DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA AO LABELING APPROACH: ROMPIMENTO PARADIGMÁTICO OU “MERA” EVOLUÇÃO?

Publicado: março 20, 2013 em Artigo

Alina Mourato Eleoterio
José Ferreira Coelho Neto

1. INTRODUÇÃO

A criminologia por muito tempo foi estudada pelos penalistas como uma disciplina meramente auxiliar do Direito Penal, agregando seus conhecimentos à dogmática penal a fim de facilitar a compreensão do crime e do criminoso, suas causas e origem. A criminologia surge, assim, como ciência que investiga o crime de um ponto de vista não normativo, diferenciando, portanto, seu campo de estudo do campo próprio do Direito Penal.

Porém, a Criminologia não se relaciona apenas com o Direito Penal, tendo, por característica, uma faceta multidisciplinar. Seus conhecimentos são produzidos, ao longo da história desta disciplina, com o recurso a outras ciências, como a biologia, antropologia, sociologia e a psicologia.

Esta característica interdisciplinar, contudo, terminou se impondo, em princípio, como um obstáculo ao reconhecimento e autonomia da Criminologia enquanto ciência, diante das incertezas na definição de seu método e objeto próprios (VERAS, 2010, pp. 01-02). Esta dificuldade inicial, todavia, foi superada com o reconhecimento de que esta característica deriva das próprias feições do objeto de estudo, o crime enquanto fenômeno, e que a dependência de outras ciências “não impede que a mesma forme um conjunto científico, perfeitamente delimitado em sua configuração” (CASTELO BRANCO, 1975, p. 26).

Este processo de consolidação da Criminologia enquanto ciência autônoma partiu, apesar das referências à Escola Clássica de Beccaria, da Criminologia positivista. O estudo do crime passa a ser realizado com base no método das ciências naturais, o que poderia conferir a ele a cientificidade pretendida. Assim, o método causal naturalista é o preferido no estudo das causas e dos fatores da criminalidade, com o foco destacado na figura do criminoso (ou dell´uomo delinqüente, como preferiria Lombroso). Apesar das críticas a este modelo, impossível negar a sua importância para a formação da disciplina (VERAS, 2010, p. 06).

Mesmo sob a ótica positivista, contudo, a interdisciplinaridade da matéria propiciou diversos olhares diferentes sobre o mesmo objeto, o que torna a Criminologia uma disciplina bastante efervescente, com teorias em geral contraditórias e uma dificuldade terminológica significativa. A depender do enfoque proposto, tem-se uma nova denominação ou uma nova conclusão sobre a causa da criminalidade ou sobre a resposta estatal conferida.

Todavia, todas estas diferenças de posição foram produzidas dentro do paradigma etiológico, seguindo os parâmetros positivistas de pesquisa. Roberto Lyra, pontuando o método a ser utilizado, categoricamente aduz que “Ou a ciência é positiva, ou não é ciência. Seu método é sempre o método cientifico ou positivo” (1995, p. 68). Observa-se, neste exemplo, quanto o método positivista permaneceu impregnado na disciplina, mesmo para os críticos das conclusões iniciais advindas de sua introdução na Criminologia.

Apesar destas considerações, um momento específico no desenvolvimento da Criminologia requer, sob o aspecto metodológico, uma maior compreensão. Trata-se da nova abordagem inaugurada pela teoria do labeling approach (ou teoria do etiquetamento). Este é ponto em que os principais autores apontam uma eventual ruptura paradigmática no estudo da disciplina (BARATTA, 2002, pp. 85-89).

Há autores, como Hassemer e Munõz Conde (1989, pp. 63-65), que divergem desta consideração, apontando que não há de fato uma ruptura paradigmática, nos moldes de uma revolução científica. No máximo, poderia se reconhecer um enriquecimento da disciplina, mas não uma mudança tão profunda ao ponto de revolucionar as bases e diretrizes da Criminologia.

Diante de considerações tão profundamente divergentes, surge inevitavelmente o interesse por esclarecer quais os elementos devem ser levados em consideração para apontar, de fato, se a teoria do labeling approach representa ou não uma ruptura paradigmática no âmbito do estudo da Criminologia. Esse o problema que direciona o presente artigo.

Para tal tarefa, num primeiro momento serão estudadas e elencadas as principais características para que, no âmbito de uma ciência, proceda-se a uma ruptura paradigmática. Nesta tarefa, tem-se o recurso a Thomas Kuhn (2000) e Boaventura de Sousa Santos (2006), autores que pontuam, o primeiro de modo mais teórico, o segundo num viés mais prático, os elementos primordiais a serem observados neste aspecto.

Num segundo momento, proceder-se-á a uma definição do paradigma etiológico, com a definição de seus interesses de investigação, dos conceitos fundamentais formulados e de como se empreende a relação entre objeto e método de abordagem.

No terceiro tópico, será abordada a crise do paradigma etiológico, a partir do estudo das principais teorias que levantaram críticas significativas contra aquele. Estas teorias, a saber, a teoria criminológica da anomia e teoria das subculturas criminais, são localizadas nesse artigo como pertencentes a um período de transição paradigmática, pois, embora sejam responsáveis por uma importante evolução do pensamento criminológico, não representam, ainda, uma ruptura com o paradigma etiológico.

No quarto tópico, o estudo se volta para a caracterização da teoria do etiquetamento, perpassando, tal qual o que foi empreendido com a Escola positivista, por seus conceitos fundamentais, esfera de interesses e, neste caso, pelas diferenças metodológicas que lhe conferem a originalidade e criticidade necessárias para, ao menos, levantar o questionamento acerca da eventual existência de uma ruptura metodológica.

Cumpridas estas tarefas, de maior aproximação com os conteúdos necessários ao trabalho, será chegado o momento de analisar a superação do paradigma etiológico pelo do labeling approach tendo como prisma as características de uma ruptura paradigmática, apontadas ainda no primeiro tópico.

Deste modo, espera-se chegar a uma conclusão que permita compreender e solucionar o problema proposto, estabelecendo uma posição sólida na divergência doutrinária sobre o tema. Esta, frisa-se, é de salutar importância para a melhor definição dos parâmetros básicos de uma Criminologia que deve assumir um papel cada vez mais destacado na compreensão do fenômeno criminal e na orientação da Política Criminal, numa aproximação cada vez mais intensa entre o ser, da realidade social, e o dever ser, da norma penal.

2. AS CARACTERÍSTICAS DE UMA RUPTURA PARADIGMÁTICA

Thomas Kuhn acredita que o desenvolvimento das ciências não se dá por um processo de acumulação de conhecimentos, teorias, descobertas e invenções. Segundo o autor, é equivocada a impressão de que o desenvolvimento científico seria uma síntese de construções teóricas pretéritas absorvidas por concepções atuais com a superação das eventuais deficiências das primeiras. O progresso ocorre, em verdade, por meio das chamadas revoluções científicas, nas quais “um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior.” (KUHN, 2006, p. 125).

No entanto, a substituição de um paradigma por outro não se conclui da noite para o dia, é um processo gradativo, marcado por fortes tensões ideológicas. Esse processo se inicia a partir de uma crise gerada pelo fracasso recorrente das concepções teóricas dominantes em solucionar os problemas e alcançar os resultados pretendidos. Essa crise é marcada por “debates profundos a respeito de métodos, problemas e padrões de solução legítimos” (KUHN, 2006, p. 73), pois reina uma insegurança profissional em relação aos padrões até então aceitos.

Nesse período, ocorrem, ainda, os primeiros ataques ao paradigma dominante por meio da proliferação de teorias críticas. Estas surgem, geralmente, uma ou duas décadas antes do enunciado da nova teoria que representará uma resposta direta à crise e que, portanto, será a responsável pela eclosão de um novo paradigma. (KUHN, 2006, p. 103 e ss.).

A mudança de paradigmas, portanto, não significa uma articulação entre dois modelos contrapostos. Ela representa, mais precisamente, “uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações” (KUHN, 2006, p. 116). Portanto, em razão da profundidade que essa transição representa, haverá um intenso embate de posições ideológicas contrárias, pois, naturalmente, ocorrerá uma forte tendência de conservação do paradigma em crise por meio da tentativa de absorção das críticas e reformulação das concepções dominantes.

Saliente-se, por fim, que essa ruptura paradigmática não decorre, necessariamente, de revoluções científicas de grandes proporções. A obra de Thomas Kuhn se presta, justamente, a demonstrar “a existência de revoluções grandes e pequenas, algumas afetando apenas os estudiosos de uma subdivisão de um campo de estudos” (KUHN, 2006, p. 74). Um dos exemplos significativos de uma Revolução Científica de grandes proporções é narrado por Boaventura (SANTOS, 2006) ao analisar a transição paradigmática que estamos vivenciando de uma Ciência Moderna para uma Ciência Pós-moderna.

Embora o objetivo do presente artigo seja demonstrar, apenas, a ruptura paradigmática representada pela Teoria do Labeling approach em relação ao paradigma etiológico da Criminologia Positivista (uma “pequena” revolução), a transição paradigmática diagnosticada por Boaventura afeta sobremaneira o presente estudo, na medida em que a “pequena” revolução aqui apresentada se insere ou pelo menos é fruto da influência desse período de transição para uma Ciência Pós-Moderna. Portanto, as considerações de Boaventura permearão o corpo do presente estudo, dada a relação intrínseca entre os dois fenômenos.

3. A CRIMINOLOGIA POSITIVISTA (PARADIGMA ETIOLÓGICO)

Segundo Boaventura (2006, p. 20 e ss.), o paradigma da Ciência Moderna foi desenvolvido basicamente no domínio das ciências naturais. Nesse contexto, a matemática ocupou um lugar central na ciência moderna e disso derivaram duas conseqüências principais: em primeiro lugar, o rigor científico é pautado no rigor das medições (“conhecer significa quantificar”); em segundo lugar, o método científico se dirige à redução da complexidade: “Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou”.

Essa tentativa de redução da complexidade do mundo vai transformar o determinismo mecanicista de Newton “na base teórica fundamental da Ciência Moderna”. Assim, a racionalidade hegemônica é marcada por “um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos” (SANTOS, 2006, p. 29).

Por outro lado, paulatinamente ocorreu a transposição desse modelo para as ciências sociais, numa tentativa de aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade os pressupostos metodológicos correntes no estudo da natureza (SANTOS, 2006, p. 33-34).

Inseridas nesse contexto delineado por Boaventura, as diretrizes teóricas da Criminologia Positivista surgem em 1876 com a obra ‘O Homem Delinquente’, de Cesare Lombroso, e são fruto da manifesta influência do determinismo mecanicista que pautou o paradigma científico da Modernidade.

De fato, uma de suas características mais marcantes é a incorporação dos métodos inicialmente desenvolvidos como próprios das ciências naturais. Essa incorporação seria essencial para atribuição do necessário caráter científico às ciências sociais. Em outras e precisas palavras, “O método científico adotado para o estudo da sociedade seria uma alternativa apolítica para abordar problemas sociais como objetos neutros governados por leis universalmente válidas” (DEL OLMO, 2004, p. 36-37).

A Criminologia, deste modo, surge sob robustas influências do evolucionismo de Darwin, do determinismo mecanicista de Newton e, por óbvio, do positivismo de Comte. A criminologia positivista tem por objeto, assim, não propriamente o delito, mas sim o homem delinqüente, considerado como um indivíduo diferente e, como tal, clinicamente observável. Entendia-se, ademais, que era possível individualizar “sinais” antropológicos da criminalidade e observar os indivíduos criminosos no cárcere ou no manicômio judiciário, um universo de coleta de dados no mínimo questionável. (JAY-GOULD, 1999, p. 130-132)

Tais influências conduziram à formulação das denominadas teorias patológicas da criminalidade. Estas teorias são “baseadas sobre as características biológicas e psicológicas que diferenciariam os sujeitos ‘criminosos’ dos indivíduos ‘normais’[…]” (BARATTA, 2002, p. 29).

Não por coincidência e sim por uma orientação político-racial bastante clara, a figura do criminoso nato era fatalmente identificada com características físicas dos homens negros ou das classes mais humildes. Na América Latina, em especial, a figura do delinqüente estaria identificada com a maioria da população, representada pelas heranças antropológicas negras e indígenas. Como triste exemplo, as palavras de Nina Rodrigues. (apud DEL OLMO, 2004, p. 174):

A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria de raça branca a quem coube o encargo de defendê-la […] contra os atos anti-sociais das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças ou sejam, ao contrário, manifestações de conflito, de luta pela existência entre a civilização superior da raça branca e os esboços da civilização das raças conquistadas e dominadas.

As causas da criminalidade deveriam ser procuradas, portanto, na totalidade biológica e psicológica do indivíduo e na totalidade social que determina a vida do indivíduo. O delito, segundo Lombroso, seria determinado por causas biológicas de natureza, sobretudo, hereditária, o que colocaria o criminoso numa posição anterior na escala evolutiva regular da espécie humana. (BARATTA, 2002, p. 30).

Com base nesta explanação, há uma reação ao conceito abstrato de indivíduo, negando a consideração de que o delito seja fruto de um ato de livre vontade. Tratando da Criminologia positivista, bem pontua Ryanna Pala Veras (2010, p. 05):

Negava o livre arbítrio e seus pressupostos, pois entendia que, assim como acontecia com os fenômenos da natureza, havia determinismo no comportamento dos indivíduos. Se a regularidade observada na natureza pudesse ser encontrada no comportamento humano, existiria previsibilidade e alguma chance de prevenir com eficácia o crime se fossem conhecidas as causas do comportamento desviante. A Escola Positiva assume o pressuposto teórico da regularidade/previsibilidade da conduta humana e, com base nele, desenvolve suas teorias.

A visão predominantemente antropológica de Lombroso seria depois ampliada por Garófalo, com a acentuação dos fatores psicológicos, e por Ferri, com a acentuação dos fatores sociológicos. Estes novos enfoques, porém, não traziam qualquer alteração substancialmente mais profunda, na medida em que todos consideravam o crime como algo patológico e “partiam de uma concepção do fenômeno criminal segundo o qual este se colocava como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal, a criminalidade, portanto, podia tornar-se objeto de estudo nas suas ‘causas’[…]” (BARATTA, 2002, p. 40).

Tais enfoques, assim, convergiam no sentido de que o objeto de estudo da Criminologia seriam as causas do crime, recorrendo aos métodos científicos das ciências naturais para apontá-las e desenvolver soluções, curas, correções. Exatamente por este motivo são doutrinariamente inseridos, conjuntamente, no mesmo paradigma etiológico.

Assim, portanto, surge a Criminologia moderna. Bebendo no método das ciências naturais, buscando a causa ou as causas do crime em fatores deterministas, sejam eles bioantropológicos, sociais ou psicológicos, negando por conseqüência o livre arbítrio e cumprindo, em grande medida, uma função sócio-política de reafirmação do status quo político, econômico e, destacadamente, racial.

4. A CRISE E A O PERÍODO DE TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA

Ao reverso do que deixava entrever a Criminologia positivista, a criminalidade é um fenômeno altamente complexo. O fracasso do paradigma etiológico reside, em grande medida, exatamente na tentativa de redução dessa complexidade ao circunscrever as explicações das causas da criminalidade a fatores biopsicológicos. À medida que esse fracasso vai se tornando manifesto, surge uma pluralidade de teorias que formulam críticas efusivas ao paradigma etiológico.

Essa crise paradigmática é marcada, sobretudo, pela influência da teoria criminológica da anomia e das teorias das subculturas criminais. Estas teorias foram predominantes nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX e tem como ponto em comum o fato de que se baseiam em um modelo funcionalista de Sociedade. (LARRAURI, 1992, p. 02)

O marco inicial destas concepções se encontra em Durkheim, responsável por diagnosticar a irrefutável normalidade que rodeia o fenômeno criminal. Para Durkheim, o crime “consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares” e, assim como não pode existir uma sociedade onde não existam divergências individuais em relação às posturas coletivas, “é também inevitável que, entre essas divergências, haja algumas que apresentem um caráter criminoso”. (DURKHEIM, 2006, pp. 83-85). O crime é, portanto, um fenômeno normal de toda estrutura social.

Para além de normal, o crime é útil e funcional à estrutura da sociedade. Ele teria uma dupla utilidade: por um lado, serviria para fortalecer o consenso da comunidade em torno de determinados valores; por outro lado, em determinados momentos, o crime demonstra que é chegada a hora de renovar esses valores e, nesse caso, pode ser um fenômeno decisivo para a evolução de uma sociedade. Segundo Durkheim (2006, pp. 86-87) o crime:

[…] Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto às mudanças necessárias, como também, em certos casos, prepara diretamente essas mudanças[…].Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo com o direito ateniense, Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente justa. No entanto seu crime, a saber, a independência de seu pensamento, era útil, não somente à humanidade, mas à sua pátria. Pois ele servia para preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham vívido até então não mais estavam em harmonia com suas condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente abolidas […]. A livre filosofia teve por precursores os heréticos de todo tipo que o braço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Média, até as vésperas dos tempos contemporâneos.

Nesse sentido, Durkheim esvazia a distinção entre sujeitos criminosos e sujeitos “normais” que caracteriza o paradigma etiológico. O criminoso não aparece mais como um “corpo estranho” introduzido no seio da sociedade, mas sim como um “agente regular da vida social”. Dessa forma, se o crime não é uma doença, “a pena não pode ter como objetivo curá-lo, e sua verdadeira função deve ser procurada noutro lugar” (DURKHEIM, 2006, pp. 87-88)

Partindo das formulações de Durkheim, Merton desenvolve a teoria criminológica da anomia. Sob a perspectiva desta teoria, os crimes seriam fruto das pressões das estruturas sociais sobre determinados indivíduos. Merton considera, em síntese, que a estrutura social define as metas ou fins que os indivíduos devem atingir e, por outro lado, a estrutura institucional regula e controla os meios aceitáveis de se alcançar estes fins.

No entanto, uma sociedade que exerce uma forte pressão sobre metas culturais sem a correspondente exigência do cumprimento das normas institucionais reguladoras, poderá ser marcada por um perfil de indivíduos orientados apenas pela eficiência de seus atos. Esse desequilíbrio entre meios e fins gera um processo de relativização contínua das regras institucionais e esse processo “faz desenvolver na sociedade o estado de anomia (ausência de normas)”. Nesse contexto, o crime seria a reação do criminoso produzida pelo estado de anomia. (VERAS, 2010, p. 51 e ss.)

Como se pode perceber, a teoria criminológica da anomia representa uma crítica incisiva ao paradigma etiológico, na medida em que desloca as causas da criminalidade do delinqüente para a estrutura social.

As teorias das subculturas criminais, por sua vez, compartilham com a teoria da anomia o pressuposto de que a delinqüência é um problema criado pela estrutura social. No entanto, questiona dois aspectos essenciais daquela teoria: primeiro, faz objeção ao enunciado de que toda uma sociedade compartilha dos mesmos valores; por outro lado, questiona o fato de que a resposta ao conflito entre meios e fins culturais se dê necessariamente através de comportamentos individuais isolados. (LARRAURI, 1992, p. 06)

As teorias das subculturas criminais partem da idéia de que o comportamento criminoso, como qualquer outro comportamento, é fruto de uma aprendizagem. Nesse sentido, o foco recai sobre as formas de associações entre indivíduos por meio das quais se transmitem tanto as técnicas de cometimento de delitos quanto as justificações necessárias para essas práticas. (LARRAURI, 1992, p. 07).

Um dos principais expoentes dessas teorias é Sutherland e seus estudos em relação aos crimes de colarinho branco. Segundo esse autor, a delinqüência é aprendida a partir da associação direta ou indireta com aqueles indivíduos que cometem delitos e os indivíduos que aprendem esse comportamento criminoso geralmente não tem contatos freqüentes e estreitos com o comportamento conforme a lei (BARATTA, 2002, p. 73).

Albert Cohen desenvolve a hipótese geral levantada por Sutherland (a delinqüência decorre da aprendizagem), buscando explicar porque determinados comportamentos criminosos são valorizados por determinados grupos (as subculturas criminais). Cohen elabora suas conclusões a partir do estudo dos bandos juvenis. Segundo o autor, os jovens das classes sociais subalternas estão em condições desfavoráveis de competição na busca pelo triunfo pessoal (o status de vencedor, muito presente nas sociedades capitalistas, em especial na estadunidense – the american dream; a conquista dos fins culturais definidos por uma sociedade).

A constatação de que a competição que terão de travar com os jovens dos grupos mais abastados é uma batalha perdida, faz com que os jovens das classes subalternas se juntem a outros em condição similar formando os chamados bandos juvenis. No interior desses grupos, estabelecem outros valores com base nos quais possam medir o seu status, ou seja, invertem os valores dominantes, criando uma subcultura. Nesse sentido, a delinqüência juvenil é uma forma de adquirir reputação e status frente aos outros membros do grupo e de se fazer respeitar. (LARRAURI, 1992, p. 07).

Em suma, sob a perspectiva dessas teorias, a resposta ao conflito entre os fins culturais definidos por uma sociedade e a ausência de meios legítimos para alcançá-los conduz ao desenvolvimento de subculturas criminais. Esses grupos seriam responsáveis pela transmissão das formas de aprendizagem do cometimento de delitos, e estes, por sua vez, seriam justificados por meio da reformulação dos valores dominantes. Portanto, assim como ocorre com a teoria da anomia, conclui-se que a delinqüência é um problema criado pela estrutura social.

Em que pese a inegável contribuição que essas teorias representaram para a evolução do pensamento criminológico, não podem ser consideradas como um rompimento em relação ao paradigma etiológico da criminologia positivista, pois compartilham com esta última algumas das características próprias do paradigma mecanicista da ciência Moderna, delineado por Boaventura (2006) em tópicos anteriores.

De fato, a utilização de métodos próprios das ciências naturais para o estudo da sociedade ainda é uma característica marcante tanto da teoria da anomia quanto da teoria das subculturas. Uma análise acurada demonstra que as referidas teorias se baseiam quase que exclusivamente em observações empíricas, a partir das quais são extraídas determinadas conclusões que se pretendem de aplicação geral para a explicação das causas da criminalidade.

Desse modo, os métodos de observação e investigação utilizado por essas teorias da fase de transição paradigmática se identifica com as técnicas empregadas por Lombroso, Garófalo e Ferri nas suas investigações, com a sutil (mas importante) diferença de que deslocam o foco de observação e as causas da criminalidade do delinqüente para a estrutura social (desigual).

Por outro lado, a fixação na tentativa de identificação das causas da criminalidade, ainda que não sejam buscadas em sinais biológicos ou psicológicos dos indivíduos, sinaliza o apego ao causalismo, próprio de uma concepção do paradigma moderno de ciência.

Ademais, uma concepção funcionalista “se basa en la similitud de la sociedad con el resto de los organismos vivos” e, segundo essa premissa, “también la sociedad, debido a las relaciones de interdependencia existentes en ella, es susceptible de ser estudiada con las mismas leyes causales que rigen el mundo de la naturaleza”. (LARRAURI, 1992, p. 13). De fato, não existe diferença substancial entre a analogia sociedade/organismos vivos e aquela idealizada por Newton em relação ao mundo/máquina, analogia esta que, segundo Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 31), se transformou “na grande hipótese universal da época Moderna”: o mecanicismo.

5. DA SUPERAÇÃO REPRESENTADA PELA TEORIA DO LABELING APPROACH (TEORIA DO ETIQUETAMENTO OU DA REAÇÃO SOCIAL)

A teoria do labeling approach, traduzida para o português como teoria do etiquetamento, surge aproximadamente na década de 60 do Século XX e se ocupa principalmente da reação das instâncias oficiais de controle social, analisando e considerando seu papel constituinte da própria criminalidade. Deste modo, o problema da definição do delito, realizada pela ação do sistema penal desde a elaboração abstrata das normas até a ação concreta das instâncias oficiais através de seus agentes públicos, passa, pela primeira vez, a ser determinante. Por esta razão, inclusive, é também denominada de Teoria da reação social. (BARATTA, 2002, p. 86).

O primeiro passo para compreender a teoria do etiquetamento é o reconhecimento de que o crime não constitui, em si, uma realidade ontológica. Esta reflexão, que como já foi dito anteriormente foi introduzida por Durkheim, é o princípio do rompimento com a visão do crime e do criminoso como uma patologia social. Ao revés, trata-se de um fato social normal e, em certa medida, útil e necessário à evolução social.

Esta concepção, agora desenvolvida com o olhar do labeling approach, conduz à conclusão de que o crime depende, para existir como tal, dos processos sociais de definição, variando, pois, a depender do tempo e dos contextos sociais e culturais. (GOMES e MOLINA, 2007).

O comportamento criminoso, assim, não apresenta nenhuma diferença significativa em relação a qualquer outro comportamento, à exceção de que aqueles foram definidos como criminosos e estes não. Logo, o desvio não é uma qualidade do ato em si, senão uma conseqüência do controle social e da aplicação de suas regras e sanções (LARRAURI, 1992, p. 29).

O que primeiro se destaca nesta teoria, portanto, é a redefinição do objeto de investigação Criminológica. Enquanto para a Criminologia positivista o objeto de estudo era a figura do delinqüente, para o labeling approach o foco é a ação das instâncias oficiais de controle, responsáveis não pela resposta ao crime, mas pela própria criação da delinqüência. O questionamento central da disciplina, então, muda de quem é o criminoso para quem é considerado criminoso. Nas palavras de Gabriel Ignacio Anitua (2008, p. 588):

Dessa maneira, o enfoque da criminologia mudaria totalmente, pois as definições legais ou institucionais deixariam de ser assumidas acriticamente como algo natural, e a ênfase seria colocada exatamente nessas definições. O objeto de estudo da criminologia deixará de ser o “delinqüente” e começará a ser as instâncias que “criam” e “administram” a delinqüência.

O labeling approach se credencia, deste modo, enquanto uma verdadeira mudança paradigmática, que rompe com o paradigma etiológico exatamente pela promoção de uma mudança do objeto de estudo, ao tempo em que se distanciava até mesmo da concepção da sociologia tradicional no que tange à relação entre o delito e o controle social. Elena Larrauri (1992, p. 28) destaca estes dois aspectos:

El propio Lemert (1967:v) al explicar su trabajo argüyó: “Representa un viraje respecto de la sociología antigua la cual asumía que el control social era una respuesta a la desviación. He llegado a pensar que la idea opuesta, esto es, que la desviación es una respuesta al control social, es igualmente viable y una premisa potencialmente más rica para el estudio de la desviación en las sociedades modernas”.
Con la expresión “cambio de paradigma” se describe, por consiguiente, un viraje en el objeto de estudio: de estudiar al delincuente y las causas de su comportamiento (paradigma etiológico) se estudian los “órganos de control social” que tienen por función controlar y reprimir la desviación (paradigma de la reacción social). Estos órganos de control social abarcan desde asistentes sociales, hasta policía, jueces, psiquiatras, etc..

Esta modificação significativa no que tange ao objeto da disciplina é possível e se desenvolve graças a uma robusta modificação de ordem metodológica. O método etiológico de determinação causal de objetos naturais é abandonado em favor de um método mais adequado ao estudo de objetos sociais (SANTOS, 2005, p. 01). Neste particular, a teoria do etiquetamento parte das influências do interacionismo simbólico e da etnometodologia, de fundo fenomenológico (BARATTA, 2002, p. 87).

Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade se constitui a partir de diversas interações entre os indivíduos, portanto, “De acordo com esta perspectiva interacionista, não se pode compreender o crime prescindindo da própria reação social, do processo social de definição ou seleção de certas pessoas e condutas etiquetadas como delitivas” (GOMES e MOLINA, 2007).

Este enfoque interacionista de construção social do crime será o grande responsável pela mudança de objeto do indivíduo para o sistema de reação social e servirá, inclusive, como base metodológica para escolas Criminológicas posteriores, como a Criminologia Crítica (SANTOS, 2005, p. 02).

Por sua vez, a etnometodologia estuda a construção de raciocínios e métodos resultantes do convívio social, ou, nas palavras de seu destacado expositor, Garfinkel (apud STAMFORD, 2006, p. 07), “uso o termo ‘ethnomethodology’ para me referir à investigação das propriedades racionais de expressões de indexação e outras ações de práticas contínuas e contingentes organizadas na vida cotidiana”.

Afirma-se, com esta base, que a sociedade não pode ser conhecida no plano objetivo, mas é o produto de um processo de construção social (BARATTA, 2002, p. 87). Isto representa, ademais, um rompimento com a sociologia positivista, que estuda o fato social como algo previamente dado, pois a etnometodologia considera que o convívio social produz uma visão dos fatos sociais, rejeitando a figura do ator social desprovido de livre arbítrio (STAMFORD, 2006, p. 09).

Este pensamento e, por conseqüência, o da teoria da reação social, também sofre influência decisiva da Fenomenologia de Husserl. Este autor propõe uma atitude investigativa diferente da atitude natural, reaproximando o sujeito do objeto e tornando o investigador capaz de olhar o mundo de outra forma, mais livre. Neste contexto, a reflexão sobre o método é fundamental:

[…] a fenomenologia tem por essência reivindicar o direito de ser filosofia primeira e de oferecer os meios para toda crítica da razão que se possa almejar; e que, por isso, ela requer a mais completa ausência de pressupostos e a absoluta evidência reflexiva sobre si mesma. […] Por essas razões, os cuidadosos esforços para chegar à evidência sobre os componentes fundamentais do método, ou seja, sobre aquilo que metodologicamente determinante para a nova ciência […]. (HUSSERL, 2006, p. 144)

Nas esclarecedoras palavras de Stamford (2006, p. 10):

Husserl realiza uma mudança de atitude na teoria do conhecimento: o investigador deve procurar afastar-se do que é tido por aspecto ôntico, apodítico, como a idéia de atitude natural do ser humano, pois a atenção do pesquisador se desloca do mundo mesmo (da sua realidade) para os fenômenos com os quais esse mundo se anuncia e se apresenta na consciência, isto é, na consciência mesma e nas suas estruturas essenciais.

Esta premissa, diretamente buscada na fenomenologia, foi fundamental para que a teoria do labeling approach ganhasse os contornos críticos que a marcam e pudesse investigar a questão criminológica por um prisma totalmente diverso do anterior. Este embasamento metodológico, destarte, representa um profundo rompimento com o paradigma etiológico, de base positivista e causal naturalista. Toda esta virada metodológica e a mudança do objeto de estudo produziram, nos dizeres de Larrauri (1992, p. 29), uma série de conclusões chocantes para a criminologia positivista.

A teoria do etiquetamento, assim, ora desenvolve críticas inéditas ao sistema penal ora conjuga e sistematiza diversos elementos críticos que já tinham sido, de modo menos organizado, apresentados anteriormente. Destacam-se, a seguir, apenas as principais.

O primeiro aspecto a ser evidenciado é o caráter seletivo do sistema penal. Neste sentido, pontua-se que a “[…] desviação não é uma qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade que lhe é atribuída por meio de complexos processos de interação social, processos estes altamente seletivos e discriminatórios” (GOMES e MOLINA, 2007).

Há muito que a doutrina aborda o caráter seletivo do sistema penal, que termina por escolher a sua clientela entre a massa de marginalizados e excluídos. Nestes termos, afirma o professor Paulo Queiroz (2001, pp. 95-96):

Significa dizer, em outros termos, que o direito penal tende a privilegiar os interesses da classe dominante e isentar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos pertencentes a elas e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a orientar o processo de criminalização sobretudo até formas de desviação das classes inferiores. Exerce-se, portanto, por essa via, uma função ativa, de reprodução e produção de desigualdades.

Destaca-se, outrossim, o caráter criminógeno da pena, responsável pelo reforço da condição de exclusão, estigmatização e criação do estereótipo do criminoso, num ciclo vicioso que, ao invés de cumprir as funções oficiais de prevenção ou de reinserção social, aprofunda sua condição de marginalizado.

Além disso, os questionamentos do labeling approach também se voltaram para as estatísticas criminais. Os positivistas as consideravam dados objetivos que seriam a priori aptas a definir a quantidade de crimes praticados em determinado local e quem seriam os criminosos de determinada sociedade.

Para a teoria do etiquetamento, contudo, as estatísticas também são uma construção social e, considerando a desvelada seletividade do sistema, refletem não os índices reais da criminalidade, mas as diferentes respostas dos agentes estatais a depender das diferentes condutas. As estatísticas oficiais mostram, então, uma sobrerrepresentação da criminalidade das classes baixas, ao passo em que os crimes do colarinho branco e as cifras ocultas evidenciam que o crime, enquanto comportamento humano, ocorre indistintamente em todas as classes sociais, apesar de que nem sempre recebem idêntica resposta do aparato repressivo estatal (LARRAURI, 1992, p. 87).

Enfim, observa-se que a teoria do labeling approach representa um profundo questionamento do paradigma positivista, suas premissas e bases metodológicas. Razão suficiente para que parte significativa dos criminólogos considerem a existência de uma verdadeira ruptura paradigmática, nos termos propostos por Thomas Kuhn.

6. CONCLUSÃO

O paradigma do labeling approach está longe de constituir uma mera “evolução” ou “enriquecimento” da Criminologia como pretendem Muñoz Conde e Hassemer (1989, p. 63). Também não é exagerado ou pretensioso o diagnóstico que considera a existência de uma ruptura paradigmática, como afirmam os supracitados autores, acompanhados nesta posição por Gabriel Ignacio Anitua (2008, p. 588-589).

A teoria do etiquetamento representou uma ruptura com o causalismo característico do paradigma da Ciência Moderna, tarefa que conduziu através do questionamento dos métodos de estudo próprios das ciências naturais equivocadamente utilizados de forma acrítica na investigação de uma ciência social. Neste sentido, por exemplo, examinou as estatísticas criminais, produzidas por meio de investigações baseadas em métodos empíricos, refutando a sua pretensa universalidade e determinismo.

Ao contrário, evidenciou que somente a partir desses dados não seria possível extrair conclusões aplicáveis a todos os fenômenos criminais, justamente porque esses dados são capazes de captar apenas uma parcela da realidade e não dão conta da complexidade do fenômeno criminal. Por esta razão, propõe uma confluência de métodos explicativos, como o interacionismo simbólico e a fenomenologia de Husserl, embora sem descartar a importância (restrita) da observação empírica. Esta pluralidade se mostra essencial para que se possa abarcar a complexidade que rodeia o fenômeno da criminalidade.

Outro ponto que reforça a conclusão aqui proposta é o radical deslocamento do objeto de investigação das causas da criminalidade para as instâncias de definição da criminalidade. Essa mudança de olhar teve conseqüências drásticas, revolucionando os estudos futuros da Criminologia. Explica-se.

No paradigma etiológico, a Criminologia possuía um papel subordinado e auxiliar à dogmática penal, angariando passivamente elementos para sua legitimação. Porém, com o paradigma do labeling approach, a Criminologia, enquanto disciplina, passou a formular de modo autônomo seu objeto de investigação, assumindo um viés crítico e um papel questionador do direito penal. O papel da disciplina e sua posição em relação ao Direito Penal, portanto, foram completamente alterados: da usual subserviência a uma criticidade latente; da função subordinada à função crítica; do papel passivo ao papel ativo.

O labeling approach e as teorias a ele posteriores (reunidas sob a denominação geral de Nova Criminologia ou Criminologia Crítica), que inevitavelmente bebem total ou parcialmente em seus métodos e objeto de estudo, passaram a exercer uma nova influência nos campos da Política Criminal e da Dogmática penal. A título de exemplo, observa-se a manifesta influência que tais constatações representam em relação à Teoria do bem jurídico, pois uma das celeumas centrais da dogmática penal contemporânea reside em saber quais os bens jurídicos passíveis de proteção penal e como e quem deve realizar esta definição.

No entanto, Hassemer e Muñoz Conde fundam suas críticas exatamente numa supostamente reduzida utilidade prática do novo paradigma, ou, em suas palavras, “el ‘labeling approach’ es más importante para la teoría que para la praxis del Derecho penal […], ya que lo que para la teoría es fructífero puede ser perturbador para la praxis.” (CONDE e HASSEMER, 1989, p. 60).

Ademais, pontuam que a teoria do etiquetamento pode ter enriquecido a Criminologia, mas não se trataria de uma revolução na medida em que seu modelo não teria logrado êxito em ocupar totalmente o campo do paradigma etiológico (CONDE e HASSEMER, 1989, p. 63).

Obviamente, é salutar que se observe, a teoria do etiquetamento não preencheu todos os espaços outrora ocupados pelo paradigma etiológico, nem o direito penal internalizou e laborou com todas as críticas e incongruências evidenciadas. Na prática do direito penal, e isto é evidente, inúmeros institutos e instituições permanecem gozando de franca saúde, mesmo tendo sido gestados sob a égide do paradigma etiológico.

Porém, apesar de óbvia, esta constatação não invalida o aspecto cientificamente revolucionário da teoria do etiquetamento. Primeiro, porque a superação de um paradigma não se faz de modo abrupto e total, como alerta Thomas Kuhn . Sempre hão de permanecer problemas que serão solucionados tomando por base o antigo paradigma. Seu caráter cientificamente dominante, todavia, terá sido definitivamente perdido.

Em segundo lugar, a suposta ausência de efeitos práticos questionada não se daria no âmbito da própria disciplina, a Criminologia. Os críticos esperavam que o novo paradigma Criminológico gerasse imediatos e profundos efeitos práticos na dogmática penal. Seria de fato salutar se isto fosse conseguido com maior intensidade, mas a determinação de modificação do sistema penal perpassa antes por revoluções ocorridas no campo da própria dogmática, dependentes, por sua vez, de uma mudança de orientação política bastante específica.

Não seria de se acreditar, portanto, que a dogmática penal, no contexto político que a informa, adotasse amplamente no plano prático as considerações teóricas de um paradigma criminológico a ela profundamente crítico, quiçá deslegitimador. Por esta razão, mesmo tendo ocorridos reflexos práticos no âmbito da dogmática, especialmente na reaproximação, ocorrida a partir da década de 70, entre dogmática e política criminal e na teoria do bem jurídico penal , revela-se mais importante que sua observação se dê no âmbito interno da Criminologia, e aí, como demonstrado, eles se deram em profusão.

Por todo o exposto, considera-se que a teoria do labeling approach representa, nos termos indicados por Thomas Kuhn, uma verdadeira ruptura paradigmática com a anterior Criminologia positivista. Esta conclusão deriva da inequívoca constatação de que significou uma ampla e profunda reconstrução da disciplina em comento, que partiu da redefinição dos métodos empregados, mudou completamente seu objeto de estudo, e passou pela formulação de novos princípios e postulados, até alcançar uma completa redefinição de seu papel enquanto ciência.

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