ESCORÇO HISTÓRICO EM TRABALHOS ACADÊMICOS DA SEARA JURÍDICA: PROBLEMAS RELACIONADOS À DISSOCIAÇÃO ENTRE HISTÓRICO E REFERENCIAIS TEÓRICOS[i]

Publicado: maio 13, 2014 em Artigo

 Pedro Augusto Lopes Sabino[ii]

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Estudo histórico. 3 Evolução histórica e as distorções dos juristas. 4 A indissociabilidade entre histórico e referencial teórico. 5 Conclusão. 6 Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

Comparativamente com a produção destinada a outros campos de estudos, pouco tem sido publicado acerca de problemas metodológicos no âmbito jurídico. No Brasil, o estudo da matéria ganhou maior relevo após a Portaria 1.886/94, que estabeleceu a obrigatoriedade do trabalho monográfico de conclusão dos cursos de Direito. Desde então, tem aumentado consideravelmente a quantidade de obras publicadas para suprir uma deficiência nesse campo. Em que pese isso, persiste a deficiência quanto ao desenvolvimento de estudos históricos.

A dificuldade é atenuada quando se recorre ao aprofundado debate que é verificado no âmbito historiográfico, no qual se desenvolve, há mais de um século intensa discussão sobre o que deve ser estudado e como deve ser pesquisado um determinado tema. Além disso, verifica-se, também, uma reflexão sobre o aspecto ideológico de determinadas opções de pesquisa e de ensino. Para tanto, foram observadas especialmente as obras de Marc Bloch (2001), Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Pérez Brignoli (2002) e Thais Nivia de Lima e Fonseca (2006).

Essa reflexão que, internacionalmente, vem de longa data e, no Brasil, há mais de vinte anos tem sido muito influente no âmbito historiográfico, precisa chegar aos estudos jurídicos. Nessa seara, o leitor ainda se depara com o histórico equivalente a um índice remissivo, a uma enumeração de artigos sobre o mesmo assunto em normas organizadas cronologicamente, a uma referência à participação de Ruy Barbosa na elaboração da Constituição de 1891 ou à de Francisco Campos, em 1937 Ou seja, ainda é comum o estudo restrito ao “fato histórico” como “fato estatal”; o estudo supostamente neutro imune à interferência criativa do intérprete do fato.

Ressente-se, pois, a falta de um enriquecimento interpretativo que foi proporcionado aos estudos promovidos por historiadores. Cumpre salientar que essa compreensão mais complexa se harmoniza com os estudos desenvolvidos em outros campos do Direito. A dissociação entre norma e dispositivo, no âmbito da Teoria Geral do Direito, bem como o conceito de pré-compreensão, no campo da Hermenêutica, têm evidenciado o destacado papel do intérprete e a abertura que pode ser conferida à ordem jurídica. A percepção do papel do intérprete na reconstituição do fato é uma contribuição que tanto pode facilitar a percepção dessa realidade, que destaca o homem na compreensão do mundo, quanto, especificamente no âmbito jurídico, pode contribuir para a discussão da própria metodologia utilizada para a reconstituição do passado (seja em uma obra doutrinária ou no julgamento de um processo).

O presente trabalho, inicialmente, dedicar-se-á ao estudo da mudança no campo da metodologia da história[iii] para, em seguida, analisar problemas verificados em estudos históricos no âmbito jurídico. Ao final, espera-se demonstrar a indissociabilidade entre histórico e referencial teórico.

 

2 ESTUDO HISTÓRICO

Os estudos históricos têm modificado substancialmente as suas características, notadamente a partir da primeira metade do século XX, com grande influência da escola histórica francesa – também conhecida como “escola de Annales” – e da história econômica – cindida em duas tendências: “história quantitativa” e “New Economic History”. De uma história denominada de episódica, passou-se ao que foi chamado de “história quantificada” com substanciais mudanças na perspectiva de abordagem do trabalho do historiador (CARDOSO; BRIGNOLI, 2002, p. 21-44).

A historiografia do começo do século XX foi dominada por uma concepção herdada do século XIX conhecida como “história episódica”. Segundo a lição de Ciro Flamarion S. Cardoso e Hector Perez Brignoli, de acordo com essa concepção, a missão do historiador consistiria em estabelecer, a partir dos documentos, os fatos históricos, coordená-los e expô-los coerentemente. Os fatos históricos seriam singulares, individuais, irrepetíveis. Ao historiador restaria “reconhecê-los todos, objetivamente, sem optar entre eles”. Os fatos deveriam ser considerados a matéria da história, “que já existiria latente nos documentos, antes do historiador ocupar-se destes”. O historiador deveria coordená-los em uma cadeia linear de causas e conseqüências que seria a síntese, a apresentação dos fatos estudados. Até então, a historiografia se concentrava em fatos políticos, diplomáticos, militares ou religiosos, com raras incursões em outros campos. Os adeptos dessa corrente não viam ainda os “fatos históricos” como uma criação do pesquisador (2002, p. 21-22).

Em trabalho cujo foco é o ensino da História ao longo da história, Thais Nivia Lima e Fonseca fornece um importante subsídio à compreensão do tema. A História começou a adquirir delineamento mais preciso a partir do século XVIII. Até então, predominou uma historiografia apoiada na religião e na concepção segundo a qual o curso histórico era definido pela divindade. Com a afirmação do Estado-nação, paulatinamente, os objetivos do conhecimento histórico foram deslocados para a legitimação do poder e para a educação dos príncipes: “O discurso historiográfico foi deixando de lado a genealogia eclesiástica para se fixar na genealogia de dinastias e de nações, traço que manteve forte até o início do século XX” (2006, p. 21). Sem ignorar o fato de temas históricos serem ensinados nas escolas jesuítas nos séculos XVII e XVIII, ela salienta que, a partir da segunda metade do século XIX, a disciplina escolar e o campo de investigação histórica obtiveram contornos melhor definidos.

A trajetória da História como disciplina escolar, destaca Thais Nivia Lima e Fonseca, não corresponde, necessariamente, à da história como ramo do conhecimento científico. No século XVIII, as preocupações com a educação conduziram à introdução de muitos conteúdos. A historiografia estava comprometida com o Estado e a sua produção, sob o controle dos detentores do poder alcançando programas oficiais e obras, atingia as instituições educacionais. Comprometida com a formação das identidades nacionais e com a legitimação dos poderes, concentrava-se na afirmação do passado glorioso e nos feitos dos grandes vultos que deveriam inspirar os jovens. Sob o pálio da “neutralidade” e da “imparcialidade” no trato de um fato que era exterior ao pesquisador, o ensino da História atendeu a um interesse ideológico (2006, p. 15-28). A despeito da variação observada conforme as conjunturas nacionais, “havia a preocupação com a formação do cidadão adequado ao sistema social e econômico transformado pela consolidação do capitalismo e com o fortalecimento das identidades nacionais” (2006, p. 23, grifo nosso).

Vê-se, pois, que os fins do estudo histórico nem sempre foram os mesmos nem foram dotados da objetividade afirmada. O uso do ensino da História como mecanismo de exercício de poder ideológico ganhou força com a organização em forma de disciplina escolar. Por disciplina escolar, entende-se “o conjunto de conhecimentos identificado por um título ou rubrica e dotado de organização própria para o estudo escolar, com finalidades específicas ao conteúdo de que trata e formas próprias para sua apresentação” (FONSECA, 2006, p. 15). Salienta Thais Nivia Lima e Fonseca que o ensino da História, com tal qualidade, atendeu a interesse de grupos, notadamente Igreja e Estado.

Uma corrente tradicional da historiografia via o Estado como o centro do processo e concentrava as suas pesquisas em fontes a ele ligadas (v.g., legislação). Essas abordagens tradicionais “não explicavam sozinhas de que forma a cultura poderia interferir ou interagir na definição dos conteúdos a serem ensinados, em seus objetivos e em seus métodos e, menos ainda, as múltiplas formas de apropriação possíveis” (FONSECA, 2006, p. 19). Essa insuficiência, há muito verificada no campo historiográfico até em obras dedicadas à educação básica, como será visto mais detidamente, ainda não foi assimilada nos trabalhos jurídicos.

Segundo Thais Nivia Lima e Fonseca, em consonância com as tendências historiográficas contemporâneas, era preciso romper com a barreira do convencionalismo e do oficialismo. Por conseguinte, era necessário apurar os instrumentos conceituais utilizados e ampliar o conjunto das fontes utilizadas. Seria crucial valorizar “revistas, jornais, peças publicitárias, obras artísticas, programas de rádio e televisão que, tratando de temas da história, […], cumprem um papel educativo que extrapola os muros da escola e levam saberes a circular mais amplamente na sociedade” (2006, p. 20, 36). Em síntese, o estudo histórico demandaria a multiplicidade de fontes compatível com a diversidade e complexidade das questões analisadas.

Marc Bloch dedica extensa parte de sua obra a respeito da metodologia histórica ao objeto da história. De acordo com o mesmo, o objeto da história são os homens – haja vista a necessidade de enfatizar a diversidade que lhes é própria. Com efeito, a história pretenderia capturar os homens no tempo, ela seria uma ciência dos homens no tempo: “Portanto, não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos” (2001, p. 54-55, 67).

Ainda de acordo com ele, seria um absurdo, com base em velhos estudos, afirmar que a história seria a ciência do passado. Os fenômenos passados, sem outra característica comum exceto o fato de não terem sido contemporâneos, não poderiam ser matéria de conhecimento racional. A ciência dos homens no tempo conviveria com a perpétua mudança e estaria voltada para a diversidade (BLOCH, 2001, p. 50-56).

Segundo Marc Bloch, nos estudos de pesquisas históricas os ídolos da tribo teriam um nome: obsessão das origens[iv]. Partindo dessa observação, ele desenvolve a idéia de ídolos da tribo dos historiadores como verdadeiros ídolos das origens, caracterizados pela tentativa de explicação do mais próximo pelo mais remoto. Nesse aspecto, a história estaria atrasada em relação às ciências da natureza, que, desde a metade de século XIX, dominadas pelo evolucionismo biológico, se afastavam de formas ancestrais, com explicações nas quais já se privilegiavam as condições da vida ou do ambiente contemporâneas. Os ídolos das origens conduziriam o intérprete ao erro de “confundir uma filiação com uma explicação” (2001, p. 56-58). Na sua síntese: “Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquelas em que vivemos como das outras” (2001, p. 60). O historiador deveria reconstituir o fenômeno de modo a responder a um questionamento que orientaria a pesquisa.

De outro lado, também seriam censuráveis os “devotos do imediato”, por conceberem o presente como algo quase desligado do passado. De imediato, Marc Bloch opõe aos defensores desse entendimento a imprecisão do conceito de presente. Este seria, na linguagem corrente, o “passado imediato”. Pelo simples fato de o presente ser próximo não decorreria a impossibilidade de seu estudo científico; diversamente, seu estudo seria indispensável. A ignorância do passado não apenas prejudicaria a compreensão do presente como a própria ação humana no presente (2001, p. 60-63).

Marc Bloch defende alguns deveres do historiador que precisam, também, orientar os estudos históricos na seara jurídica. São eles: ser sincero; não dissimular que “o próprio progresso de nossos estudos é feito da contradição necessária entre as gerações sucessivas de trabalhadores” (2001, p. 41); “recolocar em seu meio”, na atmosfera mental da época, os autores estudados – haja vista a diversidade de problemas de consciência de uma época para outra. Ademais, finalmente, o historiador deveria ter a capacidade de apreender o que é vivo. Conscientemente ou não, as próprias experiências cotidianas[v] do historiador, com diferenças, é que serviriam para reconstituir o passado (2001, p. 64-66)[vi].

Além desses aspectos, Marc Bloch critica a defesa da ordem cronológica para conduzir as investigações de um historiador. O pesquisador poderia perder tempo na busca mecânica das origens ou das causas e, ao final, concluir que elas inexistiriam. Ademais, “a eficácia de uma força não se mede exatamente por sua distância”. O fato mais distante poderia ou não exercer uma força maior sobre o presente do que outros que lhe sucederam. Dever-se-ia, diferentemente, partir do que se conhecesse mais para o que se conhecesse menos (2001, p. 65-67)[vii].

Considerando a brevidade da vida e a amplitude dos conhecimentos a adquirir, o mundo seria dos especialistas. Todavia, nenhum deles jamais conseguiria compreender nada inteiramente, sequer em seu campo de estudo: “a única história verdadeira, que só pode ser feita através de ajuda mútua, é a história universal” (BLOCH, 2001, p. 68). O entendimento de Bloch destaca o caráter colaborativo do conhecimento, de acordo com o qual a compreensão verdadeira só poderia ocorrer por meio de uma fusão de horizontes entre os diversos estudiosos. Nesse sentido, deve-se reportar a Boaventura de Sousa Santos quando defende a compreensão das partes pela compreensão do todo e vice-versa, inspirado em Gadamer (SANTOS, 1989, p. 11-16), valendo-se do conceito de círculo hermenêutico.

No Brasil, no que concerne ao ensino, a Ratio Studiorum, de 1599, orientada pelos seus objetivos evangelizadores, estabeleceu as diretrizes educacionais dos jesuítas e serviu para a organização dos estabelecimentos de ensino até a expulsão da Companhia de Jesus pelo Marquês de Pombal, em 1759 Durante a administração pombalina, influenciada pelo Iluminismo, teria ficado evidente a percepção da importância da educação para o Estado e da necessidade de ele assumir o controle educacional. Por meio dela, o Estado formaria os seus quadros administrativos[viii] (FONSECA, 2006, p. 37-41).

Segundo Thais Nivia Lima e Fonseca, a constituição da História como disciplina escolar, no Brasil, ocorreu após a independência. Nas décadas de 20 e 30 do século XIX, debateu-se sobre o que deveria ser ensinado. É amplamente difundido o entendimento segundo o qual o principal objetivo do sistema educacional após a independência foi formar as elites dirigentes. Voltados para esse objetivo, conteúdos e formas de abordagem promoviam “uma História eminentemente política, nacionalista e que exaltava a colonização portuguesa, a ação missionária da Igreja católica e a monarquia” (2006, p. 42-47).

O uso do ensino da História para a consolidação da unidade nacional e para a formação moral e cívica continuou durante a República. Consoante Thais Nivia Lima e Fonseca, após inúmeras reformas, o seu ensino continuou enfatizando os fatos políticos e as biografias dos “brasileiros célebres”. Após 1964, essa concepção teria sido aprofundada e influenciada pela Doutrina da Segurança Nacional e Desenvolvimento. Como reflexo da época, no que concerne aos procedimentos a serem adotados pelos professores, houve a identificação da “pesquisa” com trabalhos de transcrição baseados em obras indicadas pelos docentes (2006, p. 50-59).

Só em meados dos anos 80 – em que pesem os debates iniciados ao final da década de 1970 – a historiografia, sob influência de movimentos internacionais, começou a repensar os seus objetivos e perspectivas interpretativas propondo um ensino de História “voltado para a análise crítica da sociedade brasileira, reconhecendo seus conflitos e abrindo espaço para as classes menos favorecidas como sujeitos da História”. Discussões semelhantes eram desenvolvidas em diversos Estados-membros tendo como cerne a necessidade de uma nova seleção dos conteúdos e da metodologia de ensino que propiciasse um estudo mais crítico, dinâmico e participativo; afastado, assim, a concepção de uma História linear, mecanicista, factual e heróica (2006, p. 10, 59-62).

Conforme Thais Nivia Lima e Fonseca, sob a influência de movimentos internacionais, a historiografia só começou a repensar os seus objetivos e perspectivas interpretativas em meados dos anos 80 – em que pesem os debates iniciados ao final da década de 1970. Propunha-se um ensino da História “voltado para a análise crítica da sociedade brasileira, reconhecendo seus conflitos e abrindo espaço para as classes menos favorecidas como sujeitos da História”. Discussões semelhantes eram desenvolvidas em diversos Estados. O cerne da discussão era a necessidade de uma nova seleção dos conteúdos e do modo de abordá-los passando, evidentemente, por uma nova metodologia de ensino. Essa reestruturação tinha como escopo um estudo mais crítico, dinâmico e participativo. Afastar-se-ia da concepção de uma História linear, mecanicista, factual e heróica (2006, p. 10, 59-62).

Ainda de acordo com Thais Nivia Lima e Fonseca, o estudo escolar da História ainda mantém “as práticas, os elementos mais remotos que a conformaram como tal”. As bases tradicionais fundadas no século XIX ainda persistem (2006, p. 68). Nesse contexto, no que concerne à educação superior, especificamente nos estudos jurídicos, deverão ser feitas algumas reflexões a seguir.

 

3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E AS DISTORÇÕES DOS JURISTAS

Com base no exposto anteriormente, é possível desenvolver crítica melhor fundamentada acerca dos estudos históricos no âmbito jurídico. Enquanto historiadores defendem a utilização de pluralidade de fontes e o afastamento das exclusivamente estatais, em trabalhos jurídicos, é corriqueiro o estudo histórico restrito ao destaque das principais modificações legislativas. Enquanto, entre os educadores, a mudança da legislação educacional é cotejada com a persistência das velhas práticas, nos estudos jurídicos, afirma-se a “evolução” histórica da disciplina de uma matéria sem leitura de doutrina nem de jurisprudência próprias do período analisado. Historiadores enfatizam o papel do pesquisador na constituição do objeto (CARDOSO; BRIGNOLI, 2002, p. 30) e juristas se limitam a uma narrativa linear com base normativa e pretensões de objetividade. A apreciação mais detida do problema requer a análise de alguns problemas expostos a seguir.

Em trabalhos jurídicos, ainda é comum a apresentação de um histórico como um amontoado de fatos arbitrariamente escolhidos. Por que determinadas normas e não outras? Por que alguns fatos e não outros? Aspectos do tema estudado são escolhidos, expostos e, posteriormente, não integram o desenvolvimento do trabalho. A inserção do histórico, não raro, contribui tanto quanto um capítulo prévio sobre definições não utilizadas no desenvolvimento do texto. Atende a um requisito burocrático, sem, criteriosamente, ser elemento indispensável para a compreensão do trabalho. O histórico é reduzido à condição de prolegômenos “eruditos” a ser esquecido (quando incluso pelo autor) ou simplesmente ignorado.

Sob esse prisma, com ou sem histórico inserto, os trabalhos jurídicos são desenvolvidos dissociados do seu passado. Seus autores, em regra, não buscam a demonstração de uma tendência e atendem, simplesmente, a uma etapa “burocrática”, puramente baseada na mecânica observância da ordem cronológica das modificações legislativas. Pelo leitor, o presente é compreendido como uma simples repetição do passado ou como um momento cujas raízes podem ser olvidadas.

Persiste-se no problema dos ídolos das origens indicado por Marc Bloch (2001, p. 56-60). O esforço do estudioso é dirigido para a identificação da “primeira” norma positiva a disciplinar uma matéria e, em seguida, contenta-se com o poder “auto-explicativo” da indicação da fonte “pesquisada”. A obsessão pelas normas antigas (ou mesmo do primeiro autor a falar sobre algo) não se insere em qualquer tipo de modelo interpretativo sustentado pelo conhecimento aprofundado de outros períodos.

Marc Bloch salienta que, pelo vocabulário corrente, “as origens são um começo que explica”. Todavia, a origem não basta para explicar (2001, p. 56-57). Além disso, a indicação da origem, assim como a de todas as mudanças, pode não ser imprescindível para a compreensão de uma matéria. Exemplificando com uma discussão corriqueira em nossa experiência constitucional recente, é possível indicar matérias que foram objeto de sucessivas medidas provisórias antes da Emenda Constitucional n. 32 Quem desejasse falar dos abusos na edição de medidas provisórias poderia sentir a necessidade de indicar todas as medidas editadas para disciplinar uma determinada matéria. Contudo, para quem desejasse discorrer sobre a matéria disciplinada, a indicação de todas poderia ser desnecessária. Não haveria, necessariamente, uma melhor compreensão da matéria com a busca da primeira medida e de todas as subseqüentes. A avaliação dessa necessidade, em síntese, dependeria do problema[ix] enfrentado pelo pesquisador.

Tal entendimento parece não ter encontrado respaldo no âmbito jurídico brasileiro. Procede-se como os etimologistas criticados por Marc Bloch (2001, p. 58). Acredita-se que, recorrendo-se à origem, será explicado o sentido contemporâneo de uma palavra na língua. Entretanto, como se sabe, a língua não é apenas lógica, e o sentido etimológico, em alguns casos, explica tão pouco quanto a busca da origem da disciplina normativa de uma matéria. Ademais, a despeito da permanente crítica ao positivismo jurídico verificada na doutrina, os estudos históricos, no âmbito jurídico, não costumam se afastar das fontes estatais – diferentemente do que é preconizado pelos historiadores no que concerne à pluralidade de fontes. Nesse sentido, é possível ouvir falar do “avanço” trazido por uma norma que nunca tenha sido efetivamente aplicada até a sua revogação. Sob esse prisma, percebe-se a importância da interdisciplinaridade nos estudos jurídicos.

Como já destacado, a explicação dos fenômenos históricos deve ser inserta no seu momento (BLOCH, 2001, p. 60). A interpretação literal era a interpretação predominante nos tribunais? Quais alternativas interpretativas eram oferecidas pela doutrina à época? As alternativas oferecidas pela doutrina conduziram a alguma mudança do entendimento jurisprudencial? A norma positiva tinha eficácia? De fato, ela representou o que poderia levar a crer a literalidade de seu texto? Para o exame de questões como essas, que frequentemente acompanham estudos na seara jurídica, os horizontes trazidos pelas disciplinas auxiliares contribuem substancialmente para a sua compreensão.

 

4 A INDISSOCIABILIDADE ENTRE HISTÓRICO E REFERENCIAL TEÓRICO

O aprimoramento da compreensão de uma matéria depende da evolução das questões que lhe são opostas. Marc Bloch critica os manuais que “fazem uma imagem surpreendentemente cândida da marcha” do trabalho do historiador; como se ele partisse da reunião dos documentos, da leitura, da avaliação da sua autenticidade e da sua veracidade para, somente depois, desenvolver outras atividades. No seu entendimento, “nenhum historiador, jamais, procedeu assim. Mesmo quando, eventualmente, imagina fazê-lo”. Os textos e os documentos não falariam senão quando se sabe interrogá-los. Qualquer investigação história pressuporia, pois, desde o princípio, uma direção e a flexibilidade necessária para agregar novas questões (2001, p. 78-79).

Quanto mais aprofundados os questionamentos, maior a necessidade de fontes. “Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documentos, específico para tal emprego” (BLOCH, 2001, p. 80). Também por esse prisma, pode-se avaliar a deficiência de inúmeros manuais cujas passagens dedicadas ao historio não ultrapassam a leitura dos enunciados de artigos de épocas variadas.

Marc Bloch destaca a importância do conhecimento de “ao menos um veniz de todas as principais técnicas do ofício. Mesmo apenas a fim de saber avaliar, previamente, a força da ferramenta e as dificuldades de seu manejo” (2001, p. 81). O recurso do pesquisador às disciplinas auxiliares seria útil nesse ponto. Quando ele não possuísse a multiplicidade de competências necessárias, deveria recorrer ao trabalho por equipes. No âmbito jurídico, a interdisciplinaridade necessária para o aprofundamento de estudos históricos não costuma ser verificada em manuais.

Ciro Flamarion S. Cardoso e Hector Perez Brignoli afirmam que a ilusão da ingenuidade ou da objetividade do historiador diante dos fatos reais e substantivos, que se imporiam do exterior, já não poderia ser sustentada com a superação da história episódica. “Renunciando à sua feliz inocência o historiador deve tomar conhecimento de algo fundamental: da necessidade, ou melhor, da inevitabilidade de selecionar, recortar, construir seu objeto em função de suas hipóteses, de seu marco teórico e metodológico” (2002, p. 30). Com efeito, por essa perspectiva, o objeto estudado seria construído pelo pesquisador. Mais importante do que cada dado isoladamente obtido pelo pesquisador seria a interpretação que um conjunto de informações poderia subsidiar. A crítica interna deveria se dedicar “à demonstração da homogeneidade e da coerência interna das séries de dados, recolhidas ou construídas pelo historiador, e de sua pertinência em relação às hipóteses de trabalho propostas” (CARDOSO; BRIGNOLI, 2002, p. 30).

A reconstrução do objeto do estudo histórico na seara jurídica remete ao referencial teórico. A totalidade dos fatos, desde o mais antigo, como visto, não assegura a compreensão mais aprofundada do objeto. É recomendável o início do estudo pelo que se conhece mais para que, futuramente, seja possível a elaboração de um modelo explicativo mais amplo. Esse ponto de partida são os trabalhos que mais profundamente analisaram o objeto e de maneira mais ampla problematizaram o tema. Nesse sentido, retorna-se a Descartes, quando recomenda a leitura dos antigos para se conhecer as descobertas já feitas e o que falta ser descoberto (s.d., 18).

Como visto anteriormente, os estudos estão se especializando, mas a compreensão da totalidade demanda uma construção coletiva por meio da convergência das diversas contribuições individuais. Assim, agregando diversas perspectivas, pode-se vislumbrar uma compreensão mais adequada.

O estudo dos principais autores dedicados a um tema permite situar o tema em seu momento, verificar o que dele difere e persiste, constatar que circunstâncias mudaram a ponto de uma questão ter perdido a sua razão de ser ou, diversamente, ter intensificada a sua relevância. Em que pese tudo isso, a contribuição coletiva de diversos especialistas, como afirmado, contribui permite a construção do modelo interpretativo mais amplo. Como dito por Milton Santos (2004, p. 118), uma teoria são perguntas colocadas ao real. A mudança do lugar e/ou do tempo traz novos problemas cujas respostas serão objetivadas por novas pesquisas. Nesse sentido é entendida a possibilidade de uma resposta total e local e de uma teoria pertinente para um continente não ser para outro.

Boaventura de Sousa Santos afirma que todo conhecimento local é total (2006, 73-79). Na ciência moderna, o conhecimento avançaria pela especialização. Paradoxalmente, o rigor aumentaria na proporção direta da arbitrariedade com que seria fragmentado o real. Os males desse quadro reducionista seriam conhecidos, mas as propostas de superação seriam insatisfatórias. Em síntese, para Boaventura Santos, não haveria solução satisfatória sob a égide do paradigma dominante.

No paradigma emergente, o conhecimento seria total, mas seria também local. Esse conhecimento seria formado a partir de temas adotados por grupos sociais com projetos de vida locais. A fragmentação, em conformidade com o paradigma emergente, não seria disciplinar, mas temática. O desenvolvimento do conhecimento não se daria pela ampliação “de objetos”, mas “do objeto” (SANTOS; 2006, 76-77); o mesmo objeto passaria a ser analisado de maneira mais profunda por meio desses múltiplos horizontes que convergiriam para sua compreensão.

O paradigma pós-moderno seria, também, total por reconstituir projetos locais com ênfase em sua exemplaridade. Conceitos e teorias desenvolvidos localmente emigrariam para outros espaços cognitivos de maneira a serem utilizados fora do seu contexto original – conceber-se-ia através da imaginação e generalizar-se-ia por meio da qualidade e da exemplaridade. Esse paradigma de conhecimento seria sustentado pelas condições de possibilidade proporcionadas pelo espaço-tempo local. Para constituir-se, seria imperativo o uso de uma pluralidade metodológica (SANTOS; 2006, 76-77). A ciência pós-moderna não seguiria um estilo unidimensional: seu estilo seria “uma configuração de estilos”. Além disso, a tolerância discursiva seria reflexo da pluralidade metodológica (SANTOS; 2006, 78-79).

A relevância de uma questão é verificada pelo modo como ela se situa no tempo e no espaço. Isso fica mais claro quando se tem em conta que a própria razão é histórica. O modo de compreender os homens no tempo só pode ocorrer dentro de um conjunto de referências que dialogam entre si. Nesse sentido, o estudo histórico é indissociável de um referencial teórico.

 

5 CONCLUSÃO

Resta verificado, de todo o exposto, que no âmbito da historiografia foram verificadas significativas mudanças ao longo do século XX. De uma “história episódica”, passou-se a uma história que destaca o papel do intérprete na construção do objeto de pesquisa.

A interdisciplinaridade ganhou importância com a adoção de múltiplas perspectivas de estudo e com o aumento da diversidade das fontes utilizadas. Nesse contexto, o desenvolvimento de trabalhos em colaboração, com destaque para a lista de disciplinas auxiliares, ganhou relevo para o aprofundamento do estudo de cada objeto no lugar da simples multiplicação superficial de objetos de estudo.

Na seara jurídica, os estudos históricos ainda se concentram na perspectiva historiográfica dominante durante o século XIX. Privilegiam-se as fontes estatais, o presente é isolado do passado ou visto como uma simples repetição, o histórico é confundido com a sucessão de normas positivadas sem maiores indagações ou preocupação com uma compreensão mais ampla.

As referidas deficiências são agravadas, nos estudos jurídicos, pela dissociação entre histórico e referencial teórico. Por força disso, as questões formuladas e respondidas em determinado momento perdem o substrato material que lhes motivou e persistem mal compreendidas. O histórico nos estudos jurídicos só pode ser adequadamente abordado quando não ignoradas a complexidade do objeto e a inafastável variedade das fontes de pesquisa e de perspectivas de abordagem necessárias para situar o objeto no seu tempo, o que parece confirmar que o referencial teórico do estudo não pode ser dissociado do estudo histórico.

 

6 REFERÊNCIAS

BACON, Francis. Novum Organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultura, 1997 (Coleção “Os Pensadores”).

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Hector Perez. Os Métodos da história. Tradução de João Maia. 6ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, s.d.

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Viana Boeira; Nelson Boeira. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

_____. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

SANTOS, Milton. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. 2 ed., 2 reimpressão. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.


[i] Artigo elaborado para atender a requisito parcial de avaliação da disciplina “Metodologia da Pesquisa” oferecida no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, no nível de Mestrado, no semestre 2010.1, sob a regência do Prof. Dr. Rodolfo Pamplona Filho e do Prof. Dr. Nelson Cerqueira, tendo como tema “Aplicação da metodologia da pesquisa no Direito”.

[ii] Professor Auxiliar de Direito Constitucional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pós-graduado em direito público pela Universidade Salvador (UNIFACS), bacharel em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestrando do PPGD-UFBA vinculado à linha de pesquisa “Cidadania, Estado e direitos fundamentais”. Correio eletrônico: plopessabino@gmail.com.

[iii] No curso do presente artigo, a palavra “História” grafada com inicial maiúscula será reservada à disciplina escolar. Como ramo das ciências humanas, o vocábulo será grafado com inicial minúscula.

[iv] Destaque-se que o entendimento de Bacon acerca dos ídolos da tribo não parece coincidir com o uso de Marc Bloch. De acordo com Bacon, ídolos e noções falsas não apenas obstruiriam o intelecto humano como poderiam ser um obstáculo à própria instauração da ciência (XXXVIII). O “remédio apropriado para afastar e repelir is ídolos” (XL) seria a verdadeira indução. Os ídolos seriam divididos em quatro gêneros (XXXIX): 1) Ídolos da Tribo (XLI, XLV-LII) – Fundam-se “na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana”. Guardando analogia com a natureza humana e não com a natureza, as percepções da mente humana distorceriam e corromperiam as coisas. 2) Ídolos da Caverna (XLII, LIII-LVIII) – Seriam os dos homens enquanto indivíduos. Cada indivíduo – por sua individualidade, por sua educação, pelas pessoas com quem se relacionou, pelo que leu, entre outros fatores influenciadores da formação do indivíduo ao longo de sua vida – teria uma caverna capaz de interceptar e distorcer “a luz da natureza”. 3) Ídolos do Foro (XLIII, LIX-LX) – A união dos indivíduos, convivendo e reciprocamente se influenciando, criaria outros ídolos. Associando-se graças ao discurso e valendo-se de terminologia leiga, a atividade intelectual seria arrastada para inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias. 4) Ídolos do Teatro (XLIV, LXI-LXV) – Outros ídolos adentrariam no espírito humano. Estes seriam resultantes de doutrinas filosóficas e demonstrações viciadas – axiomas das ciências aceitos por mera falta de esmero metodológico. Seriam “do teatro” por parecerem fábulas produzidas e representadas (BACON, 1997, p. 39-41, 93). Cumpre salientar que Bloch escreveu a sua obra em condições extremamente adversas, quando prisioneiro dos nazistas por participar da Resistência francesa, sem acesso a uma biblioteca.

[v] Nesse sentido, entende-se, também no âmbito historiográfico, a importância da pré-compreensão para a reconstituição do passado.

[vi] Note-se que o entendimento de Marc Bloch se aproxima do defendido por Boaventura de Sousa Santos quanto este afirma que todo conhecimento é autoconhecimento (2006, p 80-87). O ponto de partida de sua análise é a separação entre sujeito e objeto promovida pela ciência moderna. Essa separação nunca teria sido pacífica e, quando seguida, não se apresentaria de modo uniforme. O desenvolvimento dos estudos em alguns campos foi tornando difícil a preservação dessa separação a ponto de ser questionado o seu status metodológico. O próprio recorte dado a um tema seria motivado por aspectos desconsiderados pela ciência moderna e a trajetória do sujeito seria determinante das perspectivas de avanço do conhecimento por ele objetivadas. Nesse sentido, a ciência teria um caráter autobiográfico e autoreferencial.

[vii] É possível, de modo complementar, afirmar que o retorno de um pesquisador a um período pré-paradigmático (KUHN, 2006, p. 72-73), quando foi discutida mais detidamente uma questão, poderia ser mais esclarecedor do que o estudo de um contexto mais recente ou de um mais remoto.

[viii] Apesar dessas observações, Thaís Nivia Lima da Fonseca destaca que a prática não acompanhou essas idéias. Por fatores diversos (v.g., falta de recursos), a instrução foi levada para o ambiente privado (FONSECA, 2006, p. 41).

[ix] Entenda-se por problema a questão não formulada acerca de um tema ou, quando formulada anteriormente, não respondida ou mal respondida. Por mal respondidas deve-se entender não apenas as questões incorretamente respondidas como também as insuficientemente respondidas em face da pluralidade metodológica. Se a pré-compreensão não é uniforme, as perguntas e as respectivas respostas também não serão.

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