A METODOLOGIA DE FORMAÇÃO DO DOCENTE DE ENSINO JURÍDICO: UM OLHAR SOBRE A ATUALIDADE

Publicado: julho 24, 2012 em Artigo

Vanessa Vieira Pessanha

1 INTRODUÇÃO

Nesse artigo, objetiva-se analisar a situação atual de formação do docente de ensino jurídico, em terras pátrias, sob uma perspectiva do método científico, com o enquadramento em algumas teorias notadamente conhecidas no campo de estudo da metodologia.
Buscando cumprir o intuito acima exposto, inicialmente trata-se de algumas reflexões sobre a atividade docente, seguidas do enquadramento teórico-metodológico do desenvolvimento da atividade exercida pelo docente de ensino jurídico (extremamente baseado na formação a que, enquanto educando, teve acesso), passando-se a algumas ponderações acerca da realidade atual de formação desse docente e de exercício de sua atividade pedagógica.
A proposta não é apresentar um quadro histórico da atividade docente no Brasil ou enumerar as teorias da metodologia científica de maneira exaustiva. Pretende-se, nesse trabalho, apresentar questões inquietantes acerca do tema, buscando-se como referencial alguns teóricos da metodologia em função do diálogo direto que suas teorias estabelecem com a questão da formação e da atuação do docente de ensino jurídico.
Iniciar-se-á com a proposta de uma breve discussão de pontos de reflexão a respeito da atividade docente.

2 BREVES LINHAS ACERCA DA ATIVIDADE DOCENTE

Para iniciar o tratamento mais específico da questão docente, pontuar a relevância do processo educacional dentro do atual contexto global é imprescindível. De acordo com António Teodoro (2003, p. 25):
Num tempo histórico relativamente curto, a educação, de um obscuro domínio da política doméstica, tem vindo a tornar-se, progressivamente, um tema central nos debates políticos, a nível nacional e internacional. Esta passagem da educação do domínio doméstico para o domínio público, com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas educacionais.
No trecho supracitado, o autor demonstra a dimensão que a educação adquiriu e sua importância no cenário social, muito em virtude do processo de formação dos educandos, tão caro nas sociedades hodiernas.
De pronto, vale destacar dois equívocos habituais quando se pensa em prática docente, apresentados por Alice Vieira (2002, p. 90):
Para alguns, a prática de ensino deveria oferecer métodos, técnicas e recursos eficazes, ‘fórmulas mágicas’ capazes de solucionar todos os problemas de sala de aula.
Outros, convictos de seus conhecimentos e fundados em experiências pessoais, rejeitam a prática de ensino, e projetam o modelo pedagógico em antigos professores. […] em termos de ensino, é preciso que estejamos atentos para que situações menos benéficas não se repitam.
No primeiro caso, tem-se a falsa noção de que os estudos pedagógicos trarão as soluções totalmente prontas, bastando apenas aplicar as receitas estudadas e propostas, situação que não corresponde à realidade, tendo em vista, inclusive, a riqueza do processo de ensino-aprendizagem e suas naturais variáveis. Vale pontuar, todavia, que o fato desses não apresentarem receitas prontas não os faz perder credibilidade, até porque, procedendo dessa forma, acabam por evidenciar a complexidade do tema e a necessidade de observação do caso concreto (observação, no entanto, embasada em sólidas discussões doutrinárias).
Analisando-se o segundo aspecto, resta evidenciado o equívoco de pensar a prática como patamar superior e que dispensa os estudos pedagógicos, justamente porque estes não conseguem responder a todas as perguntas e acabam por remeter o estudioso à necessidade da prática pedagógica para resolver algumas questões. Incorrem nesse erro – por motivos um pouco diferenciados, como será demonstrado no item 4 –, por exemplo, os docentes de ensino jurídico.
Além dessas questões mais concretas acerca da prática docente, outros aspectos são também objeto de estudo e preocupação no âmbito dos estudos sobre a educação, a exemplo de questões éticas e da necessária postura crítica do professor, enquanto educador e participante do processo de desenvolvimento intelectual dos discentes.
Como ensina Paulo Freire (2008 p. 24), “quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e a seriedade”.
A reflexão crítica é um ponto a ser destacado na atividade docente, em virtude de sua inegável relevância na concepção de um educador – de um profissional que, portanto, trabalhará na formação, em alguns casos de outros profissionais (no caso dos docentes de ensino superior) e, em sua totalidade, de cidadãos.
Nos cursos de licenciatura, costuma-se estudar Psicologia da educação, Didática, Metodologia do ensino (podendo ter outros nomes, como Estágio supervisionado), dentre outras disciplinas relacionadas ao processo de educação. Nessas matérias, são propostas discussões acerca da formação do educando, método de ensino, escolha dos conteúdos e maneira de apresentá-los, processos de avaliação, construção de um plano de aula (com tópicos fundamentais para o direcionamento da atividade em sala de aula, como os objetivos a serem alcançados pelos alunos) – enfim, reflexões sobre a atividade docente de maneira a pensar sobre o papel que se exerce e a necessidade de observar variáveis importantes para a otimização dessa atividade.
Paulo Freire (2008, p. 103) afirma que “assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina, não posso, por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade pedagógica”.
Dentre outros atributos dos docentes, está não só o de informador, mas de formador. Dessa forma, resta evidenciada a sua relevância dentro do contexto social, bem como a importância e os reflexos de sua atividade.
Tomando como ponto de partida essa breve contextualização a respeito da atividade docente, apresentar-se-á, agora, uma contextualização da prática do docente de ensino jurídico de acordo com algumas teorias metodológicas.

3 A PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO JURÍDICO: APLICANDO O PENSAMENTO DE ALGUNS TEÓRICOS EM METODOLOGIA

3.1 APLICAÇÃO DO PENSAMENTO DE FRANCIS BACON – EMPIRISMO

Francis Bacon é considerado, na história da ciência, o responsável pela difusão do método experimental e, justamente por conta dessa peculiaridade, é o primeiro autor apresentado nesse trabalho, haja vista a característica que notadamente se observa no âmbito da docência de ensino jurídico: o exercício da atividade docente tomando – muitas vezes como parâmetro único – o empirismo como método de escolha e perpetuação do ato de ministrar aulas.
É necessário que se pontue que esse fenômeno facilmente encontrado no âmbito do ensino jurídico não lhe é exclusivo, podendo, portanto, ser vislumbrado em outras áreas do conhecimento. Entretanto, o enfoque do presente trabalho está voltado para a formação do docente de ensino jurídico e, por essa razão, as reflexões propostas serão direcionadas a essa categoria específica.
Para compreender melhor a teoria proposta por Francis Bacon, serão examinados alguns trechos de sua obra e alguns posicionamentos que se relacionam às suas idéias e noções, apresentadas ao mundo entre o final do século XVI e o início do século XVII.
De acordo com José Aluysio Reis de Andrade (1997, p. 11), “os escolásticos e todos os representantes das demais filosofias […] são comparados pelo autor [Bacon] a aranhas que tecem teias maravilhosas, mas permanecem inteiramente alheios à realidade”.
A crítica baconiana, portanto, era ao estudo científico desvinculado da experimentação, que não se voltava ao mundo no qual o pesquisador estava inserido, constituindo-se, assim, a teoria pela teoria.
É possível estabelecer um paralelo entre esse posicionamento e o pensamento que, até os dias atuais, vige para muitos professores que atuam na ciência do Direito, entendendo-se que a teoria da educação é despicienda, bastando a prática, o saber que advém do método empírico.
Nas palavras de José Aluysio Reis de Andrade (1997, p. 14), para Bacon “começa […] a formulação de um novo método de investigação da natureza, que permitiria um correto conhecimento dos fenômenos: partindo-se dos fatos concretos, tais como se dão na experiência, ascende-se às formas gerais, que constituem suas leis e causas”. Trata-se, destarte, do conhecido método indutivo.
Para Bacon, “a ciência é investigação empírica, nascida do contato com o real e não oriunda de teorias afirmadas a priori; a ciência tem sentido eminentemente prático […]” (ANDRADE, 1997, p. 18).
Nos Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem de Francis Bacon (1997, p. 33), vale destacar os aforismos III e IV, os quais demonstram a importância da observação dos fatos que ocorrem no mundo:
III
Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.
IV
No trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza.
Nos aforismos XIX e XXII, Bacon (1997, p. 36) apresenta o método indutivo, demonstrando a sua compreensão acerca do processo de investigação dos fenômenos para chegar a afirmações mais genéricas:
XIX
Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado.
XXII
Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo em que discrepam. Enquanto uma perpassa na carreira pela experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais comuns na natureza.
O referenciado autor evidencia sua crença na atividade científica baseada na experimentação no aforismo LXX:
LXX
A melhor demonstração é, de longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao experimento. Se procurarmos aplica-la a outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se proceda de forma correta e metódica, é falaciosa. […] (BACON, 1997, p. 55)
Em que pese acreditar no empirismo, Francis Bacon (1997, p. 79) propõe uma reflexão bastante interessante, uma vez que demonstra que a experiência vaga não se configura como a opção metodológica mais adequada:
C
Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos, como também de gênero diferente dos que até agora nos têm ocupado. Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo, para continuar e promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada a si mesma, […] é um mero tateio, e presta-se mais a confundir os homens do que a informá-los. Mas quando a experiência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.
Mais uma vez é possível estabelecer uma relação entre as palavras do autor e a realidade da prática docente no campo do Direito, reforçando-se a necessidade de estudos pedagógicos como forma de embasar, de maneira mais sólida, as experiências que ocorrem no cotidiano de sala de aula para a escolha do método de ensino. Essa atuação costuma estar baseada na formação que teve, durante a qual seus professores também desenvolviam esse tipo de método, cuja postura reflete-se na atuação dos novos docentes por eles formados.
A título de complementação, vale pontuar que, de acordo com sua biografia, Francis Bacon foi professor de Direito. Esse dado é bastante interessante não só pela coincidência, mas talvez pela relação que desde então já poderia existir da atividade docente no ensino jurídico relacionada ao empirismo – logicamente, combinada com a ausência de disciplinas pedagógicas na grade curricular dos cursos de Direito (uma vez que se trata de um curso de Bacharelado).

3. 2 OUTRAS POSSIBILIDADES DE MÉTODO – FEYERABEND E O DISCURSO “CONTRA O MÉTODO”

Tendo em vista a complexidade do processo de ensino-aprendizagem, aplica-se de maneira bastante produtiva a afirmação de Paul Feyerabend (2007, p. 33): “um meio complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre cambiantes da história”.
Contrapondo-se à noção de Francis Bacon, Paul Feyerabend (2007, p. 33) assevera que “a história da ciência […] não consiste simplesmente em fatos e conclusões extraídas dos fatos. Também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante”.
Permanece indo de encontro ao pensamento de Bacon, assegurando que “[…] algumas das mais importantes propriedades formais de uma teoria são descobertas por contraste, e não por análise” (FEYERABEND, 2007, p. 46).
Dessa forma, o referenciado autor procura demonstrar que o estudo científico deve ir além do simplificado empirismo, buscando demonstrar o quanto esse momento inicial – observação de fatos – pode ser produtivo como ponto de partida, sendo imprescindível, portanto, que a ele sejam somadas outras atitudes de investigação, mais complexas e que possibilitem o desenvolvimento de um olhar crítico acerca desse primeiro passo.
Continua Feyerabend (2007, p. 34):
Prescrições epistemológicas podem parecer esplêndidas quando comparadas com outras prescrições epistemológicas ou com princípios gerais – mas quem pode garantir que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos ‘fatos’ isolados, mas também alguns profundos segredos da natureza?
O questionamento acima reflete a inquietação que deve consumir o pesquisador: será que um determinado método, por melhor estruturado que seja, é a opção mais adequada para certa investigação? Outros procedimentos não poderiam auxiliar no processo, de maneira a proporcionar descobertas mais críticas e confiáveis?
Feyerabend (2007, p. 36) faz questão de refutar a possibilidade de criação de uma situação de caos em função da opção por não escolher um determinado método, sendo a denominada metodologia anarquista um caminho perfeitamente passível de ser traçado. Para compreender essa questão, o autor enfatiza a importância dessa aplicação diferenciada:
[…] não há uma única regra, ainda que plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em algum momento. […] tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Pelo contrário, vemos que são necessárias para o progresso (FEYERABEND, 2007, p. 37).
É fundamental que se ressalte que, apesar do título “Contra o método”, não se considera que Paul Feyerabend dispense a aplicação de qualquer método científico. Promove, no entanto, um discurso contra a unicidade do método, por compreender que a riqueza dos fenômenos muitas vezes pode acabar não sendo percebida caso se decida aplicar um determinado método de estudo, deixando de verificar outras possibilidades igualmente importantes para a sua compreensão mais próxima da plenitude.
Analisando a informação acima, não há que se falar, destarte, na refutação total e irrestrita do método empírico. Vale apresentar um trecho da obra de Feyerabend (2007, p. 41, grifos do autor) em que resta evidenciada essa afirmação: “[…] as teorias tornam-se claras e ‘razoáveis’ apenas depois que partes incoerentes delas tenham sido usadas por longo tempo. Esse prelúdio desarrazoado, insensato e sem método revela-se, assim, ser uma condição inevitável de clareza e de êxito empírico”.
Feyerabend (2007, p. 42, grifos do autor) vai além, deixando bastante clara a sua posição acerca do uso de apenas um método no estudo científico:
Está claro, então, que a idéia de um método fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e de suas circunstâncias sociais. Para os que examinam o rico material fornecido pela história e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza, precisão, ‘objetividade’ e ‘verdade’, ficará claro que há apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale.
Para o supramencionado autor, todos os métodos científicos são passível de utilização para a compreensão de um determinado fato, podendo esse uso ser concomitante. O engessamento da investigação a um método, como dito, pode comprometer uma possibilidade de compreensão mais aprofundada, sendo este, inclusive, um dos grandes objetivos da ciência.
Em outro momento de sua obra, Feyerabend (2007, p. 46, grifos do autor) posiciona-se de maneira totalmente aplicável à concepção de formação do indivíduo:
[…] o conhecimento não é uma série de teorias autoconsistentes que converge para uma concepção ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. É, antes, um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante esse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência.
Dessa forma, é possível estabelecer uma relação com o processo de formação docente – em especial, do docente de ensino jurídico –, compreendendo que, não só a teoria sobre a educação é crucial, mas também aquilo que vai sendo adquirido com a experiência e com o processo de ensino-aprendizagem, muitas vezes também passível de ser um método de tentativa/erro. O docente de ensino jurídico deve passar por todo esse procedimento complexo no intuito de uma formação para atuar em sala de aula.
Embora a tentativa nesse artigo seja mostrar que o empirismo também tem importância (mas não deve ser aplicado em detrimento de outras possibilidades), Feyerabend (2007, p. 48) apresenta um grande argumento: “uma teoria poderá conflitar com a evidência não porque não seja correta, mas porque a evidência está contaminada”.
Por vezes, pode ocorrer que se tenha a evidência contaminada sobre determinado aspecto, a exemplo de uma percepção deturpada acerca de um método de avaliação para determinado assunto, acreditando que, se os alunos lograram êxito, esse é um sinal de que a forma de avaliação escolhida foi a mais adequada, bem como o método de ensino, contudo nem sempre esse pensamento corresponde à realidade – nem em relação ao aprendizado do aluno, tampouco quanto ao tipo de avaliação selecionado.
Como forma de finalizar essa discussão da importância de aplicação de diversos métodos, Feyerabend (2007, p. 48-49, grifos do autor) explica que:
Poder-se-ia […] ter a impressão de que estou recomendando uma nova metodologia que substitua a indução pela contra-indução e utiliza uma multiplicidade de teorias, concepções metafísicas e contos de fadas em vez do costumeiro par teoria/observação. Essa impressão certamente seria errônea. Minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto da mesma espécie: minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de algumas regras que ela ou ele tenderia a considerar básicas.
Admitindo-se que todas as metodologias apresentam falhas, a possibilidade de fazer uso de mais de uma em um mesmo processo de investigação – indo de encontro à noção de unicidade do método, portanto – contribui para a construção de um conhecimento que pode ser considerado mais sólido e próximo à tão almejada idéia de adequação.
Após compreender a postura equivocada de uso de um único método nas investigações científicas, verificar-se-á a realidade hodierna de formação do docente de ensino jurídico e a aplicação dessa proposta de ampliação da metodologia na formação e na atividade docente na área jurídica.

4 CONJUNTURA ATUAL DE FORMAÇÃO DO DOCENTE EM ENSINO JURÍDICO E A APLICAÇÃO DE UMA NOVA PROPOSTA METODOLÓGICA

É perceptível a mudança da concepção da ciência como algo desvinculado de um papel social, como explicam Miracy Barbosa de Sousa Gustin e Maria Tereza Fonseca Dias (2006, p. 5):
Ciência, consciência de realidade e racionalidade crítica são hoje indispensáveis para todos aqueles que desejam se dedicar à produção de conhecimento. Torna-se cada vez mais necessária a consciência da complexidade de nossas relações em relação à facticidade da vida e da cultura. O reconhecimento dessa complexidade externa deve ser expressa a partir da construção de novas aptidões para a produção, inovação e organização do conhecimento.
Essa nova visão acerca da produção científica reflete-se diretamente no tema ora em análise, pois os estudos científicos ganharam um enfoque mais relacionado à sua aplicabilidade e à percepção da necessidade de levar em consideração as vivências.
Uma formação na área de educação (conforme já mencionado oportunamente) agrega valores e conhecimentos ao docente relacionados a um olhar mais sensível em relação ao educando e ao processo em si. Trata-se de uma ciência e, como tal, passou por um método de produção e deve gozar de credibilidade, portanto.
O que é possível perceber, na prática, é uma imensa maioria de professores universitários atuando no ensino jurídico sem qualquer reflexão na área de educação. A competência pedagógica, muitas vezes, é preterida em detrimento do conhecimento prático adquirido na vivência das profissões jurídicas.
Em que pese a formação na área de educação não seja exatamente uma garantia de uma postura comprometida com o ensino, a criação da base teórica e da compreensão das variantes que podem atuar nesse processo podem ser fatores que venham a promover um diferencial interessante para o público discente. Conforme apresentado no item 2 desse trabalho, a formação docente tem grande relevância, especialmente em função da prática educacional, ou seja, da repercussão de sua atividade na formação dos discentes.
Na atualidade, o docente de ensino jurídico – na grande maioria dos casos – tem formação apenas na área jurídica (bacharéis em Direito), desconhecendo discussões básicas acerca da teoria da educação, a exemplo de um dos grandes questionamentos nesta área: como e quando fazer uma avaliação?
Embora o curso de Direito seja um bacharelado e, como tal, efetivamente não deve estar voltado para discussões pedagógicas, uma opção seria um curso de extensão ou especialização na área de educação, de maneira a suprir essa lacuna para uma atuação mais adequada da atividade docente.
Continuando no exemplo da avaliação, o docente de ensino jurídico, em geral, aplica provas e faz alguns trabalhos de grupo, sem explorar outras possibilidades de verificação da aprendizagem (dentre outros fatores que lhe são desconhecidos), justamente por não ter sido apresentado a esse rico campo de estudo.
Vale pontuar que é possível se considerar o fanatismo pelo modelo empírico – compreendendo ser este o melhor caminho – até mesmo como uma espécie de ídolo (na visão de Francis Bacon), tendo em vista a tendência de ser esse raciocínio direcionado uma noção falsa, capaz de se tornar um obstáculo à compreensão mais ampla e crescente de estudos no campo do conhecimento relacionado à educação. Como explica Bacon (1997, p. 39), em seu aforismo XXXVIII:
XXXVIII
Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso à verdade, como mesmo depois de seu próprio logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
A própria investigação científica nas ciências sociais ganhou outro enfoque, demonstrando a importância de validar a dinâmica da sociedade e a própria investigação científica fora do âmbito das ciências exatas:
Novas condições de concepção da Ciência do Direito e das demais Ciências Sociais Aplicadas foram constituídas a partir da noção da complexidade das relações sociais, que não podem ser compreendidas em sua plenitude a partir do aumento da eficiência dos procedimentos. A Ciência Jurídica contemporânea apela à razoabilidade, ao conhecimento crítico e à reconceituação do ato justo (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 11).
A relatada complexidade serve como estímulo em dois segmentos: no incentivo à percepção da realidade (a prática como elemento relevante no Direito) e na atribuição de importância ao estudo adequado da ciência jurídica, com bases mais sólidas especialmente no que tange à formação do docente – responsável, dentre outros fatores, pelo processo de ensino-aprendizagem dos futuros operadores do Direito.
Como forma de demonstrar as críticas que costumam ser feitas à ciência, vale citar Feyerabend (2007, p. 34, grifos do autor):
A educação científica tal como hoje a conhecemos tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ‘ciência’ pela simplificação de seus participantes: primeiro, define-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história […] e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo em tal ‘lógica’ condiciona então aqueles que trabalham nesse campo; torna suas ações mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico. Fatos ‘estáveis’ surgem e mantêm-se a despeito das vicissitudes da história. Uma parte essencial do treinamento que faz que tais fatos apareçam consiste na tentativa de inibir intuições que possam levar a fronteiras indistintas.
A noção de uma lógica dentro de cada campo de pesquisa não deve ser vista como uma possibilidade de engessamento da criatividade que pode vir da prática. Essa idéia pode ser perfeitamente aplicada à sala de aula, uma vez que se trata de um espaço de interação e de experimentos contínuos. O estudo científico em educação, de acordo com essa interpretação, não deve ser visto como algo estático e que já produziu todas as respostas e possibilidades. A educação é um processo dinâmico e, como tal, seus estudos também devem abarcar essa peculiaridade, dando espaço para as descobertas cotidianas e enriquecedoras.
Toda a produção da área de estudos em educação não deve ser desprezada, em função da simples sensação de que a aplicação em sala de aula de um determinado docente é bastante produtiva, mesmo sem fundamentos teóricos na área. Da mesma maneira, esses estudos também não devem desprezar a prática da sala de aula e seus resultados satisfatórios – devem, sim, buscar compreendê-los e incorporá-los, dando continuidade às investigações na área.
Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 40-41) apresenta o novo enfoque no espaço universitário:
O conhecimento universitário – ou seja, o conhecimento científico produzido nas universidades ou instituições separadas das universidades, mas detentoras do mesmo ethos universitário – foi, ao longo do século XX, um conhecimento predominantemente disciplinar cuja autonomia impôs um processo de produção relativamente descontextualizado em relação às preemências do quotidiano das sociedades. […] É um conhecimento homogêneo e organizacionalmente hierárquico na medida em que agentes que participam na sua produção partilham os mesmos objectivos de produção do conhecimento, têm a mesma formação e a mesma cultura científica e fazem-no segundo hierarquias organizacionais bem definidas.
[…]
Ao contrário do conhecimento universitário […], o conhecimento pluriuniversitário é um conhecimento contextual, na medida em que o princípio organizador da sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada. […] É um conhecimento transdiciplinar que, pela sua própria contextualização, obriga a um diálogo ou confronto com outros tipos de conhecimento, o que o torna internamente mais heterogêneo e mais adequado a ser produzido em sistemas abertos menos perenes e de organização menos rígida e hierárquica.
Note-se que a demanda atual é por profissionais mais contextualizados e, dessa forma, o discurso da possibilidade de combinar a teoria da educação e a prática de sala de aula do docente de ensino jurídico caminha no sentido dessa concepção de uma formação mais ampla e vinculada a uma preocupação social mais aguçada, buscando uma atuação pautada no cuidado científico e na resposta de sua aplicação.
Retomando a metáfora já mencionada no item 3.1, no aforismo XCV, Bacon (1997, p. 76) apresenta seu pensamento acerca do empirismo e do racionalismo:
XCV
Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos, ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato (sic) na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional.
É valioso refletir acerca dessa passagem da obra de Bacon, haja vista a sua relação direta com a defesa estabelecida no presente trabalho. Francis Bacon propõe a união de forças entre o empirismo e o racionalismo, demonstrando que uma teoria não exclui a outra, mas, ao contrário, podem perfeitamente se complementar. E o resultado dessa complementação é fator bastante benéfico para a ciência como um todo, de modo que as possibilidades se ampliam, bem como as visões acerca do mesmo fenômeno.
Observa-se, portanto, estabelecendo uma analogia com a proposta acima fundamentada, uma necessidade de mútuo compartilhamento – de experiências e de estudos – para o desenvolvimento adequado da atividade docente. No Direito em especial, os conhecimentos práticos do docente são fundamentais, valendo lembrar os indispensáveis estudos de caso e a compreensão da realidade social para que seja formado um operador do Direito capaz de exercer sua profissão de maneira satisfatória. Formar um docente com espírito crítico e um discente também bastante envolvido com a sociedade na qual está inserido são aspectos de grande relevância no processo de educação jurídica.
Diante do exposto, essa sensação de prática de sala de aula como algo mais importante que a teoria (estudos em educação) não deve se perpetuar na área jurídica, como se verifica na atualidade, sob pena de existir uma continuidade na formação de docentes de ensino jurídico sempre dessa mesma maneira, fator que pode estar empobrecendo as múltiplas possibilidades da educação na área jurídica por falta de conhecimento e estudos sobre ferramentas pedagógicas e reflexões educacionais.
Paulo Freire (2008, p. 26, grifos do autor) explica que “ensinar não se esgota no tratamento do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível”. Para tanto, afirma que “[…] essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes”.
Para formar professores com o grau de complexidade apresentado por Paulo Freire – extremamente necessária e benéfica à educação –, por tudo que se discutiu nesse trabalho, a unicidade do método não parece ser o caminho mais adequado, devendo-se atribuir muito mais valor ao fato de imiscuir-se estudos teóricos e tentativas práticas, sempre com o cuidado e a sensatez que a atividade docente exige, por força de seus grandes objetivos: formação dos discentes (imediato) e promoção do desenvolvimento social (mediato).

5 CONCLUSÃO

Conforme restou evidenciado, o posicionamento apresentado é o de filiação às idéias defendidas por Paul Feyerabend, com uma postura contra a unicidade do método. Dessa forma, não se advoga a tese de ser o bastante apenas a formação em educação para trabalhar com ensino (em que pese a sua grande relevância na construção do arcabouço teórico adequado para o desenvolvimento da prática docente), contudo restringir essa atividade – de proporções sociais tão importantes – a uma aplicação meramente empírica pode ser leviano e bastante prejudicial – tanto para o docente (sob o ponto de vista de sua formação e da sensação, por vezes inverídica, de cumprimento adequado de seu papel social) quanto para os discentes (em relação à construção do conhecimento e, até mesmo, quanto à possibilidade de se tornar também um docente de ensino jurídico – profissão que vem ganhando bastante espaço nos últimos tempos – nos moldes daqueles professores que o novo docente conheceu, basicamente empiristas, gerando um efeito indesejado em cascata).
Faz-se oportuno reforçar que refutar totalmente o método empírico não é a intenção do presente artigo, tendo em vista a sua importância para um processo de ensino-aprendizagem que esteja preocupado com a sua eficácia.
Ocorre, contudo, que se basear apenas nesse método de aplicação prática e observação dos resultados não é o melhor caminho na educação, tendo em vista a sua importância na formação do indivíduo e, justamente em função desse fator de tamanha relevância, o planejamento e estudo prévios podem ser ferramentas de grande valia.
Aplicar uma determinada maneira de ministrar aulas ou de avaliação – sem analisar seus efeitos danosos e sem a necessária correspondência em relação aos objetivos que se busca alcançar com aquelas práticas – pode levar o docente à compreensão de que aquele não era o método adequado e, consequentemente, à mudança em uma outra oportunidade. Observe-se, no entanto, que, para aqueles que foram submetidos a esse momento de fracasso do método, a oportunidade muitas vezes não voltará, permanecendo aquela lacuna em sua formação, a qual, a depender do grau de prejuízo, pode ter um efeito danoso na formação do estudante.
Note-se que não se defende a certeza de que a aplicação de um determinado método, baseado em estudos preliminares e planejamento, seja algo irrepreensível ou perfeito; deve-se perceber, todavia, que as probabilidades de fracasso diminuem significativamente e essa diminuição materializa o cuidado que se faz imprescindível ter em algumas áreas, estando entre elas o processo educacional.
Ponderando os interesses e refletindo criticamente sobre o processo educacional, suas nuances e possibilidades, muito poderá ser feito. Essa evolução na formação do docente de ensino jurídico precisa ser promovida a fim de que não continue a se perpetuar, tendo em vista os prejuízos (oportunamente discutidos) que pode causar.
Se é possível utilizar vários métodos como forma de buscar uma compreensão mais adequada dos fenômenos que são objeto de estudo, por que não utilizar também métodos diferenciados na formação do docente de ensino jurídico, de maneira a tentar abarcar a riqueza da atividade por ele exercida (em função da própria ciência do Direito e da atividade docente)?
Espera-se que esse questionamento ganhe força no meio acadêmico.

REFERÊNCIAS

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FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Trad. Cezar Augusto Mortari. São Paulo: UNESP, 2007.

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GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica. 2. ed. rev., ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade do século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

TEODORO, António. Globalização e educação: políticas educacionais e novos modos de governação. São Paulo: Cortez, 2003.

VIEIRA, Alice. Prática de ensino do português: nos domínios da teoria. In: MURRIE, Zuleika de Felice (org.). O ensino de português: do primeiro grau à universidade. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2002.

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