O FATO SOCIAL PATOLÓGICO NO MÉTODO DE ÉMILE DURKHEIM E SUA RELAÇÃO COM O FENÔMENO JURÍDICO

Publicado: maio 20, 2014 em Artigo

Caio Lucio Monteiro Sales

1 INTRODUÇÃO

Mundo. Século XXI. Pós-modernidade. Globalização. Brasil. Democracia. Constituição Cidadã. Pluralismo ideológico. Convencimento argumentativo. Um paradoxo gramatical: frases sem verbo para descrever uma época de constante movimento e evolução, de desenvolvimento do pensamento humano, de verdades que se substituem no tempo e no espaço, enfim o nosso mundo.
Em um cenário tão dinâmico, o desafio de regular as relações sociais, papel tradicional e limitadamente atribuído à norma como gênero e à lei como espécie, se torna cada vez mais algo muito próximo de uma verdadeira arte. A habilidade, a sensibilidade, a inteligência, o senso moral e ético, todas essas e muitas outras qualidades exigidas do intérprete e aplicador do Direito, acabam por aproximá-lo de um verdadeiro artista.
Na produção e pesquisa do conhecimento, o homem pode e deve se valer de diferentes métodos. E se há algo que o conhecimento humano tratou de produzir, desde a Era Socrática, quando nasce o nosso modelo de pensamento ocidental, até os dias atuais, foram os métodos. Método dedutivo, indutivo, progressivo-regressivo, dialético, fenomenológico, enfim, um diversificado cardápio de que pode se servir o pesquisador e o produtor do conhecimento. Também foram muitos os pensadores e filósofos que se dedicaram à criação e estudo de tais metodologias. Dentre vários, Émile Durkheim merece destaque em face de seu método sociológico com ênfase no que chamou de fato social. Neste ponto um questionamento se faz inevitável: qual a aplicação de um método escrito por um pensador do século passado, mais precisamente em 1895, em uma época de pós-modernidade como a que vivemos?
O presente artigo tem por escopo demonstrar a aplicação do método sociológico de Durkheim no Direito Brasileiro, notadamente em face da análise do fato social patológico, em sua relação com fenômenos jurídicos bastante atuais, como a mutação constitucional e a aplicação do princípio da adequação social, bem como a quebra do paradigma da supremacia do interesse público no Direito Administrativo. É o que passaremos a analisar doravante. Contudo, uma breve explanação acerca do método de Émile Durkheim se faz imperiosa.

2 O MÉTODO SOCIOLÓGICO DE DURKHEIM

2.1 Breves anotações sobre a vida e a obra de Émile Durkheim

De descendência judia, Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858, em Épinal, na Alsácia. Formado em Filosofia no ano de 1882 , iniciou seus estudos em Paris, na Escola Normal Superior (École Normale Supérieure), entretanto, toda sua vida intelectual foi dedicada à sociologia. Trabalhou como professor de pedagogia e ciência social na Universidade de Burdeos. Foi quando se interessou pelo estudo da sociologia.
Durkheim, a despeito de ter sido criado no seio de uma família muito religiosa, filho de um rabino, não defendia, pelo contrário, até mesmo contestava a educação religiosa, defendendo a cientificidade para desenvolvimento do conhecimento humano.
Como obras principais podemos citar: A Divisão do Trabalho Social (1893), As Regras do Método Sociológico (1895) e O Suicídio (1897), dentre outras. Em sua obra As Regras do Método Sociológico, Émile Durkheim tratou do fato social e regras para observação e estudo dos mesmos, o que veremos adiante.

2.2 O Fato Social

Para o filósofo, ao nascer, o ser humano encontra um mundo com regras e padrões de conduta já estabelecidos, ou seja, um mundo posto. A esse mundo posto, o Homem se filia, uma vez que as regras e padrões pré-estabelecidos exercem uma certa coerção sobre os individuos. Segundo Durkheim , “[…] é hoje incontestável que a maior parte das nossas idéias e tendências não são elaboradas por nós, mas antes nos vêm do exterior, elas só podem penetrar em nós impondo-se […]”.
Dessa forma, uma pressão social molda o comportamento das pessoas em determinado grupo social. Em um clube recreativo, os associados se comportam de acordo com as prescrições do estatuto social da entidade; na igreja, da mesma forma, haja vista os dogmas religiosos. E não poderia ser diferente na sociedade de forma lata, quando o padrão normal e moral de conduta é prescrito pelas normas, sejam morais, sejam dispositivas, notadamente a Lei. Com amparo no pensamento de Durkheim, tais exemplos são ilustrativos de fatos/fenômenos coercitivos e presentes onde existam organizações definidas (instituições, igreja, Estado, etc).
Entretanto, existem também outros fatos ou fenômenos que exercem uma pressão sobre o comportamento das pessoas, mesmo inexistindo uma organização estruturada e institucional. Seria o exemplo, para citarmos algo comum nos dias atuais, das demonstrações de euforia e entusiasmo das torcidas de futebol. Em tais situações, o torcedor, como indivíduo, se deixa levar pela força do grupo, vibra, grita, pula, profere palavras de baixo calão contra árbitros e jogadores, tudo da mesma forma que os demais na multidão o fazem. A pressão do grupo se faz sentir no momento em que um torcedor qualquer resolve ir contra o grupo, manifestando simpatia ao time adversário, por exemplo. Nesse caso, uma verdadeira tragédia pode vir a acontecer. Para Émile Durkheim , tal seria um exemplo de corrente social.
Dessa forma, fruto de uma construção humana, o fato social foi conceituado pelo filósofo como “[…] toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”.
Neste ponto, interessante se faz uma análise pormenorizada do conceito apresentado por Durkheim em pleno século XIX.

2.3 Estudo Analítico do Conceito de Fato Social

De maneira similar ao método de dissecação utilizado pelos acadêmicos de medicina em suas aulas de anatomia humana, podemos realizar um estudo analítico, dissecando o conceito de fato social apresentado anteriormente.
Inicialmente, temos que o fato social é toda maneira de fazer, ou seja, engloba todos os modos de agir, o comportamento dos membros de um determinado grupo social. Imaginemos, a título de exemplos, o ato de se curvar diante de um rei ou rainha, nos Estados Monárquicos, ou o costume do cumprimento com beijos no rosto entre os homens muçulmanos. Estamos, em tais casos, diante de modos de fazer ou agir entre os membros daquelas sociedades.
O conceito apresentado nos traz ainda que tal maneira de fazer é fixada ou não, dito de outra forma, os padrões de conduta podem ser escritos (fixados) ou não escritos (não fixados), o que nos remete à distinção entre normas positivadas e normas morais, sendo ambas pré-existentes e orientadoras do modo de agir das pessoas. A bondade, o respeito aos pais, a honestidade, são sobretudo normas morais, enquanto a proibição da conduta de matar alguém ou apropriar-se de um bem alheio são normas escritas.
Continuando na análise conceitual, nos deparamos com o aspecto coerção exterior, em outras palavras, as normas de conduta, escritas ou não, exercem uma pressão exterior sobre as pessoas. Cabe destacar que no caso de coerção interna, estaremos diante de um fenômeno ligado à psicologia, não mais à sociologia ou ao fato social. O medo, o arrependimento, a tristeza, todos são sentimentos internos, portanto, fora do escopo de estudo do fato social. Exemplos de coerção externa às pessoas seriam a sanção penal ou civil, no caso das normas escritas, bem como do isolamento social, no caso específico de normas não escritas de boa convivência social.
A generalidade no âmbito de um determinado grupo social é outro aspecto intrínseco ao fato social. Com isso se quer dizer que as normas de conduta atingem todos os membros de um determinado grupo de forma generalizada. Valendo-nos do exemplo já mencionado, em um clube recreativo as normas estatutárias regulam o comportamento de todos os associados. Da mesma forma, as regras de trânsito são aplicadas a todos os condutores de veículos automotores, e não somente aos de automóveis, com exclusão dos de motocicletas.
Outro ponto do conceito a ser considerado diz respeito à existência do fato social no âmbito de uma dada sociedade. Como já dito, o beijo no rosto entre os muçulmanos do sexo masculino, bem como o ato de curvar-se diante de um monarca, são normas de conduta no seio de cada grupo social específico, respectivamente a sociedade muçulmana e as sociedades monárquicas.
Por fim, o fato social possui uma existência própria, independente das suas manifestações individuais. Não importa a consciência individual, as normas de conduta existem de forma externa e independente da vontade e maneira de pensar de cada um. Para ilustrar com fato bastante atual: não importando o que cada pessoa pensa sobre a união homoafetiva, recente decisão do Supremo Tribunal Federal representou um fato social de aplicação a todos os membros da sociedade brasileira, qual seja, o reconhecimento jurídico da existência da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Dissecado e brevemente analisado o conceito de fato social, podemos concluir que não se consideram fatos sociais aqueles, como jé dito, ligados ao ramo da psicologia, tais como os sentimentos (amor, ódio, arrependimento, etc), uma vez que são interiores aos indivíduos, bem como aqueles fenômenos ligados à biologia, tais como os fenômenos fisiológicos (comer, beber, dormir, etc).
Visto o conceito de fato social, resta-nos entender como se processaria o estudo de tal fenômeno na visão de Durkheim. Para tal, o filósofo propôs uma série de regras, cujo conjunto formou o Método Sociológico, que passaremos a analisar.

2.4 As Regras do Método Sociológico

Para fins de estudo do fato social, Durkheim porpôs uma série de regras destinadas à sua observação, à distinção entre o normal e o patológico, o que particularmente nos interessa neste ensaio, à constituição dos tipos sociais, à sua explicação e ao estabelecimento de provas.

2.4.1 Regras relativas à observação dos fatos sociais

A regra fundamental no que concerne à observação dos fatos sociais é a de “considerar os fatos sociais como coisas” , ou seja, o fenômeno social deve ser analisado por um investigador isento de prenoções, valores pessoais ou considerações filosóficas. Imaginemos o estudo da legislação que autorizou a adoção do sistema de cotas nas Universidades Públicas. Uma análise isenta, como coisa, se restringe ao estudo das normas escritas acerca do assunto, não interessando aspectos filosóficos, ligados à justiça ou injustiça no tocante ao assunto.
Como corolários dessa regra fundamental, algumas subregras devem ser atendidas: afastar as prenoções; tomar como objeto de investigação fenômenos com características comuns e pré-definidas e, por fim, considerar os fatos sociais afastando o subjetivismo.
Quando se fala em afastamento de prenoções, se está a dizer que o investigador deve examinar o fato social com isenção de ânimo e despido de preconceitos. Na visão de Durkheim, por exemplo, o estudo do fato social que diz respeito à autorização ou não, pelo Judiciário Brasileiro, do aborto do feto anencefálico deve se basear em aspectos objetivos, palpáveis no mundo dos fatos, como os aspectos científicos e médicos, não se devendo levar em consideração a filosofia e a religião.
No tocante ao estabelecimento de objetos de investigação com características comuns e pré-definidas, o pesquisador deve ter em mente o isolamento de seu objeto de estudo em face de semelhanças, devendo-se desconsiderar os fatos sociais com características diferentes das do objeto estudado. Ilustrativamente, uma investigação acerca do fato social casamento deve limitar o objeto de estudo aos fenômenos sociais com características comuns. Assim, o estudo em questão não pode abordar o casamento existente no Brasil e o casamento na Arábia Saudita. No entanto, em cumprimento à dita subregra, o casamento brasileiro pode ser estudado juntamente com o casamento norte-americano.
Uma investigação acerca do fato social afastada do subjetivismo tem estreita relação com a primeira subregra, qual seja o desvencilhamento das prenoções. Em outras palavras, os aspectos de foro íntimo, subjetivo, do pesquisador não devem ser considerados na observação dos fatos sociais. Um análise acerca da legislação brasileira que trata do aborto por um observador que se deixe influenciar por sua formação espiritualista iria comprometer sobremaneira o estudo do objeto em questão.
Segundo Durkheim, ao seguir tais regras, o fato social estaria disponível como uma coisa a ser estudada pelo investigador. Entretanto restaria perquirir acerca da natureza do fenômeno social separado para estudo, se normal ou anormal (patológico).

2.4.2 Regras relativas à distinção entre o normal e o patológico

“Quando conduzida pelas regras precedentes, a observação, confunde duas ordens de fatos bastante distintas sob alguns aspectos: aqueles que são tudo o que devem ser e aqueles que deveriam ser diferentes daquilo que são, os fenômenos normais e os fenômenos patológicos” . Durkheim referiu-se, dessa forma, à existência dos dois tipos de fatos sociais, haja vista sua normalidade.
O filósofo diz ainda que não se pode distinguir o normal do patológico em razão da existência de sofrimento, dor ou doença. Cita exemplos como o da dor e do sofrimento do parto, da fome, entretanto, sem uma dimensão patológica, mas simples eventos naturais e fisiológicos. No caso da doença, ilustra com a vacina contra a varíola. A inoculação da doença, ou seja, o vírus atenuado da varíola, nada mais seria do que um ato destinado à preservação da saúde, da normalidade em termos de higidez física.
Para o filósofo, a normalidade teria estreita ligação com a generalidade, sendo um fenômeno que seria encontrado em todas as sociedades ao longo dos tempos ou em sociedades semelhantes. O crime seria um fenômeno encontrado em todas as sociedades ao longo dos tempos, sendo a inexistência do crime um fenômeno considerado anormal.
Entretanto, a normalidade e a patologia deveria ser analisada em cada momento da história. A grande regra para identificação do fato anormal foi assim descrita por Durkheim:
[…] depois de ter estabelecido pela observação que o fato é geral, irá até às condições que no passado determinaram esta generalidade e indagará em seguida se estas condições ainda existem no presente ou se, pelo contrário, se modificaram. No primeiro caso, terá o direito de considerar o fenômeno como normal e, no segundo, de recusar-lhe este caráter.

Imaginemos o índice de incidência da poliomielite no Brasil antes da descoberta da vacina pelo cientista Albert Sabin. Àquela época, um alto índice seria considerado normal, entretanto, hoje, com a doença já erradicada em nosso país, um índice diferente de zero pode ser considerado um fato patológico.
Conhecida a divisão dos fatos sociais em normais e patológicos, mister que identifiquemos a que espécie social pertence determinado fato social objeto de um estudo, dito de outro modo, resta-nos identificar a constituição dos diversos tipos sociais.

2.4.3 Regras relativas à constituição dos tipos sociais

A identificação e classificação dos tipos sociais, em função de sua constituição, seria uma atribuição da área da sociologia denominada por Durkheim de “Morfologia Social” .
A regra básica para fins de classificação dos tipos sociais foi assim enunciada:
[…] começar-se-á por classificar as sociedades segundo o grau de composição que apresentam, tomando como base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único; no interior destas classes distinguir-se-ão variedades diferentes conforme se produz ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais.

Tal sociedade de segmento único Durkheim chamou de horda, a qual poderia ser concebida “como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência” . Imaginemos um estudo social da cidade do Rio de Janeiro. Em tal caso a horda, a nível de postulado por nós definido para efeito deste ensaio, seria o somatório de todos os habitantes da cidade considerados como ocupantes do espaço territorial do município. Dentro de tal horda, considerando-se a separação entre ricos e pobres, teríamos, por semelhança interna, grupos sociais distintos: tipo social Classe A (moradores dos condomínios da Barra) e tipo social Classe D (moradores das favelas daquela cidade). Em suma, dois tipos sociais constituídos e estudados de forma apartada.
Capazes de identificar e classificar os tipos sociais conforme sua constituição, resta-nos entender a razão da existência de detrminado fato social, em outras palavras, encontrar uma explicação para os fenômenos sociais.

2.4.4 Regras relativas à explicação dos fatos sociais

A existência e ocorrência dos fenômenos sociais não podem ser explicadas por sua utilidade, afinal, existem fenômenos ou fatos sociais, independentemente de sua utilidade. Algo pode ter perdido sua utilidade , mas continuar existindo. Imaginemos um discurso em homenagem a uma turma de formandos em um curso superior qualquer. O discurso tem uma enorme utilidade no momento da solenidade de colação de grau, quando é lido diante de formandos, professores e convidados, entretanto, terminada a cerimônia, sua utilidade como homenagem inédita deixa de existir. Contudo, o discurso escrito ainda existe, seja em uma folha de papel ou em mídia eletrônica, a despeito de não mais ser útil para aquela solenidade específica e que já ocorreu.
Das regras propostas por Durkheim para explicar os fatos sociais, duas se destacam. A uma, deve-se investigar de forma separada a causa eficiente produtora do fato social e a função por ele desempenhada. A duas, deve-se procurar a origem de um fenômeno social na constituição do meio social interno, composto por coisas e pessoas.
No tocante à primeira regra, há que se estabelecer uma distinção entre causa eficiente e função do fato social. A causa eficiente diz respeito aos motivos que desencadearam ocorrência do fato social, já a função tem uma relação com a causa eficiente e demonstra a utilidade do fato social em relação à sua força geradora. Durkheim exemplifica com a pena, que tem como causa eficiente a reação social ao ato ilegal praticado (crime) e que possui função repressiva, no sentido de evitar novas infrações.
Analisando a segunda regra, temos que, para Durkheim, o meio social interno é composto por coisas e pessoas, sendo que a força motriz geradora dos fatos sociais é o elemento humano. Imaginemos como meio social interno o Poder Legislativo. Aí, o elemento não-humano são as leis, já o elemento humano se constitui das pessoas que compõem o Congresso Nacional, no caso do Brasil. Logo, a origem do fato social legislação brasileira tem sua origem no elemento humano referido.
Após a explicação dos fatos sociais, Durkheim propõe uma última regra no que toca ao aspecto relativo ao estabelecimento das provas dos referidos fatos.

2.4.5 Regras relativas ao estabelecimento das provas

Para Durkheim, “[…] a vida social é uma sucessão ininterrupta de transformações, paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva […]” . Logo, há tantos fatos sociais distintos quantos forem as diferenças entre as causas e efeitos. Quando a um mesmo efeito corresponder uma mesma causa, teremos um fato social único, pronto para estudo.
Tomemos por exemplo a Educação para o Trânsito e a Educação Formal Superior. A causa da primeira é a circulação de veículos e seu efeito a diminuição dos acidentes. Já no caso da segunda, a causa é a necessidade de desenvolvimento profissional e o efeito a melhoria da qualidade dos serviços e produtos oferecidos em uma dada sociedade. Estamos diante de dois fatos sociais distintos. Por outro lado, imaginemos a pena (sanção penal). Seja qual for o tipo de pena (reclusão, detenção, prisão simples, multa, dentre outras) a causa é sempre a mesma, qual seja a reação social a um ilícito cometido, bem como também é único o efeito, a prevenção de novas infrações.
Resumidamente, foram essas a regras do método sociológico propostas por Émile Durkheim para estudo do fato social. Mas como o pensamento exposto pode ter alguma aplicação no Direito Contemporâneo?

3 O MÉTODO DE DURKHEIM E SUA RELAÇÃO COM ALGUNS FENÔMENOS DO MUNDO JURÍDICO

É inegável que a sociedade humana está em permanente evolução. Situações hoje rotineiras e até mesmo essenciais eram inimagináveis a poucas décadas atrás. A internet, os celulares, a robótica, a pesquisa com células tronco, para ficarmos com somente alguns exemplos, eram coisas de ficção científica no início do século XX. Com o Direito não é diferente. Normas editadas pelo legislador de 1940, para citar o exemplo do Código Penal, já não se coadunam em sua totalidade com a realidade social do século XXI. No campo do Direito Constitucional, normas do Constituinte de 1988 precisam ser lidas de acordo com a realidade que se mostra fora das quatro paredes do Congresso Nacional.
Em face dessa evolução, dessa dinâmica das relações sociais, fácil é a identificação do pensamento de Durkheim, notadamente da regra de distinção entre fato social normal e o patológico, em algumas situações afetas ao Direito Pátrio. Revisando, temos que, para Durkheim, um fato pode ser considerado patológico quando, após identificado, nos reportemos à época de sua origem e verifiquemos as condições embasadoras de sua criação. Examinando a época atual, se persistirem as mesmas condições, o fato é tido como normal, entretanto, constatada a modificação das condições, estaremos diante de um fato social patológico.
Na seara do Direito, considerando o fato social como uma construção humana capaz de exercer coerção sobre as pessoas, moldando seu comportamento, poderemos destacar a Lei, como um fato social por excelência. Mas como relacionar a Lei com a identificação do fato social patológico proposta por Durkheim? Basta examinarmos o contexto social em que se encontra determinada disposição legislativa e verificar sua aplicabilidade, diagnosticando-a ou não como doente, dito de outra forma, um fato social patológico ou normal. Nesse sentido, busquemos apoio exemplificativo no Direito Penal, mais precisamente em face do princípio da adequação social, e no Direito Constitucional, mormente em razão do fenômeno da Mutação Constitucional.
No campo do Direito Penal, Rogério Greco nos ensina:
O princípio da adequação social, na verdade, possui uma dupla função. Uma delas, já destacada acima, é a de restringir o âmbito de abrangência do tipo penal, limitando a sua interpretação, e dele excluindo as condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade. A sua segunda função é dirigida ao legislador em duas vertentes. A primeira delas orienta o legislador quando da seleção das condutas que deseja proibir ou impor, com a finalidade de proteger os bens considerados mais importantes. Se a conduta que está na mira do legislador for considerada socialmente adequada, não poderá ele reprimí-la valendo-se do Direito Penal. Tal princípio serve-lhe, portanto, como norte. A segunda vertente destina-se a fazer com que o legislador repense os tipos penais e retire do ordenamento jurídico a proteção sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptaram perfeitamente à evolução da sociedade. Assim, da mesma forma que o princípio da intervenção mínima, o princípio da adequação social, nesta última função, destina-se precipuamente ao legislador, orientando-o na escolha de condutas a serem proibidas ou impostas, bem como na revogação de tipos penais.

Como podemos perceber, a aplicação do princípio da adequação social, a nível de Direito Penal, nada mais é do que um remédio ministrado a um fato social doente, patológico, uma vez que, com a evolução social e a aceitação por parte da sociedade de determinadas condutas, faz-se conveniente e justa a descriminalização das mesmas. Foi o que aconteceu com a destipificação relativa ao crime de adultério.
Examinemos o exemplo do crime de adultério à luz do pensamento de Durkheim. À época de aprovação do Código Penal Brasileiro (1940), a sociedade se caracterizava por ser extremamente patrimonialista e a proteção do casamento como única instituição capaz de originar uma família justificava a punição penal da traição representada pelo adultério. A proteção da instituição casamento era de enorme importância naquele tempo, a importância das coisas era maior do que a das pessoas. Pela regra proposta por Durkheim, se tais circunstâncias perdurassem nos dias atuais, o fato social representado pelo art. 240 do Código Penal (tipo penal do adultério) seria considerado normal. Ocorre que nos dias atuais, Pós-Constituição Cidadã, a família passou a ser constituida de outras formas, que não somente o casamento, o qual também deixou de ser tratado como instituição para ser elevado ao patamar de um local reservado ao desenvolvimento da pessoa humana. As relações patrimoniais perderam em importância para as relações afetivas, o ser humano passou a importar mais do que as coisas. Como se vê, aquelas circunstâncias existentes em 1940 deixaram de existir. Assim, o crime de adultério passou a representar um fato social patológico e que mereceu a intervenção do legislador ordinário que, aplicando o remédio baseado no princípio da adequação social, retirou o referido tipo penal do ordenamento jurídico brasileiro.
Continuemos nosso tour, agora no terreno do Direito Constitucional. Neste ponto realçamos o fenômeno da mutação constitucional. Assim preleciona Dirley da Cunha Júnior :
[…] a mutação constitucional é um processo informal de alteração de sentidos, significados e alcance dos enunciados normativos contidos no texto constitucional através de uma interpretação constitucional que se destina a adaptar, atualizar e manter a Constituição em contínua interação com sua realidade social. Com a mutação constitucional não se muda o texto, mas lhe altera o sentido à luz e por necessidade do contexto. É um fenômeno que vem se revelando necessário para a respiração das Constituições, cujos enunciados muitas vezes ficam asfixiados à espera de revisões formais que nunca vêm ou que, vindo, não atendem as demandas do texto e dos fatos.

Como se vê, assim como a adequação social no campo penal, a mutação constitucional acaba por se constituir em mais um remédio para tratamento de fatos sociais que se revelem patológicos em face de sua desatualização frente à realidade social. Para mencionar recentíssimo exemplo, citamos a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao reconhecimento da união homoafetiva como uma entidade familiar.
Analisemos o exemplo sob o manto das regras do método sociológico de Durkheim. A realidade social na qual estava inserido o constituinte de 1988 era, no tocante às relações homoafetivas, bastante diferente da vivenciada nos dias atuais. O país, ainda muito influenciado pelo tradicionalismo cultural, notadamente em relação à família, ainda destilava muito preconceito em relação ao tema opção sexual das pessoas. Não nos esqueçamos que àquela época, com o surgimento da AIDS e sua vinculação preconceituosa aos homosexuais, o ambiente de não-aceitação das uniões homoafetivas era bastante significativo. Tal estado de coisas, sob uma análise objetiva, justificava social e culturalmente a permanência do fato social representado pelo artigo 226, § 3º, da Constituição Federal , ou seja o reconhecimento da entidade familiar somente entre pessoas de sexos diferentes.
Mais uma vez a sociedade evoluiu, o preconceito, apesar de não ter desaparecido, tambem sofreu decréscimo, ou seja, hoje, as circunstâncias já não são as mesmas de 1988. Para adaptar o texto da Carta Maior à nova realidade social, a Suprema Corte Brasileira acabou por reconhecer, em 5 de maio de 2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Foi a mutação constitucional como a cura do fato social patológico representado pela anterior leitura do art. 226 da Carta da República.
Neste ponto, poderíamos citar outros exemplos que ilustram a aplicação do pensamento de Durkheim no Direito Brasileiro, entretanto, cabe destacar um movimento doutrinário, encampado por alguns juristas nacionais, e que se reveste de importância capital – a quebra do paradigma representado pela princípio da supremacia do interesse público no Direito Administrativo. Quando falamos em paradigma estamos a nos referir a uma grande transformação, pois conforme os ensinamentos de Thomas Kuhn “a transição para um novo paradigma é uma revolução científica […]”. Mas como poderíamos relacionar a quebra do paradigma da supremacia do interesse público com o fato social patológico de Durkheim?

4. A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO – UM FATO SOCIAL PATOLÓGICO?

O Direito Administrativo sempre foi um ramo marcado pela enorme prevalência do princípio da legalidade e pela presença marcante de um outro princípio, quase um postulado normativo, para usarmos as lições de Humberto Ávila , a supremacia do interesse público sobre o particular. Tal princípio sempre esteve na base das justificativas para existência das cláusulas exorbitantes nos Contratos Administrativos, na auto-executoriedade das decisões administrativas, na presunção de legitimidade dos atos administrativos, enfim, o Estado sempre esteve num patamar de superioridade em relação ao particular. Mas será que tal conceito de Estado com super-poderes, necessidade de uma burguesia que assume o poder no final do século XVIII (Revolução Francesa), ainda se mantém em pleno século XXI, quando a pessoa humana passou a ser a razão da existência do próprio Estado? Sobre o assunto, assim se posiciona Daniel Sarmento , um dos integrantes de uma nova geração de doutrinadores oriundos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ):
[…] o dogma vigente entre os publicistas brasileiros, da supremacia do interesse público sobre o particular, parece ignorar nosso sistema constitucional, que tem como uma de suas principais características a relevância atribuída aos direitos fundamentais. O discurso da supremacia encerra um grave risco para a tutela de tais direitos, cuja preservação passa a depender de valorações altamente subjetivas feitas pelos aplicadores do direito em cada caso.

Seria possível aplicar o pensamento de Durkheim, como fizemos até agora no que se relaciona à identificação do fato social patológico, à aplicação do princípio da supremacia do interesse público no Direito Administrativo? Certamente que sim. Vejamos quando surge o Estado com super-poderes justificados pela supremacia do interesse público sobre o particular: no final do século XVIII, em plena Revolução Francesa. A burguesia toma o poder, entretanto necessita de, como Estado, ser obedecida tal qual o monarca se fazia obedecer. Este, em face de uma ordem divina; aquela, em razão do poder econômico. Em prol da coletividade o Estado Burguês passa a contar com poderes supremos em detrimento de liberdades individuais. Cabe destacar que à época, o pensamento era extremamente patrimonialista, as coisas eram tratadas com prioridade em relação às pessoas.
Na atualidade, não só no Brasil, mas na ordem jurídica mundial, à exceção dos regimes de exceção ainda existentes, o destaque está no ser humano e seus direitos fundamentais. Ora, se aplicarmos a regra de Durkheim, facilmente chegaremos à conclusão de que não persistem as mesmas circunstâncias sociais que justificavam a supremacia do interesse público de outrora.
Diante de tal patologia em relação ao referido princípio, não seria a hora de uma revisão e quebra desse paradigma em benefício de um Direito Administrativo mais voltado ao desenvolvimento da pessoa humana e menos envolvido com a proteção excessiva do Estado? É nesse sentido que reforçam a posição de Daniel Sarmento vozes como as de Gustavo Binenbjom , Humberto Ávila , dentre outros. É certo que novos rumos do Direito Administrativo se mostram diante de nossos olhos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito de se tratar de um método essencialmente sociológico e pensado no século XIX, restou demonstrado no corpo deste trabalho a aplicação de parte do pensamento de Émile Durkheim no Direito Brasileiro, mormente em face da regra de distinção entre o fato social normal e o patológico.
Na seara do Direito Penal, os fatos sociais patológicos, a exemplo da tipificação do crime de adultério, são identificados e, em face do princípio da adequação social, são extirpados do ordenamento jurídico pela atuação do legislador ordinário.
A nível constitucional, a patologia dos fatos sociais dissonantes da realidade do mundo contemporâneo provocam um releitura de normas presentes na Carta Maior, o que se denomina juridicamente de fenômeno da mutação constitucional. O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar é exemplo extremamente atual sobre a questão.
Por último, em sede de Direito Administrativo, a identificação da patologia do fato social, representado pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, tem levado alguns juristas pátrios a enfrentar o tema referente à quebra de paradigma representado pelo princípio em questão.
Enfim, em um mundo extremamente dinâmico e de relações globalizadas, a regra da identificação do fato social patológico é de grande valia aos intérpretes e legisladores que, provavelmente, mesmo de forma inconsciente, se valem dos ensinamentos de Émile Durkheim, filósofo e sociólogo do século XIX, mas de uma atualidade concretamente demonstrada.

REREFÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

______________. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

BINENBJOM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2011.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Salvador: Jus Podium, 2009.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos versus Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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