Manoel Gonçalves e Talita Romeu
1. INTRODUÇÃO.
Este trabalho propõe uma análise da evolução do conceito de entidade familiar, sob a perspectiva da evolução científica, trazida por Thomas Khun, em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas. Nesta, o autor trabalha com o paradigma dominante e a sua superação, implicando na revolução, na forma de resolver os problemas que o paradigma vigente no momento, não consegue mais.
Analisasse a evolução do que o Estado, reconhecia como entidade familiar e as rupturas que sofreram, no perpassar dos tempos. Vai-se do casamento, como a única forma de enlaçamento entre as pessoas, de sexo diferentes, e a qual, tinha sobre si o manto protetor do Estado, passando pela legitimação e previsão das Uniões Estáveis, pela Constituição Federal de 1998, até os dias de hoje, por meio do reconhecimento, feito Poder Judiciário, às uniões entre homoafetivos, por uma questão de justiça, devido a discrepância entre ordenamento jurídico e realidade social. Com isto, alterou-se o paradigma dominante, estabelecendo-se um nova, bem como, um novo momento da ciência: a normal.
Com o referencial teórico na obra supra, trabalharemos com a noção de paradigmas e sua superação, através da revolução científica, apresentando, posteriormente, análise da evolução do conceito de entidade familiar e, ao final, apresentando a conclusão.
2. A NOÇÃO DE PARADIGMA DOMINANTE E O SURGIMENTO DAS TEORIAS CIENTÍFICAS.
Com base nas ideias apresentadas por Thomas Kuhn, na obra A estrutura das revoluções científicas, pode-se afirmar que, em determinadas circunstâncias, uma comunidade científica, diante de lacunas e de questões dificilmente solucionáveis, sob a perspectiva do paradigma adotado, passa a buscar novos horizontes, utilizando diferentes métodos e formulando problemas de maneira diversa. Em síntese, trata-se da superação de paradigmas, que implica uma revolução no modo de resolver as questões com que se depara a comunidade científica.
Nesse contexto, o autor introduz a noção de paradigma dominante, que se revela como “um conjunto de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na observação” . Os membros da comunidade científica aprendem e desenvolvem suas atividades pautados nas premissas extraídas do paradigma adotado em sua época, produzindo o que Thomas Kuhn denomina de ciência normal. Contudo, ressalva que é possível verificar, mesmo sob esta atmosfera de normalidade, “uma área de penumbra ocupada por realizações cujo status ainda está em dúvida, mas habitualmente o núcleo dos problemas resolvidos e das técnicas será claro”
O surgimento de novas teorias científicas somente é viabilizado devido ao abandono e à substituição de crenças e procedimentos consagrados pelo paradigma, até então, dominante. Esclarece o autor que tal acontecimento está associado a descobertas realizadas pela ciência normal, a partir das quais os cientistas tornam-se aptos a explicar um número maior de fenômenos ou a aprofundar-se no estudo dos fenômenos já conhecidos .
A rigor, ciência normal não tem por objetivo realizar descobertas e produzir novas teorias, já que a comunidade científica praticamente se resigna aos métodos e aos conceitos ditados pelo paradigma dominante. Todavia, a consciência de anomalias – ou melhor, lacunas e incongruências na compreensão do objeto de estudo – desempenha um papel importante na emergência de novos tipos de fenômenos e, mais profundamente, de mudanças na própria teoria científica aceita, em dado momento histórico .
Ocorre que a crise do paradigma dominante impulsiona a comunidade científica a repensar os dogmas vigentes, reformulando problemas e buscando métodos novos para vencer as anomalias, ou melhor, os fracassos até então tolerados, na tentativa de manutenção da ciência normal: “nem os problemas nem os quebra-cabeças cedem ao primeiro ataque” .
Thomas Kuhn pontua que a solução para tais questões, geralmente, é de algum modo antecipada durante o período de normalidade, porém ignorada justamente porque a ciência não se encontra em crise .
A crise se apresenta, portanto, como um elemento catalisador do surgimento de novas teorias. Em geral, não há interesse e disposição da comunidade científica em substituir os instrumentos que, à luz do paradigma dominante, mostram-se eficazes para resolver os problemas por ele propostos . Por um lado, a aparente segurança na utilização destes instrumentos, proporciona o aprofundamento das teorias desenvolvidas naquele contexto pela comunidade científica; por outro, resiste-se com veemência aos sinais de fracasso dos mesmos instrumentos, para manter incólume o paradigma dominante.
Embora seja possível aplicar mais de uma construção teórica a um mesmo conjunto de dados, a multiplicidade de alternativas somente se verifica no período pré-paradigmático e, pontualmente, durante a evolução científica . Após os estágios inicias de desenvolvimento da ciência, estabelecido o paradigma dominante, tornam-se raros os esforços para formulação e solução de problemas além dos seus contornos, os quais apenas serão transpostos nos momentos de crise.
Segundo observa Thomas Kuhn, os cientistas chegam ao ponto de perder a crença em sua teoria e de cogitar caminhos alternativos, porém só abandonarão o paradigma em crise quando puderem substituí-lo por um novo paradigma dominante . É desse modo que eles respondem às anomalias e, consequentemente, às crises das teorias científicas: “decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua” .
A ciência normal entra em crise quando os problemas propostos são considerados como contra-exemplos do paradigma dominante. O período de normalidade científica, evidentemente, não assiste à ampla e completa solução de todas as questões formuladas, deparando-se com os chamados quebra-cabeças da ciência normal, ainda contornáveis sob a perspectiva do paradigma dominante. Uma visão mais crítica de tais quebra-cabeças, que os descortina e os transforma em contra-exemplos, instaura o estado de crise e prepara o cenário para o surgimento de uma nova teoria científica .
É certo que a ciência normal não cede facilmente às anomalias encontradas, empenha-se na aproximação da teoria à realidade fática, objetivando adequar o paradigma dominante antes de rejeitá-lo e de substituí-lo por outro. A comunidade científica costuma seguir a direção mais simples e menos traumática, evita grandes rupturas por meio da tentativa de conformação da teoria científica às novas demandas. Para Thomas Kuhn, “essa atividade pode ser vista como um teste ou uma busca de confirmação ou falsificação” .
O início da crise ocorre quando o paradigma dominante se torna obscuro, insuficiente para direcionar a atividade científica, incapaz de orientar a colocação e resolução de problemas. Como consequência das tentativas de manutenção da teoria então vigente, busca-se preservar o paradigma dominante por meio do “relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal” (até que se transcendam os limites impostos por esse paradigma, substituindo-o por outro).
Esse período de instabilidade científica corresponde ao que Thomas Kuhn denominou ciência extraordinária: busca-se preservar a qualquer custo o paradigma dominante, ao tempo em que outras possibilidades começam a ser cogitadas. Quando o paradigma dominante cede às anomalias e aos efeitos da crise, substituindo-se por outro, ocorre o surgimento de novas teorias, que inaugura mais uma fase de normalidade para a comunidade científica. Nesse aspecto, cita-se importante passagem da obra utilizada como premissa teórica deste trabalho:
Confrontados com anomalias ou crises, os cientistas tomam uma atitude diferente com relação aos paradigmas existentes. Com isso, a natureza de suas pesquisas transforma-se de forma correspondente. A proliferação de articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos, são sintomas de uma transição da pesquisa normal para a extraordinária. A noção de ciência normal depende mais da existência desses fatores do que da existência de revoluções.
Finalmente, destaca-se que os períodos de crise – ciência extraordinária – podem proporcionar diferentes resultados: (i) a emergência de um novo candidato a paradigma dominante e a consequente dificuldade para que ele seja aceito pela comunidade científica; (ii) a emergência de um novo paradigma, ainda que embrionariamente, antes mesmo que a crise esteja bem desenvolvida ou que tenha sido reconhecida de modo explícito pelos cientistas; (iii) a emergência de um novo paradigma passado muito tempo desde a primeira consciência do fracasso do paradigma até então dominante, hipótese em que se apresentam mais visíveis as características da ciência extraordinária .
3. A EVOLUÇÃO CIENTÍFICA COMO RESULTADO DA SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS NA TEORIA DE THOMAS KUHN.
A partir das premissas expostas no tópico anterior, Thomas Kuhn introduz o conceito de revolução científica, definindo-o como “episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior” . Esclarece que, os paradigmas em competição, representam modos incompatíveis de vida comunitária, razão pela qual a escolha por um deles já não pode estar baseada simplesmente nos parâmetros utilizados pela ciência normal, porquanto se tornaram questionáveis juntamente com paradigma dominante em função da crise .
A partir do momento em que as anomalias verificadas não podem ser solvidas pelos paradigmas existentes – apesar de todos os esforços de conformação da teoria científica –, torna-se inevitável a adoção de novos paradigmas . Emergem, então, num movimento mais de ruptura que de cumulação, as novas teorias científicas, que mais uma vez instauram a atmosfera de normalidade até que seus paradigmas fracassem e sejam substituídos por outros. Eis o ciclo de evolução – ou melhor, de revolução – científica exposto na obra de Thomas Kuhn.
As revoluções científicas, no sentido explicitado pelo autor, proporcionam não apenas o surgimento de teorias novas, mas também a mudança na própria concepção de mundo dos cientistas. Ao adotar um paradigma diferente, modificam-se os métodos, os instrumentos e a perspectiva da comunidade científica, que passa a propor seus questionamentos em novas direções. Antes disso, durante o período de ciência extraordinária, já se evidenciam mudanças, considerando que o aparato científico existente é redescoberto ao examinar os mesmos objetos sob pontos de vista originais .
O desenvolvimento da ciência normal, diante da estabilidade garantida pelos paradigmas dominantes, não corresponderá a verdadeiro progresso científico. Como já mencionado, em geral, não haverá interesse e disposição para a problematização de novas questões pelos cientistas, tampouco será fácil convencê-los a adotar outra perspectiva teórica em relação aos problemas já solucionados à luz do paradigma dominante. Será preciso que fatores externos, sobretudo a incongruência entre a teoria e a realidade fática, impulsione a busca por um novo ponto de vista . Literalmente, “[…] o progresso parece óbvio e assegurado somente durante aqueles períodos em que predomina a ciência normal. Durante tais períodos, contudo, a comunidade científica está impossibilitada de conceber os frutos de seu trabalho de outra maneira” .
Todavia, ainda que se verifique o surgimento de um novo candidato a paradigma dominante, não será fácil sua consagração pela comunidade científica, que deverá estar convencida do fracasso dos instrumentos existentes para a solução dos problemas postos. Será preciso convencer os cientistas de que o novo paradigma é a única forma de resolver um problema extraordinário, não assimilado pelo paradigma então dominante. Além disso, para a sua aceitação, o novo paradigma deverá preservar, ao menos parcialmente, a capacidade de resolução de problemas alcançada com base nos paradigmas anteriores .
Caracteriza-se a evolução científica, por fim, como um processo de desenvolvimento marcado por sucessivos estágios, separados por períodos de ruptura, de modo que a superação de paradigmas viabiliza a articulação e especialização do conhecimento. Segundo conclui Thomas Kuhn, “o resultado final de uma sequência de tais seleções revolucionárias, separadas por períodos de pesquisa normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno” .
4. IDEIA DE KUHN APLICADA À QUESTÃO DA EVOLUÇÃO DE ENTIDADE FAMILIAR.
Nas Constituições pretéritas à promulgada em 05 de outubro de 1988, a entidade familiar protegida pelo Estado, era aquela formada pelo casamento. Em algumas, a exemplo das de, 1934 e 1937, trazia que este, deveria ser indissolúvel. A sociedade teve sempre como família legítima, apenas àquela derivada do casamento. Qualquer forma variante de união, que divergisse desta, não receberia a proteção estatal. Esta, em termos de família, era o paradigma dominante da época.
De acordo com Paulo Nader:
“O Código Civil de 1916 foi concebido e elaborado em uma quadra histórica dominada pelo sentimento religioso, que situava o matrimônio como sacramento. Para a moral social, família era sinônimo de casamento. Natural que o Código, refletindo o pensamento predominante, centralizasse os institutos de Direito de Família na figura do casamento. Este, para o Código, era a espinha dorsal e constituía verdadeiro dogma. Dentro desta perspectiva, as construções jurídicas visavam a fortalecer o instituto do casamento, não contemplando as uniões extramatrimoniais. Estas eram absolutamente marginalizadas. Admiti-las seria relativizar a importância do casamento, dando aberturas para sedimentação de fórmulas alternativas de vida em comum” (2008, p.468).
Devido ao dinamismo social, a partir da segunda metade do século XX, o modelo de família vem sofrendo alterações.
O movimento e as ideias feministas, trouxeram mudança estrutural na imagem da figura feminina e a mulher passou a valorizar-se enquanto pessoa, saindo da condição de objeto subserviente a outorga matrimonial do marido. Mulher e homem, passaram, dentro do casamento, a terem direitos iguais. Propagaram-se as ideias de direito à autodeterminação sexual, intimidade, individualidade, privacidade e o afeto, passou a ser o objetivo precípuo para enlaçar-se a outrem. Formas diversas de união entre as pessoas surgiram.
Mudam-se as concepções e, a partir de agora, as anomalias surgidas, passam a questionar o paradigma então vigente na comunidade científica, pois este, não apresenta mais, as respostas que comumente dava. Há, assim, a alteração do modelo de família descrito acima, ou seja, apenas aquela oriunda do casamento, fazendo-se necessário, então, buscar a legitimidade pelo Estado, no intuito de que este, estendesse seu braço protetor às novas formas de união, classificando-as também como entidade familiar e, assim, igualando, à novas formas alternativas de união, os direitos que eram dispensados aos casados.
A Constituição Federal de 1988, então, em seu artigo 226, passa, além da família monoparental, a prever a união estável. Legitima-se agora uma nova ordem! O paradigma de ser o casamento, a única forma de entidade familiar é superado, englobando a ele, mais duas formas: a união estável e a família monoparental, passando este novo paradigma, a ser o centro da nova ciência normal estipulada.
Sérgio Gischkow Pereira aduz “a mudança foi profunda, muito profunda. Não é fácil assimilá-la desde logo, condicionados que estamos por séculos e séculos de cultivo da irrealidade e da hipocrisia neste ramo do Direito e por categoria diversas de pensamento” (p.237).
Conquista alcançada!
Conforme Gizelda Maria Saclon Seixas Santos, o §3º, do artigo 226:
“Este preceito constitucional revolucionou a Direito de Família, Arnold Wald, citado por Álvaro Villaça Azevedo, diz que ‘a grande aspiração do direito moderno foi libertar o homem de todas as limitações, responsabilizando-o simultaneamente por todos os seus atos”. Acrescenta, ainda, que ‘a comunhão e a unidade na família não mais têm como base um imperativo legal mas sim a vontade contínua dos seus membros, a colaboração consciente do marido, da mulher e dos filhos para alcançar um finalidade comum’. E mais: ‘nenhuma lei pode criar ou manter um afeto e uma compreensão que não existem. O direito hodierno quer manter a família graças à liberdade e à adesão diária e contínua de cada um dos seus membros, querendo substituir a subordinação, baseada na autoridade imposta, pela comunhão de vida voluntária e construtiva” (1996, p.58).
Apesar de a união estável passar a ser legitimada e legalizada apenas com a Constituição Federal de 1988, quando os integrantes de uniões informais, ou seja, as extramatrimoniais, batiam às portas do Poder Judiciário, buscando proteção, mesmo que não previsto em lei, este, dava guarida às pretensões dos mesmos. Independente de ausência legislativa, o Judiciário, não as deixava desamparadas.
Gizelda Maria Scalon Seixas Santos faz análise de que:
“os tribunais acompanharam a evolução social não permitindo que a família de fato ficasse desamparada. Neste terreno, como em muitos outros, não podemos desprezar a experiência do passado. Mesmo porque, como diz Parizatto, ‘a nova Constituição não trouxe mudança substancial na questão, porquanto apenas reconheceu status jurídico àquilo que era produto de construção jurisprudencial’. É que, nossos tribunais, diante das situações fáticas que lhes eram apresentadas, criaram precedentes que não podem ser ignorados” .(1996, p. 60-61)
Apesar de a Constituição Federal de 1988, ter se adequado aos anseios sociais daquele momento, ela não foi uma adequação completa. Conforme consta em Ata Circunstanciada da Assembléia Nacional, para futura promulgação da Constituição Federal de 1988, o constituinte Gastone Righi, ao ser questionado pelo então presidente da Sessão, se haveria mais alguma emenda para ser aprovada, respondeu que sim, seguindo seu discurso abaixo:
“O SR CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: – Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art 225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher, como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ Tem-se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação inclusive de grupos gays através do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão, no show do Fantástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto augusto, autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido , e pede que se coloque no §3º dois artigos: ‘Para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembléia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto constitucional, recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda” (Suplemento B, p. 209)
Após o pedido acima, a emenda foi aprovada, ficando o texto original, como encontra-se até hoje.
Já neste momento, o constituinte supramencionado, querendo realizar a emenda sugerida pelo também constituinte Roberto Augusto, sugere a aprovação da mesma, para evitar que, no futuro, quando passasse a viger a Constituição Federal, os intérpretes exercessem “malévolas interpretações”, estendendo os mesmos direitos do casamento à uniões ainda mais discrepantes do padrão tido como normal, ou seja, as de pessoas do mesmo sexo.
A união estável passou a romper com a ordem que anteriormente vigia, mas só estaria sob o manto protetor estatal, as que fossem formadas por homem e mulher. A distinção de sexo, fazia-se essencial!
Apesar de termos experimentado uma evolução nos costumes, a partir do momento em que a República Federativa do Brasil passou a prever, através de sua Carta Magna, as uniões estáveis, os nossos constituintes foram tímidos, deixando de abarcar, as de pessoas do mesmo sexo.
Tal timidez estatal, fez com que, durante muito e muito tempo, os homoafetivos tivessem diversos direitos violados. Estes, ínsitos a qualquer cidadão que faça parte da República, ferindo frontalmente princípios constitucionais garantidos, pelo simples fato de amarem e ligarem-se a uma pessoa do mesmo sexo. Citamos, apenas para ilustrar, a violação a direitos sucessórios e previdenciários. Estabelecia-se uma união, construía-se um patrimônio e, na falta de um dos integrantes desta, a sucessão patrimonial era feita entre os familiares, pelo simples fato de, amar alguém do mesmo sexo, não ser protegido pelo Estado. Injustiças aconteceram de norte a sul do país.
Mas, a sociedade evolui! Vivemos em uma sociedade plural.
Cada vez mais, percebemos uma abertura à discussão de questões relacionadas aos gays. Reflexo na evolução do pensamento social global e alteração nos costumes. A Organização dos Estados Americanos – OEA, em sua 38º Assembléia Geral, incluiu em sua agenda de ações, o combate a crimes motivados pela identidade de gênero e orientação sexual. A Secretaria Especial de Direitos Humanos, ligado ao Poder Executivo Federal, lançou o programa Brasil sem Homofobia, pensando em ações de combate à discriminação por orientação sexual. Já há, um dia de combate nacional à homofobia. Nas novelas, as personagens que retratam os gays, ajudam, através da ficção, a reproduzir o universo e os dramas sofridos por quem ama, segundo Oscar Wilde, mas não ousa dizer o nome.
Em relação à temática de Direito de Família, no que concerne a entidade familiar, anomalias, conforme Thomas Khun, surgiram, trazendo, ao universo científico, o caos, estabelecendo-se o período da ciência extraordinária.
De acordo com dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o Brasil tem 60.000 casais homoafetivos. Porém estes, para terem os mesmos direitos das uniões heteroafetivas, precisam de um longo e cansativo embate judicial, buscando que o Poder Judiciário, supra a ausência de dispositivo legal adequado a situação, efetivando, assim, seus direitos.
Roger Raupp Rios traz que:
“Nesta evolução, há de se frisar, primeiramente, a superação da visão que subordinava a dinâmica familiar à consecução de determinados fins sociais e estatais, estabelecidos no interior de uma única e determinada cosmovisão estatal. De fato, desde o reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas de vida comum diversas da tradicional família legítima, até a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal, o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes prevalente. Este aspecto é muito importante, uma vez que em virtude desta nova disciplina constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que desconheça a pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos dias” (2001, p. 104).
Indignados com a total falta de coerência entre a realidade social e a legislação pátria vigente, duas ações foram propostas, perante o Supremo Tribunal Federal, para que fosse dada, ao artigo 1723, do Código Civil, interpretação conforme à Constituição, impedindo, assim, o não reconhecimento das uniões homoafetivas. As ações foram: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, proposta pela Procuradoria-Geral da República e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, proposta pelo atual Governador do Rio de Janeiro.
Em sítio oficial do Supremo Tribunal Federal:
“O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. ‘O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF’.
Todos os demais ministros, seguiram o relator Ayres Britto, e, de forma unânime, proibiram que não se reconhecessem também, a união homoafetiva, como entidade familiar.
Mais uma vez, superou-se o paradigma dominante, transmudando-se em outro, trazendo, assim, uma nova fase, uma nova ciência normal.
6. CONCLUSÃO.
O Poder Judiciário, em todo o processo de evolução do conceito de família, sempre veio como elemento propiciador de ruptura do paradigma dominante, fazendo com que, na presença das anomalias, os cientistas deste, questionassem e requestionassem o paradigma vigente e, ao final, ficando órfãos de respostas coerentes à realidade social, estabelecessem uma nova ciência normal, deixando para trás, todo o período tortuoso e angustiante da ciência extraordinária.
De início, o casamento indissolúvel era a única entidade familiar. Depois, surgem duas outras formas, sendo uma delas, a união estável. Porém, antes de o Poder Constituinte Originário passar a prevê-la, o Poder Judiciário já abraçava esta união informal, reconhecendo direitos. Da mesma forma, levando em consideração princípios constitucionais, deu interpretação conforme à Constituição, em relação ao artigo 1.723, do Código Civil, proibindo que extirpem as, dos casais homoafetivos, direitos inerentes aos, heterossexuais, reconhecendo-os, também, como entidade familiar. A partir daí, por este reconhecimento feito pelo Poder Judiciário, o Legislativo passará a fazer a devida adequação, legalizando-a, através de instrumento apropriado.
Salienta-se que, a busca por um novo paradigma e/ou ponto de vista, pela comunidade científica, surge pela total incongruência entre a teoria posta e a realidade fática. Assim, conforme supra explicitado, transmudou-se o conceito de entidade familiar, estabelecendo-se uma nova ordem, mais adequada, devido a evolução e mudança dos costumes, aos anseios da sociedade contemporânea.
7. REFERÊNCIAS.
DUARTE, Gardênia. União Civil entre homossexuais: a busca pelo amparo legal ‘Uma abordagem jurídico-reflexiva’. Salvador, 2002.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9.ed. Perspectiva: São Paulo, 2006.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2008.
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas Questões de Direito de Família na Nova Constituição. RT 639/247.
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001.
SANTOS, Gizelda Maria Scalon Seixas. União Estável e Alimentos: de acordo com a lei nº 9.278, doutrina, legislação e jurisprudência. Editora de Direito: São Paulo, 1996.
http://ibahia.com/a/falabahia/?p=67419, acesso em 04.07.2011.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idContendo=178931, acesso em 04.07.2011.