 209)

Após o pedido acima, a emenda foi aprovada, ficando o texto original, como encontra-se até hoje.

Já neste momento, o constituinte supramencionado, querendo realizar a emenda sugerida pelo também constituinte Roberto Augusto, sugere a aprovação da mesma, para evitar que, no futuro, quando passasse a viger a Constituição Federal, os intérpretes exercessem “malévolas interpretações”, estendendo os mesmos direitos do casamento à uniões ainda mais discrepantes do padrão tido como normal, ou seja, as de pessoas do mesmo sexo.

A união estável passou a romper com a ordem que anteriormente vigia, mas só estaria sob o manto protetor estatal, as que fossem formadas por homem e mulher. A distinção de sexo, fazia-se essencial!

Apesar de termos experimentado uma evolução nos costumes, a partir do momento em que a República Federativa do Brasil passou a prever, através de sua Carta Magna, as uniões estáveis, os nossos constituintes foram tímidos, deixando de abarcar, as de pessoas do mesmo sexo.

Tal timidez estatal, fez com que, durante muito e muito tempo, os homoafetivos tivessem diversos direitos violados. Estes, ínsitos a qualquer cidadão que faça parte da República, ferindo frontalmente princípios constitucionais garantidos, pelo simples fato de amarem e ligarem-se a uma pessoa do mesmo sexo. Citamos, apenas para ilustrar, a violação a direitos sucessórios e previdenciários. Estabelecia-se uma união, construía-se um patrimônio e, na falta de um dos integrantes desta, a sucessão patrimonial era feita entre os familiares, pelo simples fato de, amar alguém do mesmo sexo, não ser protegido pelo Estado. Injustiças aconteceram de norte a sul do país.

Mas, a sociedade evolui! Vivemos em uma sociedade plural.

Cada vez mais, percebemos uma abertura à discussão de questões relacionadas aos gays. Reflexo na evolução do pensamento social global e alteração nos costumes. A Organização dos Estados Americanos – OEA, em sua 38º Assembléia Geral, incluiu em sua agenda de ações, o combate a crimes motivados pela identidade de gênero e orientação sexual. A Secretaria Especial de Direitos Humanos, ligado ao Poder Executivo Federal, lançou o programa Brasil sem Homofobia, pensando em ações de combate à discriminação por orientação sexual. Já há, um dia de combate nacional à homofobia. Nas novelas, as personagens que retratam os gays, ajudam, através da ficção, a reproduzir o universo e os dramas sofridos por quem ama, segundo Oscar Wilde, mas não ousa dizer o nome.

Em relação à temática de Direito de Família, no que concerne a entidade familiar, anomalias, conforme Thomas Khun, surgiram, trazendo, ao universo científico, o caos, estabelecendo-se o período da ciência extraordinária.

De acordo com dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o Brasil tem 60.000 casais homoafetivos. Porém estes, para terem os mesmos direitos das uniões heteroafetivas, precisam de um longo e cansativo embate judicial, buscando que o Poder Judiciário, supra a ausência de dispositivo legal adequado a situação, efetivando, assim, seus direitos.

Roger Raupp Rios traz que:

“Nesta evolução, há de se frisar, primeiramente, a superação da visão que subordinava a dinâmica familiar à consecução de determinados fins sociais e estatais, estabelecidos no interior de uma única e determinada cosmovisão estatal. De fato, desde o reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas de vida comum diversas da tradicional família legítima, até a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal, o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes prevalente. Este aspecto é muito importante, uma vez que em virtude desta nova disciplina constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que desconheça a pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos dias” (2001, p. 104).

Indignados com a total falta de coerência entre a realidade social e a legislação pátria vigente, duas ações foram propostas, perante o Supremo Tribunal Federal, para que fosse dada, ao artigo 1723, do Código Civil, interpretação conforme à Constituição, impedindo, assim, o não reconhecimento das uniões homoafetivas. As ações foram: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, proposta pela Procuradoria-Geral da República e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, proposta pelo atual Governador do Rio de Janeiro.

Em sítio oficial do Supremo Tribunal Federal:

“O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. ‘O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF’.

Todos os demais ministros, seguiram o relator Ayres Britto, e, de forma unânime, proibiram que não se reconhecessem também, a união homoafetiva, como entidade familiar.

Mais uma vez, superou-se o paradigma dominante, transmudando-se em outro, trazendo, assim, uma nova fase, uma nova ciência normal.
6. CONCLUSÃO.

O Poder Judiciário, em todo o processo de evolução do conceito de família, sempre veio como elemento propiciador de ruptura do paradigma dominante, fazendo com que, na presença das anomalias, os cientistas deste, questionassem e requestionassem o paradigma vigente e, ao final, ficando órfãos de respostas coerentes à realidade social, estabelecessem uma nova ciência normal, deixando para trás, todo o período tortuoso e angustiante da ciência extraordinária.

De início, o casamento indissolúvel era a única entidade familiar. Depois, surgem duas outras formas, sendo uma delas, a união estável. Porém, antes de o Poder Constituinte Originário passar a prevê-la, o Poder Judiciário já abraçava esta união informal, reconhecendo direitos. Da mesma forma, levando em consideração princípios constitucionais, deu interpretação conforme à Constituição, em relação ao artigo 1.723, do Código Civil, proibindo que extirpem as, dos casais homoafetivos, direitos inerentes aos, heterossexuais, reconhecendo-os, também, como entidade familiar. A partir daí, por este reconhecimento feito pelo Poder Judiciário, o Legislativo passará a fazer a devida adequação, legalizando-a, através de instrumento apropriado.

Salienta-se que, a busca por um novo paradigma e/ou ponto de vista, pela comunidade científica, surge pela total incongruência entre a teoria posta e a realidade fática. Assim, conforme supra explicitado, transmudou-se o conceito de entidade familiar, estabelecendo-se uma nova ordem, mais adequada, devido a evolução e mudança dos costumes, aos anseios da sociedade contemporânea.

7. REFERÊNCIAS.

DUARTE, Gardênia. União Civil entre homossexuais: a busca pelo amparo legal ‘Uma abordagem jurídico-reflexiva’. Salvador, 2002.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9.ed. Perspectiva: São Paulo, 2006.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2008.

PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas Questões de Direito de Família na Nova Constituição. RT 639/247.

RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001.

SANTOS, Gizelda Maria Scalon Seixas. União Estável e Alimentos: de acordo com a lei nº 9.278, doutrina, legislação e jurisprudência. Editora de Direito: São Paulo, 1996.

http://ibahia.com/a/falabahia/?p=67419, acesso em 04.07.2011.

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idContendo=178931, acesso em 04.07.2011.

JULIANA CAMPOS DE OLIVEIRA
NAIRA BLANCO MACHADO

1. Émile Durkheim: biografia e pensamento filosófico

Este artigo visa, sobretudo, avaliar, de maneira mais detida, a metodologia desenvolvida por Émile Durkheim para o estudo dos fenômenos sociológicos e posteriormente transportar seus ensinamentos metodológicos para a seara da pesquisa jurídica. Para conhecer melhor as razões que fomentaram em Durkheim a idéia de uma elaboração de uma metodologia nova, capaz de dar à Sociologia um domínio próprio, cumpre realizar uma breve visitação a aspectos da vida do estudioso e do contexto histórico em que estava imerso.
O sociólogo Émile Durkheim nasceu na cidade de Épinal, localizada no noroeste da França, próximo à fronteira com a Alemanha, no dia 15 de abril de 1858. Filho de judeus, não seguiu o rabinato, tendo, ainda na juventude, se declarado agnóstico .
Em 1879, ingressa na École Normale Supérieure, em Paris. Durante o período em que freqüenta esta Escola, é influenciado por autores como Augusto Comte e Herbert Spencer, os quais contribuíram para que Durkheim buscasse cientificidade no estudo das humanidades. Forma-se em filosofia, porém, durante a sua vida, dedica-se à sociologia , tendo enfatizado em seus estudos a necessidade de uma educação de qualidade nas instituições de ensino. “A paixão que leva Durkheim ao problema da integração social e do que chamamos hoje socialização explica, com certeza, seu interesse constante pelos problemas da educação (A educação moral, A evolução pedagógica na França)” . Outros autores também contribuíram para sua formação intelectual. Entre eles, René Descartes, Jean Jacques Rousseau, Saint-Simon, Fustel de Coulanges. A partir de 1882, torna-se professor de filosofia nos Liceus de Sens, Saint Quenrin e Troyes, na França. Em 1885, estuda na Alemanha, onde é muito influenciado pelo psicólogo Wilhelm Wundt . Entre os anos de 1887 e 1902, leciona Pedagogia e Ciências Sociais, como chargé de cours, na Faculdade de Letras de Bordéus. A partir de 1902 torna-se auxiliar de Ferdinand Buisson, na cadeira de Ciência da Educação na Sorbonne, tendo o sucedido em 1906. A partir de 1913, a disciplina teve sua nomenclatura modificada para “Ciência da Educação e Sociologia”, adequando-se melhor ao que Durkheim pretende ensinar, sendo a palavra “sociologia” inserida pela primeira vez em uma disciplina universitária francesa . “A cátedra de ciências sociais foi a primeira em uma universidade francesa e foi concedida justamente àquele que criara a Escola Sociológica Francesa” .
Elaborando uma contextualização histórica, tem-se que o século XIX é marcado por muita miséria, desemprego pessoas vivendo à margem da sociedade e que as instituições sociais estão enfraquecidas, existindo muito questionamento, quebra de valores tradicionais e surgimento de novos valores. O período em que Durkheim vive é marcado pelo surgimento de algumas ciências humanas, tais como a lingüística, a antropologia, a sociologia e a psicanálise. Além deste renomado estudioso, outros como Charles Darwin (1809 – 1882), Sigmund Freud (1856 – 1939) e Karl Marx (1818 – 1883), seus contemporâneos dispensam contribuições fundamentais para a ciência, revolucionando-a e deixando reflexos até os dias atuais .
A França com que Durkheim se depara passa por um período de conflitos, tais como a Guerra entre Alemanha e França, iniciada em 1871, após a tomada de parte da região da Lorena pela Alemanha. Importante citar, ainda, que na França, neste mesmo ano, proclama-se a Terceira República, o que propicia algumas inovações políticas, e que o país passa pela Segunda Revolução Industrial, a qual traz significativas transformações para a sociedade a partir do uso do petróleo, da eletricidade etc .
Durkheim falece em 15 de novembro de 1917, período em que o mundo sofre com a Primeira Guerra Mundial.
Em seus estudos, este célebre sociólogo revoluciona o pensamento filosófico-sociológico de sua época, considerando a educação como um fato social e defendendo a sociologia como ciência independente da Filosofia, da História.
Se adotarmos a sua própria opinião de que Montesquieu foi o pai da Sociologia e Comte o padrinho, poderemos acrescentar que o autor das Regras do Método Sociológico figura entre os mais diligentes presectores que se encarregaram de acentuar a individualidade da nova disciplina e lhe infundir o espírito de rigor científico.

É considerado um dos fundadores da moderna teoria sociológica e assumiu o cargo de chefe da Escola Sociológica Francesa, que se opunha à Escola de ciência Social de Le Play.
Durkheim, em seus estudos, traz novamente à discussão questões suscitadas por Hobbes e por Rousseau, tais como a forma pela qual os indivíduos integram-se à sociedade, a relação entre as atividades desses indivíduos, sua autonomia e a manutenção da ordem social. Tais re-questionamentos surgem a partir do desenvolvimento de suas teorias sociológicas, que tratam da divisão do trabalho, do suicídio e das formas elementares da vida religiosa. Porém, as respostas desenvolvidas por este sociólogo são diversas das daqueles. “À ficção filosófica do Contrato Social, Durkheim opõe uma resposta tirada do que lhe parece dever ser a sociologia, uma ciência positiva dos costumes” .
Defende a existência de uma “consciência coletiva”, ou seja, um “sistema de crenças e sentimentos partilhado pelos membros de uma sociedade e definidor das relações estabelecidas entre eles” . Durkheim toma como premissa os fatos sociais e afirma que um fato, para ser considerado social, deve atender a três características, quais sejam: generalidade, exterioridade e coercitividade. Para o autor, os fatos sociais atingem toda a sociedade e qualquer desequilíbrio em algum setor desta, a desestabiliza como um todo. Desenvolve ainda os conceitos de Instituição Social e Anomia, sendo o primeiro,

um mecanismo de proteção da sociedade, o conjunto de regras e procedimentos padronizados socialmente, reconhecidos, aceitos, e sancionados pela sociedade, cuja importância estratégica é manter a organização do grupo e satisfazer as necessidades dos indivíduos que dele participam ,

e o segundo, um conceito que criou para caracterizar o estado de “patologia social” em que estava imerso, numa sociedade que sofria com a miséria e a marginalidade. Outros conceitos introduzidos por Durkheim são o de “solidariedade orgânica” ou “solidariedade por diferença” e “solidariedade mecânica” ou “solidariedade por semelhança”, sendo a primeira caracterizada pela “capacidade de um sistema integrar os diversos interesses que abriga em uma diferenciação estrutural qualitativa” e a segunda caracterizada pela “uniformidade própria das sociedades tradicionais” . Neste ínterim, Sampaio entende que
a análise dessas duas formas de solidariedade obriga-o por sua vez, a realizar uma verdadeira Sociologia Jurídica, pois elas têm no Direito os signos que nos permitem identificá-las. O Direito repressivo ou as normas penais preponderam nas sociedades em que predominam a “solidariedade mecânica”, enquanto o Direito restitutivo (Direito civil, comercial, administrativo) aumenta o seu raio de ação com o crescimento da “solidariedade orgânica” .

Durkheim possui quatro obras de maior destaque: De la division du travail social (Da divisão do trabalho social), de 1893; Les regles de la méthode sociologique (As regras do método sociológico), de 1895; Le suicide (O suicídio), de 1897); Les formes elementaries de la vie religieuse (As formas elementares da vida religiosa), de 1912. Fundou ainda a revista L’ Année Sociologique (O ano sociológico), em 1897, que foi editada até 1912.
Em “Da divisão do trabalho social”, opõe-se a Spencer e a todos que “tentam explicar a complexidade crescente do sistema de divisão do trabalho a partir dos efeitos socialmente e individualmente vantajosos que ela acarreta” . Em “O suicídio”, estuda os problemas de personalidade e tenta esclarecer que “as causas do auto-extermínio tem fundamento em causas sociais, e não individuais” . Em “As formas elementares da vida religiosa” teve como objetivo principal mostrar as origens sociais e cerimoniais, e as bases da religião . Em “As regras do método sociológico”, a obra em destaque no presente artigo, Durkheim objetiva enquadrar os fenômenos sociais em um contexto metodológico. “Dentro de sua perspectiva, os fatos sociais devem ser considerados como ‘coisas’, com existência própria, exteriores às consciências individuais” . Nesta obra, o autor define uma metodologia de estudo que impõe respeito à nova ciência (Sociologia), tendo sido, grande parte de seus preceitos, extraídos das ciências naturais. Defende a existência de leis que regem o comportamento social, os fatos sociais.
Do exposto até então, pode-se dizer, em poucas palavras, que Émile Durkheim é de primordial importância para o desenvolvimento da sociologia científica do século XX, sendo praticamente impossível imaginá-la atualmente sem suas contribuições ímpares.

2. Metodologia Durkheimiana e sua aplicação na Ciência do Direito

Partindo basicamente dos conceitos fixados na obra “Regras do Método Sociológico” e levando em consideração o escopo do presente artigo – revelar a metodologia do respectivo pensador, e transportar algumas das suas noções para uma aplicação na seara da pesquisa jurídica – procurar-se-á identificar na referida obra os elementos de uma metodologia que Durkheim erigiu como ponto de partida indispensável para a realização de um estudo sociológico de bases efetivamente científicas. Percebe-se, de pronto, a partir da leitura do texto, uma constante preocupação manifestada pelo autor neste sentido. Nota-se, já de início, o interesse em revelar a importância do problema metodológico, mormente no tocante aos estudos dos fatos sociais. Com efeito, propugna o mencionado pensador pela adoção de um autêntico método de pesquisa aplicável aos estudos sociais até então desprezado pelos estudiosos e sociólogos de plantão. Sua intenção sempre fora, através do incremento e utilização de uma metodologia verdadeiramente científica, conceder à sociologia um viés próprio e independente como ciência humana, permitindo, desta forma, sua desvinculação de ciências como a filosofia e a história.
Durkheim critica veementemente os rumos que os estudos sociológicos vinham tomando até aquele período. O autor se opõe firmemente ao caráter generalista das pesquisas e teorias desenvolvidas pelos demais estudiosos, defendendo abertamente o emprego de regras precisas no estudo do fenômeno sociológico. O pensador rejeita solenemente as práticas usuais dos demais sociólogos, denunciando a maneira equivocada como estes estudiosos transitavam na seara sociológica: ignorando sua complexidade e desconhecendo a natureza e a relevância das próprias instituições sociais, sempre movidos por uma falsa idéia de simplicidade que os conduzia a estabelecer dogmas absolutamente distanciados de uma certeza científica desejável.
Antes de adentrar na questão do método a ser aplicado ao estudo dos fatos sociais, Durkheim entende por bem estabelecer o significado, a definição do que vinham a ser estes fatos sociais. Para o autor, os fatos sociais consistiriam em “maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercivo em virtude do qual se lhe impõem” . Em verdade, o que Durkheim propõe é a idéia de que a manifestação dos fatos sociais deve estar dissociada das consciências individuais. São fatos que não se confundem com fenômenos orgânicos tampouco com os fenômenos psíquicos. Sua essência, “seu substrato”, nos dizeres do pensador, não seria o indivíduo, mas a sociedade. É por meio da fixação desta idéia que Durkheim irá explicar em que consiste o campo de estudo da Sociologia. É a sociologia que deve ocupar-se do estudo desta específica categoria de fatos que não se confundem com outras já constituídas ou denominadas, objetos de outros ramos do saber.
Durkheim vem apregoar que as idéias e tendências que orientam o viver e o caminhar das pessoas são, em sua maior parte, tipos de comportamento e pensamento exteriores ao indivíduo que penetram neste através de uma imposição, de uma coerção, independente da vontade individual do sujeito. E este poder de coerção, revela Durkheim, é “reconhecido pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-lo” .
Os fatos sociais, segundo o autor, apresentar-se-iam tanto em organizações sociais definidas, isto é, nasceriam das diversas relações que se projetam numa sociedade complexa, como poderiam fluir a partir das denominadas correntes sociais, as quais seriam manifestações ou explosões mais passageiras de sentimentos sociais experimentados coletivamente. Em ambas as situações, expõe Durkheim, os fatos detêm a mesma objetividade e ascendência sobre o indivíduo.
A modelagem desta definição de fato social como categoria provida de existência própria, independente das manifestações individuais, é a primeira medida que Durkheim vem adotar para iniciar um traçado desta nova Sociologia que se pretenderia vir dotada de um rigor e uma objetividade necessários, segundo o autor, a dar-lhe um caráter verdadeiramente científico.
A primeira regra do método que Durkheim estabelece é tratar os fatos sociais como coisas. O autor preconiza ser preciso adotar um afastamento em relação ao objeto estudado, e preciso que sobre este se lance um olhar de fora, um olhar externo e que se aceitem, pra chegar ao fundo do fenômeno, ou fenômenos sociais, a sua realidade natural, ao invés de debruçar-se sobre o estudo de conceitos que nada mais seriam do que as representações que os próprios estudiosos fazem dos fenômenos. Assim revela o pensador:
Os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas. Para demonstrar esta proposição não é necessário filosofar sobre a sua natureza nem discutir a analogia que apresentam com os fenômenos dos reinos inferiores. Basta verificar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo. É coisa, com efeito, tudo que dão, tudo que se oferece, ou antes, se impõe à observação. Tratar fenômenos como coisa é tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam esta característica. O que nos é dado não é a idéia que os homens têm do valor, pois ela é inacessível; são os valores que se trocam realmente no decursos das relações econômicas. Não é uma ou outra concepção do ideal de moral; é o conjunto das regras que determinam efetivamente o comportamento. Não é a idéia do útil ou da riqueza; é todo o pormenor da organização econômica. É possível que a vida social seja apenas o desenvolvimento de certas noções; mas, mesmo que assim aconteça, essas noções não são dadas imediatamente. Logo, não as podemos atingir diretamente, mas só mediante a realidade fenomenal que as exprime. Não sabemos a priori quais as idéias que estão na origem das diversas correntes entre as quais se divide a vida social, nem sequer se existem; só depois de as ter seguido até a fonte saberemos de onde provêm .

Como se pode constatar, na concepção de Durkheim, só é possível atingir a real natureza de um dado fenômeno e estabelecer sobre estes estudos e conclusões dotados de um rigor científico, se o pesquisador for capaz de se despir de qualquer ideologia própria que possa vir a contaminar a avaliação sobre os fatos . Ao tratar o fenômenos sociais como coisas, nada mais estaria fazendo o pesquisador do que se confrontar com a própria natureza que os define, segundo o sociólogo.
O autor propugna ainda por um cuidado especial em relação à utilização de conceitos que estariam sendo usados de uma maneira indiscriminada exigindo que, dentro dos rigores do método que se apresentava, tais conceitos não fossem utilizados até que fossem cientificamente constituídos.
Para Durkheim, seria preciso que a sociologia abandonasse seu teor subjetivista que ainda se encontrava, mesmo entre estudiosos como Comte e Spencer, para ingressar num estágio que prezasse pela objetividade.
Em complemento a estas idéias, Durkheim estabelece a necessidade de se abandonar as noções vulgares que se tem das coisas, as prenoções porque estas, orientadas por um ideal, por um sentido prático de como as coisas, os fatos e as instituições devem funcionar, ser direcionadas ou operacionalizadas, acabam por conduzir ao um distanciamento da realidade das coisas e impedir uma investigação isenta e imparcial dos fenômenos sociais. Para ele, “tais conceitos são formados fora da ciência e em função de necessidades que nada têm de científico”, “constituindo falsas evidências que dominam o espírito do vulgo” .
É neste sentido que o próprio autor reconhece a especial dificuldade para os estudiosos do fenômeno sociológico de se libertarem de seus sentimentos em relação a determinadas práticas morais ou entendimentos do que deve ser o fato social, situação que perturba sobremaneira a realização de um estudo objetivo e científico sobre aquele objeto. Com efeito, na seara das humanidades, mas não só nestas, é muito usual a situação em que o estudioso apaixona-se por uma determinada idéia, sendo-lhe, posteriormente, impossível contraditar esta ou avaliá-la sob uma perspectiva mais isenta ou distanciada. Ao apaixonar-se por seu tema, o pesquisador recusa-se terminantemente a estabelecer sobre aquele objeto um estudo pormenorizado que destaque também os seus possíveis inconvenientes ou equívocos, enfim, uma investigação científica, enxergando tais tentativas como verdadeiros insultos provenientes de posturas inimigas .
Mais adiante, ensina Durkheim sobre a necessidade de se estabelecer uma investigação científica que “incida sobre um determinado grupo de fenômenos que correspondam a uma mesma definição” . Em outras palavras, é preciso que o cientista identifique o próprio objeto sobre o qual irá recair a investigação, isto é, tome como objeto um grupo de fenômenos previamente definidos que comunguem de certos caracteres externos, de certas propriedades que lhe sejam inerentes. E como o exterior das coisas só é dado através da sensação, é exatamente com base nesta que a ciência, no caso a ciência social, deve ser construída, e não de noções ou idéias cuja formação tenha se apartado das experimentações dos sentidos. As coisas precisam ser vistas, estudadas e reveladas como realmente são , e não como seriam úteis ou deveriam colocar-se. Como as sensações podem apresentar um viés altamente subjetivo, é preciso que o sociólogo, assim como os pesquisadores das ciências naturais, estabeleça mecanismos que possibilitem a obtenção de dados que detenham um grau razoável de objetividade. No caso da sociologia, para alcançar esta objetividade, é preciso que o sociólogo considere os fatos sociais, explore-os, tomando-os sob uma perspectiva isolada das manifestações individuais, de maneira a obter um objeto fixo, um padrão constante que permita sempre ser alcançado pelo observador e impeça ou restrinja elucubrações subjetivas ou pessoais.
Tal metodologia de exame dos aspectos externos dos fenômenos constitui, na visão do pensador, a maneira primeira como se proceder a uma pesquisa no âmbito sociológico e possibilitar a evolução gradativa da investigação científica, reduzindo, através de aproximações progressivas, cada vez mais a distância entre o sociólogo e a realidade que o cerca, mas que se “revela sempre fugidia”.
Continuando sua exposição a respeito da metodologia que deve ser empregada aos estudos sociológicos, Durkheim apresenta regras relativas à distinção do que ele vem designar de normal e o patológico. O pensador afirma que “um fato não pode ser considerado patológico senão em relação a um tipo de espécie. As condições de saúde e da doença não podem ser definidas in abstrato e de uma maneira absoluta” . Ou seja, para a identificação do que seja anormal, patológico ou doentio, é preciso que haja a fixação de um referencial. No caso de estudo de sociedades que já cumpriram todo o percurso, esta regra é mais facilmente aplicável, sendo possível ao investigador identificar a sua lei de evolução normal. No entanto, quando se tem em vista sociedades que o autor chama de “mais evoluídas e mais recentes”, o pesquisador terá sérias dificuldades em estabelecer a relação de normalidade desta, uma vez que lhe falta o ponto de referência. A solução que Durkheim apresenta para tal problema é, após ter fixado um dado fato como geral, investigar as condições, os fatores que no passado teriam determinado aquela generalidade e questionar, em seguida, se estas condições estão presentes na atualidade ou se, ao contrário, se alteraram. Se tais condições se perpetuaram no presente, estar-se-á diante de um fenômeno normal. Constituir-se-á num fenômeno mórbido se tais condições que propiciaram a generalidade daquele fenômeno não mais subsistem na atualidade.
Resumidamente, expõe Durkheim que um fato é considerado normal em relação a um tipo social determinado considerado numa específica fase do seu desenvolvimento, tendo em conta a sua produção na média das sociedades desta espécie, tomando-se em consideração a fase correspondente da sua evolução. Os resultados deste método se verificariam através da demonstração de que a generalidade do fenômeno está ligada às condições gerais da vida coletiva do tipo social considerado, e esta verificação seria necessária quando este fato dissesse respeito a uma espécie social que ainda não teria completado a sua evolução.
Comparada à sociologia, a biologia teria muito mais facilidade em separar um fato normal de um patológico. Na sociologia, a complexidade e fluidez com se apresentam os fenômenos sociais exigem, segundo Durkheim, do estudioso, cuidados e precauções maiores para não incidir em grandes erros metodológicos ou juízos equivocados e precipitados.
Para demonstrar esta questão, o pensador vem se valer de alguns exemplos de fenômenos sociais, como o crime. O fenômeno criminoso, apesar do inequívoco sentimento de repulsa que gera entre os membros de uma sociedade ou mesmo entre os criminologistas, constitui um fato dotado de normalidade , uma vez que sempre esteve presente nas mais diversas constituições societárias, melhor dizendo, em todas elas, além de ser um fato necessário, ligado às condições fundamentais de qualquer vida social. Em verdade, por não constituir um ato em si, não deter uma natureza intrínseca, mas representar uma contrariedade a um sentimento coletivo que se impõe, um senso comum, o crime sempre existirá, mas seu formato variará conforme a sociedade e os valores que esta erigiu como defensáveis. Como explica o autor, não é crível uma sociedade na qual alguns indivíduos não divirjam sempre um pouco do tipo coletivo. Eventualmente, tais dissonâncias ou divergências podem vir a apresentar-se como um comportamento criminoso que a sociedade tende a censurar, repelir e reprimir. Também é patente que, por modificações nos sentimentos coletivos e tendências sociais, um determinado comportamento outrora considerado criminoso possa, eventualmente, adquirir um status de legitimo e adequado ao tipo social.
Tudo isto não significa que também a criminalidade possa apresentar-se de uma maneira mórbida, quando, por exemplo, desvia de um padrão de regularidade para atingir taxas muito elevadas de ocorrência.
Enfim, destaca mais uma vez o pensador que a melhor maneira de se identificar se um fato é anormal ou normal é valer-se do seu grau de generalidade. A normalidade é um estado que se deve perscrutar na própria realidade das coisas e não no espírito individual do estudioso. Assevera Durkheim: “para que a sociologia seja verdadeiramente uma ciência de coisas, é necessário que a generalidade dos fenômenos seja considerada como critério da sua normalidade” . Como se vê, os dados a serem avaliados na pesquisa sociológica devem ser retirados da realidade dos fatos sociais, da maneira como eles se apresentam e não da forma como se imagina que se devam apresentar ou não. Este é um passo fundamental para a concretização de uma sociologia que trabalhe com conceitos científicos e esteja despida de conjecturas pessoais. É, ainda, uma importante concepção do estudo dos fenômenos sociológicos que permite que não só o sujeito pesquisador, mas os homens e os sujeitos do Estado, de modo geral, possam efetivamente identificar uma situação de anormalidade, e, gradativamente, promover medidas que possibilitem o restabelecimento de um estado de normalidade, sendo esta a finalidade precípua da sociologia e das ciências em geral, sem que se arvorem a impor de uma maneira violenta uma determinada ideologia como pretensa forma de alcançar tal situação de normalidade.
Posteriormente, Durkheim conduz o leitor à fixação das regras relativas à constituição dos tipos sociais. Afastando o método monográfico, o pensador vem propugnar pela adoção de uma metodologia que reúna cuidadosamente fatos com características particularmente essenciais e, ingressando no conceito de Morfologia Social, o autor vem apresentar o princípio desta classificação dos tipos sociais, que seria a identificação das partes constitutivas da sociedade: as sociedades mais simples do que ela. Para o estudioso, sociedade simples seria aquela que não contivesse outras mais simples do que ela, ou seja, estaria reduzida a um único segmento, não apresentando qualquer indício de uma prévia segmentação, sendo a horda o grande exemplo desta definição. A idéia, portanto, seria classificar as sociedades segundo o grau de composição que elas apresentam, partido das sociedades absolutamente simples ou de segmento singular. Os tipos sociais derivados variaram não conforme os elementos do tipo social básico que lhe deu origem, mas também de acordo com forma com esta associação ou composição se estabeleceu.
Mais adiante, o pensador vem propor regras referentes à explicação dos fatos sociais. Segundo o pensamento durkheimiano, a explicação dos fenômenos sociológicos deve-se dar a partir da identificação das suas causas, e não da finalidade a que se prestam. Assevera o autor que “mostrar a utilidade de um fato não é explicar como nasceu nem como é que é, pois as funções para que serve supõem as propriedades específicas que os caracterizam, mas não o criam” . Com efeito, a idéia do autor é realizar a compreensão da causa eficiente do fenômeno antes de se adentrar no estudo de seus efeitos, até porque um dado fenômeno pode ter uma causa que o originou e simplesmente não se prestar a nada ou ter sua utilidade exaurida e mesmo assim manter-se vivo na sociedade, as vezes, somente por uma questão de hábito. Isto não significa que posteriormente à investigação das suas causas, o estudioso não possa, separadamente, pesquisar os efeitos e a finalidade a que se volta o específico fenômeno. Em verdade, o estudo destes dois aspectos possibilitará uma explicação mais completa do fenômeno, até porque, se pela função não se pode extrair a existência do fenômeno, pode-se, ao menos, dela deduzir a sua manutenção. Um fenômeno que não apresenta utilidade é, na visão de Durkheim, no mínimo, prejudicial, uma vez que se traduz como um ônus sem, no entanto, conferir à sociedade um retorno ou uma contrapartida.
Durkheim rejeita eminentemente o método explicativo, uma vez que lhe parece sustentar-se basicamente em um caráter finalista e psicológico. Na concepção do autor, é “na natureza da própria sociedade que deve procurar-se a explicação da vida social” . E continua:
Devido a este princípio, a sociedade não é uma simples soma de indivíduos; o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica que tem as suas características próprias. Sem dúvida, nada se pode produzir de coletivo se não houver consciências particulares; mas esta condição necessária não é suficiente. É necessário ainda que estas consciências se associem, se combinem, e se combinem de certa maneira; é desta combinação que resulta a vida social e, por conseguinte, é esta combinação que a explica .

Durkheim revela a importância de se buscar a causa determinante de um fato social entre os próprios fatos sociais antecendentes, e não nos estados de consciência particular. A função de um dado fato deveria ser investigada “na relação existente entre ele e um determinado fim social” .
Mais adiante, acrescenta que é no próprio meio social interno onde se deve buscar a origem primordial de um dado processo social. Em verdade, a proposta de Durkheim é demonstrar a importância da idéia de meio social como elemento condicionante da evolução coletiva da qual a sociologia pode deduzir estudos, fincada em relações de causalidade, as quais, dentro da metodologia desenvolvida por Durkheim, desempenham papel de alta relevância.
Em seguida, Durkheim apresenta suas regras atinentes ao estabelecimento das provas. Expõe que a maneira de se demonstrar a relação de causalidade entre fenômenos seria através de um método comparativo ou da experimentação indireta. Entre todos os métodos comparativos haveria, todavia, um que, sob a perspectiva durkheiminiana, apresentaria uma maior força demonstrativa. Para o pensador, os métodos dos resíduos, da concordância, e da diferença teriam pouca utilidade ou aplicabilidade no estudo dos fenômenos sociais.
Explica o sociólogo que o método das variações concomitantes, diferentemente dos demais citados alhures, seria o mais adequado à seara dos estudos sociológicos, apresentando a grande vantagem sobre aqueles, de poder ser utilizado sem necessitar, para tanto, de uma grande quantidade de fatos comparados. Segundo explanação do autor, tal método permite provar a existência de uma relação entre fenômenos através da constatação do paralelismo dos valores por que passam os fenômenos comparados, desde que tal situação tenha sido verificada num número de casos suficientes e suficientemente variados.
Para Durkheim, uma instituição social de uma dada espécie social deve ser explicada por meio da comparação não só entre as diversas formas que se apresentam nos povos desta determinada espécie, mas também entre todas as espécies anteriores, ou seja, é preciso acompanhar o desenvolvimento integral de um dado fato social passando por todas as espécies sociais para ser possível compreendê-lo.
Conclui o autor, ratificando a aplicação do princípio da causalidade à Sociologia e a objetividade do método proposto, que permitiria conceder a este ramo do conhecimento a independência desejada e um domínio próprio.
A leitura do texto de Durkheim nos conduz a reflexões em torno da metodologia empregada na atividade de pesquisa no âmbito da sociologia. A despeito da intenção do pensador de elaborar uma metodologia aplicável exclusivamente à seara sociológica, seus ensinamentos, ou ao menos parte deles, podem, com a devida adaptação, serem perfeitamente aproveitados no âmbito da pesquisa jurídica. Considerando que o Direito é catalogado como ciência social aplicada, interessantes e úteis se revelam as lições ministradas pelo dito filósofo. Com efeito, Durkheim inaugura um período novo para a sociologia. Apregoando ser imperiosa a revisão da metodologia até então utilizada nas pesquisas de âmbito sociológico, o pensador vem propor a aplicação de um rigor metodológico inédito na seara dos estudos científicos de ordem sociológica, na tentativa de demonstrar a necessidade de objetivar os estudos de Sociologia. Observe-se a seguinte passagem do texto: “É o mesmo progresso que resta fazer em sociologia. É preciso que ela passe do estágio subjetivo, raramente ultrapassado até agora, à fase objetiva” .
Com efeito, a preocupação do pensador é afastar da produção dos estudos sociológicos idéias que estejam eivadas de preconceitos, de “prenoções” (como refere em seu texto), de prejulgamentos, de conceitos subjetivos que acabem por macular a elaboração de autênticas teorias científicas em torno ao objeto social. Para tanto, estabelece regras precisas que devem orientar o pesquisador.
O referido autor nos faz atentar, como dito anteriormente, para o fato de que muitos estudiosos tendem a se apaixonar pelos seus temas e por suas próprias crenças, o que compromete definitivamente a atividade de pesquisa, já que o pesquisador não consegue trabalhar a temática de uma maneira isenta, situação que lhe impede de levar em conta todas as circunstâncias que devem ser consideradas, sejam elas condizentes ou não com esta crença preestabelecida. Tal fenômeno termina por afastar o estudioso do rigor científico ao qual deveria estar adstrito, e acaba por direcionar o resultado das pesquisas. Nada poderia ser tão prejudicial ao exercício da pesquisa científica, mormente nas ciências sociais. Para ilustrar a questão, colaciona-se o seguinte trecho da obra:
É preciso descartar sistematicamente todas as prenoções. Uma demonstração especial dessa regra não é necessária; ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente. Aliás, ela é a base de todo método científico. É preciso, portanto, que o sociólogo, tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso de suas demonstrações, proíba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos que se formaram fora da ciência e por necessidades que nada têm de científico. É preciso que ele se liberte dessas falsas evidências que dominam o espírito do vulgo, que se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias empíricas que um longo costume acaba geralmente por tornar tirânicas. O que torna essa libertação particularmente difícil em sociologia é que o sentimento com freqüência se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crenças políticas e religiosas, por nossas práticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo físico; em conseqüência, esse caráter passional transmite-se à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras . (grifos nossos)

Os escritos de Durkheim se tornam lições preciosas para o pesquisador do Direito. Como mencionado alhures, o Direito é ciência social aplicada, razão pela qual o pesquisador que atua nesta área não está nunca a salvo de cometer um destes equívocos, podendo comprometer sobremaneira os resultados de uma pesquisa. A vaidade do agente e as paixões acometidas pelas próprias idéias são fatos que, não raras vezes, conduzem ao desvirtuamento das metodologias empregadas e ao desvio das pesquisas no âmbito jurídico, e levam à produção de doutrinas acientíficas e preconceituosas, supostamente revestidas de um caráter científico que não detêm, e perigosas, por esta razão.
Afora estas importantes instruções de que se deve valer o estudioso do Direito, outras regras desenvolvidas por Durkheim podem ser transportadas para a investigação científica na seara jurídica. Com efeito, um importante aspecto levantado por Durkheim diz respeito à necessidade de observar o fenômeno da generalidade de um dado fato social para constatar um padrão de normalidade dos fenômenos sociais. A busca pela definição do estado normal é o que se propõe as ciências, dentro da concepção de Durkheim. Todavia, como já afirmado acima, o método para atingir o conhecimento deste estado de normalidade dá-se através da investigação dos próprios fatores reais que conformam o fenômeno social. Assim, a identificação e o combate a um fenômeno que se revela patológico, que foge a um padrão de normalidade, só pode ser obtida a partir de uma investigação profunda das causas e condições propiciadoras à criação daquela situação qualificada como mórbida. Desta forma, evita-se o nascimento de teorias e doutrinas que apresentam “mágicas” propostas de resolução de conflitos as quais, no mais das vezes, mostram-se tendenciosas e partidárias de uma dada ideologia, capazes de conduzir violentamente a sociedade a um determinado fim.
No específico caso do Direito, e tendo em conta que Direito é também mecanismo de resolução de conflitos, o entendimento desta proposta durkheiminiana mostra-se de suma relevância como forma de impedir o surgimento ou o recrudescimento de práticas e doutrinas jurídicas altamente repressivas e cerceadoras, especialmente no âmbito penal, as quais prescindem muitas das vezes de um estudo pormenorizado das causas e circunstâncias que envolvem um dado conflito social. Tomando-se em consideração as lições ministradas por Durkheim, a elaboração de uma teoria e de doutrinas jurídicas não pode olvidar um estudo aprofundado da realidade social e dos conflitos que nela afloram para que se mantenham sempre dentro de uma esfera científica e possam, com prudência e eficiência, traçar instrumentos que atuem coibindo a perpetuação de fenômenos patológicos ou corrigindo e amainando conflitos sociais de modo a permitir o regresso da sociedade aos padrões de uma saudável normalidade.
Outra importante regra trazida por Durkheim que pode ser emprestada à pesquisa jurídica diz respeito à maneira como se deve estudar uma determinada instituição social: através de um método comparativo, verificando-se como um fato social se apresenta não somente em uma dada espécie social, mas também em espécies anteriores. Em outras palavras, perscrutar o desenvolvimento histórico daquela instituição como forma de conhecê-la integralmente. Valer-se de tais orientações é valorizar um desenvolvimento de um estudo de direito comparado e propiciar uma adequada investigação dos institutos jurídicos, sem olvidar-lhes as origens, os fatores e circunstâncias basilares conformadores da sua natureza, atentando sempre para todas as manifestações do processo evolutivo daquela instituição.
Além da própria metodologia durkheiminiana, outras noções propostas pelo autor merecem ser emprestadas à análise do fenômeno jurídico, a exemplo do conceito de coação, consubstanciado na força, na imperatividade que os fatos sociais são capazes de exercer sobre o indivíduo, mesmo contra a sua vontade. Assevera o pensador que a coação, para ser normal, precisa corresponder a uma superioridade social, isto é, superioridade intelectual ou moral, não se mostrando normal aquela coação exercida por meio da pura violência. A reflexão em torno destas colocações conduz a Ciência Jurídica a atentar para a função que o Direito deve realizar, orientando para que a positivação do Direito e sua aplicação prática espelhem sempre a idéia de legitimidade, e representem, segundo os informes de Durkheim, uma coação normal, saudável e positiva para a sociedade.
Ainda que a perspectiva durheimiana se revele por demais objetivista, e que, diferentemente do que o dito sociólogo propôs ao estabelecer o fato social como coisa a ser investigada pelo sujeito de uma maneira distanciada e imparcial, os rumos dos estudos filosóficos e científicos tendam, hodiernamente, para um relativismo deste suposto distanciamento entre sujeito investigador e objeto investigado , não resta dúvida de que os ensinamentos propostos por Émile Durkheim mostram-se de uma relevância impar, mormente no que tange ao desenvolvimento científico dos estudos das humanidades.
Sob o ponto de vista atual, a metodologia proposta por Durkheim não poderia ser considerada uma regra absoluta, até porque, como qualquer episódio histórico, também foi fruto de um contexto histórico-social, que inspirou o pensamento da época, representando, por isso mesmo, uma escolha, uma opção axiológica. O próprio Durkheim reconhece que “em questões de método, aliás, nada se pode fazer que não seja provisório, pois os métodos mudam à medida que a ciência avança” . É importante ter em mente que a adoção, ou mesmo a criação de uma específica metodologia, nunca se estabelece num contexto de neutralidade, isto é, constrói-se, quase sempre, com lastro em juízos de valor muitas vezes escamoteados, ou, não revelados, fato que, ao contrário do que se possa pensar, não necessariamente invalidará o método utilizado.
É inquestionável o mérito de Émile Durkheim para a consolidação e desenvolvimento da sociologia moderna. Muitas das regras que ele propôs na descrição da sua metodologia podem, como visto, ser emprestadas para a pesquisa em outras searas do conhecimento humano. Não é à toa que Durkheim é considerado um dos precursores da sociologia moderna, já que foram seus estudos e seus ensinamentos que permitiram galgar o status, a independência e a importância que a sociologia tem hoje como ciência, abrindo-lhe um domínio próprio indiscutível. Entretanto, há de se admitir que seu método, como outros, possui defeitos, não estando imune a críticas. Na verdade, uma restrição metodológica extremada não parece revelar-se produtiva para o desenvolvimento científico de qualquer área do conhecimento. A combinação de vários métodos tem mostrado, no mais das vezes, conforme análises mais atuais, um maior benefício, permitindo uma profusão de idéias e o despertar da criatividade do sujeito investigador, propiciando um exame mais completo do objeto estudado, que passa a poder ser visto sob os mais diferentes ângulos e nuances.

REFERÊNCIAS

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BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução: José Aluysio Reis de Andrade. Pará de Minas: Virtual books online, 200/2003

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2008.

ÉMILE DURKHEIM. Wikipédia – A enciclopédia Livre. Disponível em: . Acesso em: 02/07/2009

ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. Durkheim. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1990

FERRARI, Marcio. Émile Durkheim – O criador da sociologia da educação. Disponível em: . Acesso em: 02/07/2009

FRANÇOIS, Raymond; BOURRICAUD, Boudon. Dicionário Crítico de Sociologia. Tradução: Maria Letícia Guedes Alcoforado e Durval Ártico. São Paulo: Ática, 1993

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as ciências. 7ª Ed. Porto: Afrontamento, 1995.

Vanesca Freitas Bispo

“É preciso força pra sonhar e perceber
Que a estrada vai além do que se vê” (Los Hermanos)

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo será apresentado como atividade final para a disciplina de Metodologia da Pesquisa em Direito do Curso de mestrado em Direito e tem como objetivo discutir a noção de verdade trazida por Habermas, trazendo como pano de fundo, concepções de consenso, de exigibilidade e de democracia.
Para isso serão abordados diferentes pensadores, tais como Habermas, Schleiemacher, Husserl, entre outros.
Aplicar-se-á a metodologia deste trabalho a dialética, isto é, o diálogo e a contraposição de diversos autores, com o intuito de refletir acerca desses conceitos postulados por diferentes autores, de diferentes épocas, uma vez que a noção de verdade vem permeada por fundamentos históricos, culturais e sociais.
Dessa forma, a relatividade ou a não relatividade atribuída à concepção de verdade, influencia diretamente no trabalho do hermeneuta, uma vez que ele trabalha com argumentos – estes podem ser considerados temporais – cujo objetivo é atuar na sociedade.
Saliente-se que essa contraposição não se reveste de argumentos refutativos e / ou confirmativos, mas servirá apenas como base para enriquecimento da discussão acerca do tema, bem como para a formação da idéia central do presente artigo, qual seja, o de discutir a existência da a pluralidade de verdades e, como tal afeta a tarefa do hermeneuta, exigindo deste, portanto, uma postura reflexiva.
Na pós-modernidade, portanto, o hermeneuta assume uma tarefa árdua, já que deve buscar na interpretação a solução mais justa para cada caso; deve pautar-se em ideais históricos, sociais, econômicos e, sobretudo, no fato de que a pós-modernidade tem o homem como o centro de sua atenção.
Essa época visa, portanto, a proteção e a garantia da dignidade da pessoa humana. O hermeneuta baseia, então, suas interpretações nessas noções principiológicas, as quais dão maior abertura e flexibilidade à atividade interpretativa.
É nessa perspectiva de dissenso e de consenso, de pluralidade de viveres, que Habermas constrói sua teoria do agir comunicativo e como esta pauta-se em bases democráticas.
São essas bases democráticas que revestem os indivíduos da capacidade de exigir prestações estatais a fim de verem seus direitos assegurados e / ou protegidos. Nesse sentido assume inconteste relevância teórica discutir a noção de verdade postulada por Habermas, assim como as suas concepções de consenso de democracia, uma vez que repercutem de forma direita na maneira de se fazer o Direito na pós- modernidade.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 A verdade habermasiana e outros

Habermas desenvolve sua teoria pautada em uma noção de verdade dialógica e não monológica. Isso implica em uma concepção de verdade voltada a participantes socializados e não apenas como espectadores de uma realidade.
Nesse sentido afirma Habermas que
é nisso que consiste o agir comunicativo. Neste caso os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários. (HABERMAS, 1997, p. 36).

Isso implica que o agir comunicativo se concretiza, consoante Habermas, por meio de um consenso entre os interlocutores, cujo intuito é a integração social. Nessa perspectiva também o direito se materializa, uma vez que lida com oposições de quereres e de direitos, na busca por uma solução mais adequada à cada caso.
Assim, não cabe, pois ao jurista moderno, que é um hermeneuta e está incluído no domínio dos objetos que interpreta, se enclausurar e não refletir sobre o seu próprio papel, sobre sua própria essência. Não cabe, portanto, uma forma de pensar o direito voltada à uma realidade absoluta e atemporal e, conseqüentemente, não há como pensar o direito como algo dissociado do intérprete.
Nesse sentido a realidade para ele se constitui naquilo “que pode ser experimentado de acordo com a interpretação de uma simbólica vigente” (Habermas, 1997, p. 214) Atrela-se à isso, portanto, o caráter histórico e individual da verdade.
Infere-se com isso, pois, que a tarefa do intérprete não se limita a uma interpretação gramatical, ao revés disso transcende à experiência individual. Desta forma, a verdade para Habermas apóia-se sobre um consenso entre interlocutores.
Assim, ele postula que
o objetivo é de fundamentação racional das prescrições culturais, portanto, uma organização das relações sociais de acordo com o principio de que a validade de toda e qualquer norma, com conseqüência de ordem política, venha a depender de um consenso obtido por meio de uma comunicação isenta de donrnação. ( HABERMAS, 1982, p. 297)

Esse consenso, todavia, está pautado em uma pluralidade de verdades concebidas em um determinado momento histórico. Assim, o hermeneuta é sujeito e objeto do historicismo, ao qual se submete a verdade.
Nesta esteira, afirma Habermas que
as ciências hermenêuticas não exploram a realidade sob o outro ponto de vista transcendental; elas tem por objetivo, muito mais, uma elaboração transcendental de diversas formas fáticas de vida, no interior das quais a realidade é interpretada de maneira diferente, em função de gramáticas que formulam o mundo e da atividade que o transforma. (HABERMAS, 1982, p. 217)

Em razão disso, a verdade mostra-se provisória, histórica e relativa ao indivíduo. Dessa forma, a interpretação não se propõe a dar soluções estanques aos problemas, mas sim soluções aproximadas. Habermas, leciona, pois, in litteris: “ não há dúvida de que aqui não é possível falar em soluções de problemas senão em termos aproximativos” ( HABERMAS, 1982, p. 217)
Dessa forma, o consenso e a verdade têm como características a temporalidade, a relatividade e a provisoriedade. Nessa perspectiva, deve atuar o intérprete do direito, sendo, pois, flexível, mutável e adaptável à realidade, ou seja, levando em consideração que a norma deve ter um caráter renovador, capaz de acompanhar as mudanças sociais, econômicas e comportamentais.
Nesta esteira, evidencia-se o homem, enquanto ser social, esta imerso em ideologias sociais, culturais e comportamentais. E nesse sentido Habermas postula que:

durante o agir comunicativo o mundo da vida nos envolve no modo de uma certeza imediata, a partir da qual nos vivemos e falamos diretamente. Essa presença do pano de fundo do agir comunicativo, latente e imperceptível, que tudo perpassa, pode ser descrita como uma forma condensada e, mesmo assim, deficiente, de saber e de poder. De um lado, nós nos servimos inadvertidamente deste saber, isto é, sem saber que nós o possuímos reflexivamente.

de um ponto de vista objetivo, é a qualidade que falta ao saber objetivo: nós nos utilizamos desse tipo de saber sem ter a consciência de que ele pode ser falso.( HABERMAS, 1997, p.41).

Importante observar, entretanto, que não se propõe com isso que o hermeneuta jurídico seja arbitrário e que apele para a relatividade da verdade para argumentar a favor de uma interpretação sem limites. Ao contrario, o que se pretende é demonstrar, com base em leituras de grandes filósofos, que o hermeneuta, baseado na noção de provisoriedade da verdade e do consenso, não deve se tornar hermeticamente fechado aos influxos da sociedade.
Betti ensina nesse sentido que
[…] na verdade, o ordenamento jurídico é um organismo em perene movimento, em contínua transformação, que segue e reflete de perto os movimentos e as transformações da vida político- social (BETTI, 2007, p. 32)

Não deve, pois, o hermeneuta vê-se fora do processo interpretativo, deve, ao contrário, ser participe direto deste processo. Eis, então, o que ensina Ponty, que desenvolve uma teoria fenomenológica volta ao existencialismo:
Mas o sistema da experiência não está desdobrado diante de mim como se eu fosse Deus, ele é vivido por mim de um certo ponto de vista, não sou seu espectador, sou parte dele, e é minha inerência a um ponto de vista que torna possível ao mesmo tempo a finitude de minha percepção e sua abertura ao mundo total enquanto horizonte de toda percepção. ( PONTY, 2006, p. 408)

Neste diapasão, nota-se, que a verdade é relativa à individualidade de cada um. Ela é, portanto, unilateral. Não há, então, como estabelecer conceitos estanques, imutáveis e inflexíveis quando se fala em verdade e em consenso.
Descartes, por exemplo, via como “verdadeira todas as coisas que concebemos clara e distintamente” (Descartes, 2007 p. XVIII). Há, entretanto, quem possa afirmar que aquilo que é claro e distinto para uns, não o é da mesma maneira para outrem.
Descartes vai além e afirma que
assim, não é verossímil que todos se enganem; mas, pelo contrário, isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é por natureza igual em todos os homens; e, portanto, que a diversidade de nossas opiniões não decorre de uns serem mais razoáveis que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por diversas vias e não consideramos as mesmas coisas. Pois não basta ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem. (DESCARTES, 2007, p. 5)

Descartes, diferentemente de Habermas – que vê a verdade como um consenso entre interlocutores que estão inseridos em uma situação ideal de fala – traduz sua verdade com base em argumentos voltados ao bom senso, ou melhor, à noção de perfeição.
Contrapondo esses filósofos é possível afirmar que Descartes formula sua noção de verdade de uma forma mais fechada e inflexível, em razão de suas obras terem sido escritas em uma época mais remota; um período em que a verdade era estabelecida sob a vigilância dos olhos da igreja.
Ao contrário de Descartes, Habermas vem de uma época em que a se busca a emancipação social, a possibilidade de participação popular de forma democrática.
Dessa maneira, os olhares que se formam sobre o que é verdade tornam-se distintos e em razão disso o direito também se modifica, uma vez que a concepção de verdade está intrinsecamente relacionada ao conceito de justiça, de justo e, conseqüentemente, ao direito.
Nessa perspectiva, infere-se, que a realidade do direito está voltada para um sistema jurídico aberto, lacunoso, ou seja, um sistema jurídico que compõe-se como um organismo vivo, logo suas verdade se modificam, se adaptam às realidades que se formam ao longo da história.
Registre-se, portanto, o que afirma Freire:
Na transição pós-moderna, é este fenômeno jurídico plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo que decreta a quebra do mito da certeza do conhecimento jurídico. ( FREIRE, 2010, p. 54)

Sob o influxo desse pensamento, infere-se que a ciência jurídica – que trabalha com linguagem, argumento e interpretação – reveste-se de caráter axiológico e dialético.
Nesse sentido assevera Betti ao afirmar que:
[…] é uma ilusão crer que a disciplina codificada não apresente lacunas e que seja um direito vivo e vigente todo aquele que está escrito no código; e é um grave erro acreditar que se pode imobilizar o direito e paralisar sua dinâmica com a coação ao formalismo na aplicação da lei. A verdade é que, para ter uma atuação efetiva no comportamento a cuja disciplina está destinada, a lei precisa de uma série de operações – adaptação, adequação, integração e de renovadas, fazem que a norma não permaneça letra morta, mas se mantenha viva e vigente na órbita da ordem jurídica a qual pertence. (BETTI, 2007, p. 10).

Eis, porque, é inconcebível se pensar em uma verdade atrelada apenas à letra da lei, despida de caráter interpretativo e, por conseguinte, associado à uma verdade única, imutável.
Nessa esteira, Betti contribui ao postular que

somente uma espécie de tacanhez e de restrição mental, decorrentes da falta de educação jurídica, explicam o espanto do leigo em direito que, diante de uma interpretação jurídica, explicam o espanto do leigo em direito que, diante de uma interpretação jurídica da fórmula legislativa, questiona: “ onde está escrito?” (BETTI, 2007, p. 55)

Parece, pois, que a verdade não está mais pautada nem na ditadura da igreja nem tampouco na positivação do direito. Ela, seguramente, atrela-se às modificações sociais.
Em sendo assim, novos direitos surgem e alguns outros são excluídos e / ou adaptados ao ordenamento jurídico, tudo isso em razão de seu caráter mutável.

2.2 O interesse na perspectiva de Habermas e suas ideologias

Para Habermas todo conhecimento é dirigido por um interesse e a alguns desses interesses estão relacionados à auto–reflexão. Essa auto-reflexão assume um caráter de emancipação, como se lê:
na auto reflexão um conhecimento entendido com o fim em si mesmo chega a coincidir, por força do próprio conhecimento, com o interesse emancipatório; pois, o ato de executar da reflexão sabe-se, simultaneamente, como um movimento de emancipação.( HABERMAS, 1982, p. 219).

Percebe-se, portanto, que o intuito de Habermas ao desenvolver sua teoria sobre o conhecimento e interesse, a qual estava ligada à auto-reflexão e, por conseguinte, à emancipação, era o de demonstrar que entre os conhecimentos e os interesses mostrados havia ideologias em suas entre linhas.
Dessa forma a auto-reflexão surge como forma de libertar-se das coerções implícitas nos conhecimentos que eram dirigidos pelos interesses de uma mesma experiência.
Nesse sentido afirma Habermas que
os interesses orientadores do conhecimento deixam-se avaliar unicamente pelos problemas objetivos da conservação da vida, os quais receberam resposta através da forma cultural da existência ( HABERMAS, 1982, p. 218)

Essa conservação da vida pode estar aliada à uma repercussão de uma ideologia dominante e coercitiva e não democrática e participativa, dessa forma o caráter emancipatório de Habermas relaciona-se à liberdade real e não apenas à liberdade possível.
Somente, portanto, desfazendo as amarras do dogmatismo e, conseqüentemente, entendendo os interesses da razão é, possível, segundo Habermas, libertar-se de uma consciência natural e daquilo que está no subconsciente. Para, então, desvencilhar-se dos limites de tal dogmatismo é preciso apropriar-se antes do interesse próprio à razão:
A razão última na divergência entre o idealista e o dogmático é, assim, a divergência de seu interesse. Toda lógica pressupõe a necessidade da emancipação e um ato de liberdade para que o homem se eleve até o ponto de vista idealista da maioridade emancipatória, a partir do qual é possível sondar de forma crítica o dogmatismo da consciência natural e, em conseqüência, os mecanismos ocultos da autoconsciência do Eu e do mundo: o supremo interesse, a razão todo e qualquer interesse, é para conosco mesmos. ( HABERMAS, 1982, p. 226)

É essa perspectiva crítica e auto-reflexiva que orientará o sujeito em suas atividades, bem como o desprenderá de uma existência aprisionada e dogmática. Essa se dá em função de ideologias dominantes de uma época, de um grupo.
Nesse sentido extraí-se de sua teoria que:
o dogmático, pelo contrário, ao não encontrar força que o pode levar à auto-reflexão, vive na dispersão e, à moda de um sujeito dependente, está determinado pelos objetos e, ele próprio, coisificado como sujeito: ele leva uma existência não livre, eis que não chega a ter consciência de sua própria espontaneidade refletida. (HABERMAS, 1982, p. 229)

O discurso, pois, para Habermas deixa de ser monológico e passa a ser dialógico, uma vez que o indivíduo passa a atuar tanto na perspectiva do agir instrumental quanto no agir comunicativo e da experiência. Isso implica que as relações se operam de forma intersubjetiva,ou seja, na relação com o outro, a qual se dá de forma mútua, livre, pois, dos interesses de uma dominação.
Isso, entretanto, torna-se palpável, possível com uma comunicação que seja embasada na idéia de consenso entre os interlocutores.
Saliente-se, todavia, que a teoria desenvolvida por Habermas, remete-nos a uma noção idealizadora de democracia. Sendo cabível arriscar dizer até utópica, em especial, se a relacionarmos à sociedade brasileira, em que há uma enorme carência de efetividade de direito, sobretudo e inclusive, porque parcela da população vive aquém do entendimento dos limites de seus direitos e, por conseguinte, de sua possibilidade de exigir.
Nesse sentido, a noção de consenso e de verdade de Habermas tornam-se nortes para o desenvolvimento de uma sociedade igualitária, cujos pressupostos estão alicerçados nos pilares da liberdade, da democracia e do direito aberto.

2.3 Democracia Participativa: meio de exigibilidade de Direitos

Com base no exposto, infere-se que a formação de um conceito de verdade absoluto, assim como a existência ou não de um consenso jurídico capaz de alcançar uma perfeição jurídica devem servir de base para a busca de um direito renovador e dinâmico; um direito que vise alcançar a melhor solução possível ao caso e ao tempo no qual está inserido.
Neste sentido, Bezerra afirma que
denominamos realização dos direitos, a efetivação dos mesmos, a sua concretização, a sua viabilidade. Sem essa dimensão, o direito é apenas um papel, letra morta, potencialidade, intenção. (BEZERRA 2001, p. 190)

Não cabe, pois, em uma época em que se discute princípios como o da Dignidade da Pessoa Humana, falar em uma norma, cuja efetivação não passa de uma idealização. O intérprete do direito assume, portanto, um papel essencial nesta busca pela efetivação. Todavia, não somente ao interprete cabe essa luta. A sociedade civil, ou melhor, os cidadãos também assumem este papel uma vez que as normas são dirigidas também e, sobretudo, para eles. É justamente a capacidade de reivindicar por seus direitos que os torna cidadãos.
Nessa esteira, Harbele leciona que:
todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente do processo hermenêutico. (HERBELE, 2002, p. 15)

Ele ainda complementa dizendo que:

“Povo” não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão. ( HERBELE, 2002, p. 37)

É, pois, esse processo participativo que torna possível que um direito se torne exigível. Saliente-se que não apenas a participação popular materializa essa possibilidade de exigência do direito, mas faz-se necessário que toda a comunidade que está inserida na realidade tenha conhecimento dos direitos já estabelecidos, assim como os direitos que vão surgindo ao longo das transformações sociais, econômicas, comportamentais e culturais.
A exigibilidade de um direito é, pois, um dos passos necessários para a efetivação dos mesmos. Sem esse prisma o direito torna-se inócuo, uma vez que seu papel é justamente o de atuar, através da interpretação das normas jurídicas, na realidade transformando-a, modificando-a, melhorando-a em prol da coletividade.
Nesse sentindo, leciona Betti:
[…] pois a norma, longe de se exaurir na sua primitiva formulação, tem vigor atual e simultâneo com o ordenamento de que é parte integrante e se destina a passar para a vida social e a transfundir-se nela, à cuja disciplina deve servir. Portanto, nesse caso, o intérprete ainda não terminou de cumprir sua tarefa ao reconstruir a idéia originária da fórmula legislativa (o que também tem de fazer), mas deve, depois disso, colocar essa idéia de acordo com a presente atualidade, inserindo nela a vida dessa idéia, pois é justamente a ela que a avaliação normativa deve referir-se. ( BETTI, 2007, p. 24).

É nessa perspectiva que se pode afirmar que o homem é transformador de realidades, sejam elas individuais ou coletivas. È, portanto, através de suas condutas que a realidade se altera.
Importante, pois, citar, nessa perspectiva, Gadamer que leciona sobre a noção de horizonte da maneira que se segue:
Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Ao contrário, ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas pode ver para além disso. (GADAMER, 2005, p. 400)

Isso implica que ao intéprete do direito não é dado o direito de fechar-se à realidade social, pois o social e o legal são “regras” que caminham lado a lado.
Mais além Gaddamer ainda postula que
ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver para além do que está próximo e muito próximo, não para abstrair dele mas precisamente para vê-lo melhor, em um todo mais amplo e com critérios mais justo ( GADAMER, 2005, p. 403).

É, pois, enxergar além das ideologias e das coerções que elas incidem sobre os indivíduos. Para isso, entretanto, faz-se necessário quebrar paradigmas e isso implica uma atitude de reconstrução a partir da desconstrução, consoante o que preceitua Kuhn:
A transição de um paradigma em crise para um novo do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal’ está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. (KUHN, 2006, p. 116).

Assim, o direito pós – moderno não abre espaço para uma interpretação hermética, isolada aos órgãos legislativos. Ao contrário, ela requer a participação social a fim de alcançar a liberdade e a igualdade de direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo quanto exposto, conclui-se que independente das variadas percepções individuais que se formam ao longo das leituras feitas sobre os objetos interpretados e, inclusive, da ausência de um consenso jurídico absoluto ou de conceito estanque de verdade, os Direitos não se submetem a argumentos que justifiquem a sua falta de efetividade e/ou exigibilidade.
Apesar dos conceitos de consenso e de verdade estarem relacionados à provisoriedade e à relatividade isso não implica em um impedimento de sua implementação, ao contrário, significa que o intérprete do direito deve estar aberto às mudanças que ocorrem na sociedade, assim como deve estar apto a entender que essa mesma sociedade é um organismo vivo e como tal se transmuda, se modifica, se adapta à novas realidades, à novas leituras de mundo.
Interpretar com o olhar voltado às novas formações culturais e sociais, não implica em arbitrariedade, ao revés significa que o hermeneuta, ao abster-se, única e exclusivamente, da literalidade da lei, busca por uma solução mais justa a cada caso. Significa ponderar, utilizar-se das técnicas, não apenas a literal, para, possivelmente, alcançar uma justiça justa.
O sistema jurídico, portanto, é plural e essa pluralidade se dá em razão da variadas e possíveis concepções de verdade e de consenso. Habermas propõe em sua teoria um agir comunicativo despido de autoritarismo, composto, portanto, de diálogos participativos que se dão, em função do consenso entre os interlocutores.
Essa verdade, esse consenso, cujo interesse está voltado à emancipação, está imerso na intersubjetividade de uma compreensão que se dá mutuamente, uma vez que os participantes do agir comunicativo são diferentes, logo possuem perspectivas de vida e necessidades diferentes.
É nesse contexto de dissensos que atua o hermeneuta jurídico. À ela cabe, pois, a tarefa de encontrar para cada caso a solução mais justa e adequada. Para isso faz-se necessário levar em conta os fatores espaciais e temporais nos quais estão imersos a dialética da comunicação.
Essa dialética não pode, por seu turno, olvidar, as questões relacionadas às vivências de mundo, uma vez que ao fazer isso, corre-se o risco de aplicação de interpretações esvaziadas de conteúdo social.
Como, pois, o objetivo do intéprete jurídico é, sobretudo, o de atuar na realidade social, transformando-a, melhorando-a, impossível, portanto, conceber, uma interpretação desprovida de função social, cujas bases estejam apenas alicerçadas na literalidade da lei.

REFERÊNCIAS

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GADAMER, Hans- Georg. Verdade e método: fundamentos de hermenêutica Filosófica. Petrópolis RJ: Vozes, 1997.

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HIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1997.
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KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científica. tradução Beatriz Vianna Doeira e Nelson Boeira. – 9. ed. – São Paulo: Perspectiva, 2006

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.

PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999.
PONTY, Maurice Merleau. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e técnica de Interpretação. Vozes.

STREK, Lênio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, Hermenêutica e teorias discursivas, da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2 ed. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2008.

1. Introdução

O presente trabalho visa demonstrar como o juiz aplica a metodologia proposta pelo filósofo Edmund Husserl ao prolatar uma sentença judicial.
Para isso iniciaremos fazendo uma resumida bibliografia de Edmund Husserl, buscando demonstrar sua formação intelectual, bem como suas fontes filosóficas.
Mostraremos também a base da metodologia fenomenológica, fixando seus principais preceitos, bem como o método a que se propõe a construir, de forma a alcançar o eidos.
Da mesma maneira, verificaremos a aplicação do método proposto por ele quando o juiz prolata uma sentença, que se trata de uma redução eidética, enfatizando tal atividade no âmbito do processo trabalhista e do processo penal.

2. A vida de Edmund Husserl

Edmund Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia, no antigo Império Austríaco, onde hoje localiza-se Prostejov, na República Checa, em 8 de abril de 1859, e morreu em Freiburg, em 27 de abril de 1938. A fim de completar seus estudos de matemática, iniciados nas universidades alemãs, foi, em 1884, para Viena, onde, sob a influência de Franz Brentano, descobriu sua vocação filosófica.
Em 1887, Husserl, que fora judeu, converteu-se à Igreja Luterana. Ensinou filosofia, como livre docente, em Halle, de 1887 a 1901; em Göttingen, de 1901 a 1918; e, em Freiburg, de 1918 a 1928, quando se aposentou.
Na raiz do pensamento de Husserl encontram-se as seguintes influências principais: Franz Brentano e, por seu intermédio, a tradição grega e escolástica; Bolzano, Descartes, Leibniz, o empirismo inglês e o kantismo.

3. A importância do pensamento de Edmund Husserl

Edmund Husserl fixa as bases da metodologia fenomenológica.
Dessa forma, ele esclarece que por intermédio desse método temos que tomar cuidado com a linguagem utilizada, tendo em vista que a linguagem comum pode ser equívoca e vaga.
Assim, temos que formular enunciados de sentido lógico, claro, devendo ser escolhidas palavras que tenham sentido unívoco, para se evitar a obscuridade da nossa expressão.
Ainda devemos primar pela exatidão da formação conceitual, de forma que haja exatidão na própria essência apreendida, buscando as descrições efetivamente científicas.
Ele também faz a conceituação do “eidos” que significa a essência. A efetuação evidente dos atos lógicos fazem parte dos atos de apreensão eidética.
Com isso, a apreensão perfeitamente clara tem a vantagem de permitir, por essência, uma identificação e diferenciação, uma explicação, absolutamente indubitáveis.
A fenomenologia proposta por ele busca a realização de uma redução eidética, ou seja, reduzir as vivências à sua essência, objetos ideais que não se acham na mente, hipótese psicológica, nem no mundo platônico das idéias, hipótese metafísica, nem na inteligência divina, hipótese teológica.
A fenomenologia não apenas desenvolve o método de obter novas espécies de conhecimento, como também de proporcionar a mais perfeita clareza sobre o sentido e a validez desse método.

4. A fenomenologia de Edmund Husserl

De acordo com Edmund Husserl, em sua obra “Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura”, tem de se buscar a essência dos puramente vividos.
Essa busca da essência abre o campo de conhecimentos eidéticos, os quais, apresenta-se como um campo por toda parte infinito.
As diversidades, com suas composições eidéticas reais e intencionais, bem como os nexos eidéticos, são inesgotáveis, gerando as verdades apoditicamente necessárias.
Para se colher frutos valiosos é importante esse campo infinito do a priori da consciência.
A dificuldade e a situação incomum somente ocorrem no começo. Isso porque o novo campo e o método que se deve proceder não se espraiam ao nosso olhar com uma profusão de dados já destacados, que nos bastaria capturar para estarmos seguros da possibilidade de torná-los objetos de uma ciência.
Diferentemente ocorre em relação à investigação independente, na qual o conhecimento dos dados da orientação natural encontra-se no horizonte de algo conhecido. A metodologia se prende a um dado já conhecido, bem como o aprimoramento do método pressupõe um método já existente.
Na fenomenologia isso não ocorre. A metodologia precisa de um método para trazer à apreensão do olhar o campo de coisas da consciência transcendental pura; pela fenomenologia é preciso desviar laboriosamente o olhar dos dados naturais de que não se cessa de ter consciência.
A fenomenologia deve desenvolver o método de obter novas espécies de coisas para novas espécies de conhecimentos; ela também deve proporcionar a mais perfeita clareza sobre o sentido e a validez desse método, que a capacite a rechaçar todas as objeções sérias.
A fenomenologia possui como essência a mais completa ausência de pressupostos e absoluta evidência reflexiva sobre si mesma.
Aquilo que é metodologicamente determinante para ciências novas tem para a fenomenologia uma significação totalmente diferente daquela que esforços análogos poderiam ter para outras ciências.
Assim, Husserl abstrai o mundo natural, tentando obter uma consciência que ele chama de pura.
A norma de redução fenomenológica nos proíbe de registrar qualquer proposição que contenha, explícita ou implicitamente teses naturais.
Um exemplo da aplicação da fenomenologia pode se dar na psicologia. Ora, em todas as disciplinas que remetem a si mesmas há certa dificuldade, pois para a primeira incursão investigativa nelas, é preciso operar com meios metódicos auxiliares.
Uma ciência eidética puramente descritiva tem que buscar a clareza mais completa, apreender intuitivamente a essência, formular o intuído em expressões conceituais fiéis.
As análises reflexivas são análises fenomenológicas de essência. Para isso, as reflexões precisam formular enunciados metodológicos na mais completa clareza, utilizando-se de conceitos que se ajustam real e fielmente ao dado concreto..
As palavras provenientes da linguagem comum são equívocas e vagas, em razão do seu sentido variável.
Só é possível ciência onde os resultados do pensamento possam ser conservados na forma de saber e aplicados pelo pensamento posterior na forma de um sistema de enunciados, que são claros pelo seu sentido lógico e que podem ser entendidos sem evidência.
As palavras e proposições devem ser univocamente ordenadas e suas essências devem ser intuitivamente apreensíveis.
Da mesma forma, aconselha-se evitar ao máximo os termos técnicos estrangeiros, pois, em razão das equivocidades do uso comum das palavras, é preciso cautela e exame reiterado para saber se aquilo que foi fixado num contexto anterior é empregado no novo contexto efetivamente com o mesmo sentido.
A cada vez que se vislumbra uma obscuridade fugidia, deve se buscar a perfeita clareza, o que possibilitará a aplicação das valiosas intuições eidéticas.
No caso da obscuridade total, polo oposto da total clareza, absolutamente nada alcança a condição de dado, a consciência não se constitui mais “doadora” no sentido próprio da palavra.
A consciência doadora, no sentido forte, significa a consciência intuitiva, clara, por contraposição à consciência não – intuitiva, obscura. O limite mínimo é a obscuridade; o limite máximo é a clareza.
Quando tratamos dos níveis de doação ou de clareza, devemos distinguir os níveis autênticos de clareza, ou seja, as ampliações extensivas do âmbito da clareza.
Devemos lidar com gradações que se movem no âmbito em que o intuído é efetivamente intuível, já que a clarificação consiste em dois processos que se vinculam mutuamente: nos processos de tornar intuitivo e nos processos de intensificação da clareza do já intuído.
Acabamos, dessa forma, de descrever a essência da clarificação normal. A regra é que não existe nenhuma intuição prévia que seja pura, nem puras representações vazias se convertem em intuições puras.
Assim, Husserl nos ensina que a fenomenologia não tem apenas de desenvolver o método de obter novas espécies de coisas para novas espécies de conhecimentos; ela tem de proporcionar a mais perfeita clareza sobre o sentido e a validez desse método, que a capacite a rechaçar todas as objeções sérias.
A apreensão perfeitamente clara tem a vantagem de permitir, por essência, uma identificação e uma explicação absolutamente indubitáveis e, portanto, a efetuação evidente de atos lógicos. Isso significa, justamente, atos de apreensão eidética.
Por outro lado, uma aproximação pode ocorrer também na esfera de obscuridade. Esse tipo de aproximação se faz por etapas, pela repetição em séries de representação.
É exagero dizer que toda evidência da apreensão eidética requer que as individualidades subjacentes estejam plenamente clarificadas em sua concreção.
A percepção externa possui clareza perfeita para todos os momentos objetivos, que nela entram efetivamente como dados no modo da originariedade. Essa percepção também oferece individualizações claras e estáveis para análises eidéticas gerais de tipo fenomenológico ou até, mais especificamente, para análises de atos.
Ademais, a percepção externa, além de muito mais acessível, não se esvai pela reflexão, podendo ser estudada no âmbito da originariedade, sem despender esforços especiais para o estabelecimento da clareza.

5. A fenomenologia de Husserl na sentença judicial

A principal tarefa dos magistrados é o julgamento. Busca-se na sentença a solução mais equânime para cada situação, devendo o juiz embasar seus fundamentos de acordo com as provas e os fatos alegados por ambas as partes.
O processo foi concebido como instrumento para a aplicação matematizada das regras jurídicas, utilizando-se de uma interpretação mecanicista, própria de uma lógica binária do sujeito-objeto, típica da conhecida filosofia da consciência, através de um procedimento silogístico.
Modernamente, no entanto, tem-se que, após um processo regido pela dialética e dirigido dialogicamente com as partes, a sentença serve como fonte legítima à criação de normas jurídicas concretas.
A sentença expressa um comando normativo direcionado à disciplina de relações jurídicas controvertidas, decorrentes de casos concretos, tendo, pois, eficácia inter partes.
Importante mencionar que, na sentença, o juiz, para chegar à intuição sobre a justiça do caso concreto, não consegue se apartar com completo a sua própria opinião a respeito dos fatos das dimensões jurídicas, assim como também não consegue se desvencilhar de toda a carga valorativa da vida que possui, das experiências particulares, do meio social onde vive, ou da educação que auferiu, sendo um mito a neutralidade, tão capitaneada pelo Estado Liberal; daí porque é imprescindível o juiz demonstrar claramente de onde extrai subsídios para a construção da decisão que ele pensa ser justa, através da motivação sentencial.
Nesse sentido, a lição de Wilson Alves de Souza:
“a fundamentação das decisões judiciais é uma exigência do princípio democrático, ou seja, de um Estado democrático de direito. Quando o Estado, no exercício da função jurisdicional, retira os bens ou a liberdade de algum cidadão deve a este uma explicação. Tal exigência se mostra muito mais necessária e muito mais complexa nos casos em que estão em jogo conceitos indeterminados ou quando o caso envolve as chamadas lacunas da lei ou, ainda, quando se decide com fundamentos em outros precedentes”.

O juiz utiliza no processo final de julgamento os argumentos, os documentos, e as provas orais que são produzidas no curso do processo.
Importante notar que, até mesmo por mandamento constitucional, o juiz deve fundamentar suas decisões judiciais, devendo demonstrar como atingiu a conclusão necessária para apontar e determinar o direito correto ao caso concreto.
É justamente através da fundamentação da decisão que se pode aferir se o pronunciamento judicial foi feito em conformidade com a lei, as provas, ou seja, se a decisão foi justa, correta e verídica.
Para muitos doutrinadores, a sentença não passa de um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma, em que a lei é considerada a premissa maior, os fatos a premissa menor e a decisão judicial a conclusão.
No entanto, devemos lembrar que a decisão judicial não admite apenas um resultado, principalmente nos casos mais difíceis, cabendo ao juiz a decisão sobre o que o precedente significa.
Assim, podemos concluir que sentença judicial é apreendida segundo uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico formal, resultante unicamente de um silogismo.
É importante trazermos à lume o que nos ensina Miguel Reale:

‘É necessário aprofundar o estudo dessa “experiência normativa”, para não nos perdemos em cogitações abstratas, julgando erroneamente que a vida do Direito possa ser reduzida a uma simples inferência de Lógica formal, como a um silogismo, cuja conclusão resulta da simples posição das duas premissas. Nada mais ilusório do que reduzir o Direito a uma geometria de axiomas, teoremas e postulados normativos, perdendo-se de vista os valores que determinam os preceitos jurídicos e os fatos que os condicionam, tanto na sua gênese como na sua ulterior aplicação.’
O método fenomenológico proposto por Husserl deve ser aplicado à sentença, tendo em vista que o juiz também tem por dever tomar cuidado com a linguagem utilizada, escolhendo as palavras que tenham sentido unívoco, visando evitar a obscuridade da sua expressão, tal como preconizado por tal teoria.
Além disso, o juiz deve primar pela exatidão da formação conceitual, de forma que haja exatidão na própria essência apreendida, ou seja, alcançando o próprio eidos.
Somente dessa forma, o juiz poderá alcançar a essência da justa decisão a ser tomada em um caso concreto, após apreender os elementos e argumentos trazidos pelas partes, sempre almejando a verdadeira aplicação da Justiça.

6. A fenomenologia aplicada à sentença trabalhista que trata de confirmação de vínculo de emprego.

A busca da essência do que vem a ser um empregado nada mais é do que uma redução eidética e a sentença, o instrumento para o alcance dessa redução fenomenológica, quando presente a lide que intenta o reconhecimento do vínculo de emprego.
Como já afirmado ao norte, não se ignora que os magistrados são influenciados pelas suas próprias experiências quando do exercício da função jurisdicional de resolver os litígios que lhe são submetidos, com a prolação da sentença, o que também não é desprezado pela fenomenologia.
Para Hussel, não importa como o mundo real afeta os sentidos, pois há distinção entre a percepção e a intuição, sendo certo que alguém pode perceber e estar consciente de algo, porém sem intuir o seu significado. A intuição eidética é essencial para redução correspondente (epoché); ela é o dar-se conta da essência, do significado do que foi percebido. O modo de apreender a essência é a intuição das essências e das estruturas essenciais.
De comum, o homem forma uma multiplicidade de variações do que é dado. Todavia, enquanto mantendo a multiplicidade, o homem pode focalizar sua atenção naquilo que permanece imutável na multiplicidade, isso é, a essência, esse algo idêntico que continuamente se mantém durante o processo de variação, é o que Hussel chamou de “o invariante”, o que nada mais é do que o “eidos”, daí porque a expressão redução eidética propõe a busca do eidos, daquilo que é invariável quando se analisa os fenômenos.
A epoché, redução eidética, ou busca do “eidos” é exatamente o exercício praticado pelos magistrados trabalhistas, quando analisam a existência ou não de vínculo de emprego, porquanto em todos os casos que tais, há uma figura “invariante”, o trabalhador, que sempre será a essência de qualquer pessoa física que se ative para prestar serviços a outrem.
O artigo 3º consolidado define o vem a ser um legítimo empregado, considerando-se com tal “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Analisando a redação do referido dispositivo, pode-se pensar que há uma forma quase mágica ou matemática para a identificação do que vem a ser o real empregado. Entretanto, o alcance de tal essência se dá de forma concreta e liga-se muito mais ao campo da percepção do que do preenchimento dos indigitados dispositivos, sendo certo que o contrato de trabalho é do tipo real, sobretudo nos dias atuais, em que se fala tanto no repensar da subordinação jurídica, passando-se a analisar a relação de emprego sob a ótica da subordinação estrutural.
Maurício Godinho Delgado, em seu tão conhecido Curso, diferencia a figura do empregado dos meros prestadores de serviços, empreiteiros, mandatários, parceiros, sócios, representantes, trabalhadores avulsos, eventuais e autônomos e em todas as figuras descritas há algo que não varia jamais. Esse invariante é a justamente a essência de todas das relações de trabalho, tendo-se que a figura do trabalhador está presente em qualquer contrato onde haja a prestação de serviços através de pessoa física.
Para o real alcance do que vem a ser o empregado, o magistrado trabalhista deve se afastar do que Hussel chamou de “tormentos da obscuridade”, ou elementos que podem desnortear o julgador, que deve sempre ter consciência daquilo que vê e percebe. Assim, uma vez identificada a figura da pessoa física trabalhador, passa-se a analisar se tal obreiro também reúne outros elementos, tais como a onerosidade, a não-eventualidade, a alteridade e a subordinação, que, no nosso sentir, pode ser jurídica ou estrutural. Eis a redução eidética, concluindo-se ou não pela existência de um legítimo contrato de emprego.
Em análise ao processo n. 00003-2008-017-05-00-3, fundamentou-se que:
“o contrato de trabalho autônomo é írrito ao contrato de emprego e ao mesmo tempo a este semelhante, tendo-se que em ambos há prestação de serviços por pessoa física – muito embora nada impeça a prestação de serviços autônomos através de pessoa jurídica -; de forma não-eventual e onerosa. Por outro lado, no contrato de prestação de serviços de forma autônoma, embora haja um contrato de atividade, oneroso e pessoal, o seu prestador, pessoa física, labora sem o elemento central da relação de emprego – a subordinação jurídica -, que figura como uma característica do empregado correspondente ao poder diretivo do empregador. Restou incontroverso nos autos, diante do depoimento da preposta e da oitiva da única testemunha, que o reclamante prestou serviços à reclamada de forma juridicamente subordinada, pessoal, onerosa e não-eventual. Nesse sentido, as falas da preposta: “o reclamante trabalhava na Pontual sendo que esta empresa prestava serviços de motoboy para primeira reclamada; o reclamante, enquanto prestador de serviços da primeira reclamada cumpria jornada da 9h, quando comparecia na loja do Iguatemi, sendo dispensado às 11h, quando chegava na loja do shopping Barra; que, às 13h/13h30min, o reclamante retornava para a loja do shopping Barra; terminando a sua jornada por volta das 16h/16h30min, ocasião em que era dispensado; que trabalhava de segunda a sexta-feira, não trabalhando aos sábados e domingos; que era a própria depoente, bem como a Sra. Isabel quem distribuíam os serviços ao reclamante que deveriam, por este serem executado”. Do depoimento retro transcrito, extrai-se que o reclamante inicialmente prestava serviços à ré, por intermédio de empresa interposta – Pontual – que presta serviços de motoboy e que algum tempo após passou a prestar serviços de forma direta à demandada, sem o aludido intermédio, formando o vínculo de emprego diretamente com esta última. Isso porque, após 13.04.2006 – data incontroversa, tendo-se que o reclamante não provou exatamente quando passou a trabalhar para a reclamada – o autor passou a receber ordens diretas da preposta da reclamada, lá trabalhando de segunda a sexta-feira, preenchendo todos os requisitos contidos no artigo 3º da Norma Consolidada. E nem se alegue que há contrato escrito ou verbal de prestação de serviços de forma subordinada, pois todo o Direito do Trabalho é informado pelo princípio da primazia da realidade, segundo o qual ‘em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isso é, ao que sucede no terreno dos fatos’. Assim, declara-se existente a relação de emprego entre o reclamante e a primeira reclamada”.

A decisão transcrita é um dos inúmeros casos onde se busca a essência do que vem a ser um empregado, suspendendo-se o fenômeno, tal como proposto por Hussel, através do exercício da redução eidética.

7. A fenomenologia aplicada à sentença penal

A aplicação da redução eidética é evidente na sentença penal. Ora, o direito penal pode resultar na restrição a um dos direitos mais importantes do homem: a liberdade.
Justamente por esse motivo, é comum dizer-se que no processo penal, em contraposição, ao processo civil em que vigora o princípio da verdade formal, deve ser observado o princípio da verdade real.
Importante ressaltar os ensinamentos de Diomar Ackel Filho:
“No processo civil, com a admissão das presunções que determinam a chamada verdade ficta. No processo penal, com a rejeição das ficções e das verdades retratadas de modo artificial, por obra das indigitadas presunções. No processo civil prepondera, portanto, a verdade forma e no processo penal, a verdade real.”

Segundo esse princípio, o juiz não fica adstrito à prova produzidas pelas partes, podendo adotar as medidas previstas em lei para buscar o descobrimento da verdade, de forma a se evitar a punição de um inocente ou a absolvição de um culpado.
Vejamos o que aduz o Prof. Tourinho Filho:
“Na verdade, enquanto o Juiz não penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por elas debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, que realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça.”

Evidentemente, que vão existir hipóteses em que, mesmo esgotadas todas as vias para se chegar à verdade, irá pairar na convicção do juiz uma certa dúvida.
Nesse caso, não restará outra alternativa ao juiz senão absolver o réu, com base no princípio do in dúbio pro reo, até mesmo porque, de acordo com nosso modelo constitucional, o réu é considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Vejamos como o Supremo Tribunal Federal vem aplicando esses princípios:
“EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Indícios de autoria. Dúvida razoável. Provas contraditórias. Depoimento de testemunha contrariado por documentos oficiais de que o réu, na data do fato, se encontrava preso. Impossibilidade de subsistência da prisão cautelar. HC concecido. Aplicação do art. 312 do CPP. Se há séria dúvida, resultante de contradição entre provas pré-constituídas, sobre a autoria do fato imputado ao réu, não se lhe justifica decretação ou subsistência de prisão preventiva. (HC 95003, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 23/09/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008 PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-03 PP-00579 RTJ VOL-00207-02 PP-00781)”

Como se percebe pela jurisprudência colacionada, o juiz criminal, ao prolatar uma sentença penal condenatória deve possui elementos sólidos a demonstrar a culpabilidade do réu, de forma a proceder nos moldes da fenomenologia proposta por Husserl, ou seja, realizando a redução eidética.

8. Conclusão

Como pudemos verificar, a idéia de Edmund Husserl possui como núcleo central a redução eidética, que consiste em reduzir as vivências à sua essência, que são os objetos ideais que não se acham na mente, nem no mundo platônico das idéias, nem na inteligência divina.
Essa idéia de Husserl pode ser transportada para a vida prática do aplicador do direito, especialmente do juiz, quando da prolação da sentença, já que ele busca a efetiva atuação da Justiça.
Certamente, a aplicação da metodologia da fenomenologia proposta por Edmund Husserl auxiliará o julgador no seu ideal de alcançar a essência da justa decisão a ser tomada em um caso concreto.

Referências.
1. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 6º edição, São Paulo: LTr, 2007.
2. ACKEL FILHO, Diomar. Verdade formal e verdade real, Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1988.
3. HUSSEL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução: Márcio Susuki, São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2006.
3. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do Processo Civil, 4º edição, São Paulo: Malheiros, 2000.
4. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
5. SOUZA, Wilson Alves de. Sentença Civil Imotivada, Bahia: Editora Jus Podivm, 2008.
6. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 22ª edição, São Paulo: Saraiva, 2000, vol. 1.